quinta-feira, 19 de maio de 2016

Deus escreve sobre cosmologia


Deus escreve sobre cosmologia. Tenho o maior gosto em apresentar em primeira mão o prefácio do último livro de Jorge Dias de Deus, em breve nas livrarias (e feiras do livro)de todo o país:

"Onde se aborda a visão infantil sobre o centro do Universo, a contribuição das religiões para essa visão, e o papel de Stephen F. Mason na escrita deste livro

Para começar, é preciso explicar o título: Ciência Cosmológica. No fundo, ele quer dizer ciência relacionada com a cosmologia, isto é, para a moderna ciência do Universo. A questão é que a ciência, como actividade humana socialmente relevante, é relativamente recente. Mas a cosmologia, como visão do Universo ligada a construções mágicas e religiosas, é bem mais antiga. Os mitos da criação e do caos inicial têm milhares de anos, ao passo que a ciência moderna só tem poucas centenas de anos, mas a cosmologia de base científica só existe há umas dezenas de anos. Portanto, a ligação entre a ciência e a cosmologia começou por não existir e, quando existiu, foi muito ténue. Mas, ao longo do tempo, essa ligação foi‑se afirmando, sobretudo após a ciência moderna se ter tornado dominante. Com este livro, através da história da ciência e da cosmologia, quero mostrar de que modo uma cosmologia sem ciência evoluiu para uma cosmologia científica, que é a nossa cosmologia hoje. O livro pretende apresentar as várias fases de desenvolvimento da ciência cosmológica. A primeira fase, que vai dos tempos primitivos até ao final da Idade Média europeia, retrata o conflito entre uma visão tradicional, mágica e religiosa e uma tentativa de explicação racional, lógica, que podemos chamar, hoje, uma explicação científica. Contra o materialismo de Atomistas e Epicuristas, que defendiam um mundo material governado por leis naturais, ganhou o mundo físico‑religioso de Aristóteles, que misturava leis da Natureza (umas vezes certas, outras vezes erradas) com forças motoras asseguradas por arcanjos, querubins e outras espécies afins que eram, como se veio a verificar, irrelevantes e perfeitamente desnecessárias. Numa segunda parte do livro descreve‑se a evolução, desde o Renascimento científico europeu, nos séculos xvi e xvii, com Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes e Newton, no qual houve o mérito de colocar na ordem do dia a questão essencial de as mesmas leis da Natureza serem válidas tanto na Terra como nos céus. A Revolução Científica dessa época, complementada com as revoluções científicas do começo do século xx, incluindo a Relatividade e a Mecânica Quântica, permitiu pensar o Universo no seu todo como uma entidade com história, com evolução.

Por último, aborda‑se a visão científica actual do Universo, com relevo para os grandes desenvolvimentos observacionais (novos telescópios) e para os grandes desenvolvimentos teóricos, em especial com a Relatividade Geral e Restrita de Einstein: Inflação e Big Bang com expansão acelerada do Universo, buracos negros, massa‑energia escuras, radiação cosmológica de fundo, ondas gravitacionais, etc., etc.

Qualquer criança pensa que é o centro do mundo. E, porque não, o centro do Universo? Tudo se passa à sua volta, tudo se vira para ela. Até o grande Sol, todos os dias, desde a manhã que anda à sua roda! E pais e avós satisfazem tudo o que a criança, sensatamente ou não, pretende. Quer dizer, o facto de, desde crianças, vermos as coisas pelos nossos olhos, e quem diz ver diz ouvir ou, em geral, sentir, leva‑nos a uma visão muito especial do mundo em que vivemos. Não há nada que não pareça centrado em nós.

Tudo parte, de facto, dessa visão infantil em que o mundo parece estar bem centrado em nós. Um dos grandes feitos dos homens do Renascimento foi exactamente conseguir deslocar o ser humano do centro do mundo. Quando eu, por exemplo no meu quarto, rodo a cabeça e olho em volta, vejo as coisas mexerem‑se. Mas elas estão paradas, a minha cabeça é que se mexe. Se andar no meu quarto a direito, da esquerda para a direita, vejo as paredes e os móveis a deslocarem‑se da direita para a esquerda. Novamente a ilusão. A Terra leva um dia a dar uma volta em torno do seu eixo e leva um ano a dar a volta ao Sol. Foi isso que Copérnico percebeu e, quando se preparava para morrer descansado e sem problemas com a hierarquia religiosa, bem poderia ter dito: «é a Terra que anda enquanto o Sol está parado». Talvez tivesse poupado, mais tarde, maçadas a Galileu!

Mas Copérnico nada disse. Foi preciso passarem cerca de trezentos anos até ficar claro que Copérnico tinha razão. Galileu esforçou‑se muito para convencer toda a gente de que era ele, com Copérnico, quem estava certo, mas os seus argumentos não foram suficientemente convincentes. Com Newton, percebeu‑se que o Sol, mais pesado, não se movia muito, e que o movimento era da Terra. Mas foi preciso que Foucault, recorrendo a um pêndulo de 67 metros de comprimento, pendura‑ do do tecto do Panteão de Paris em 1851, mostrasse que o plano de oscilação do pêndulo acompanhava a rotação da Terra.

 O episódio de Copérnico, com tudo o que se seguiu, não é mais do que um entre muitos que foram enchendo a história da ciência, em geral, e da astronomia e da cosmologia, em especial. Porém, ele teve o mérito de pôr frente a frente duas concepções antagónicas do Universo: um Universo fechado, limitado, centrado na nossa visão infantil do mundo, por um lado, e um Universo aberto, talvez infinito, descentrado, admitindo uma pluralidade de mundos, em princípio equivalentes, por outro. A Terra, de facto, está na periferia da nossa galáxia, a Via Láctea, onde existem milhões de estrelas e muitos — não se sabe quantos — sistemas planetários do tipo do nosso sistema solar. E, sabe‑se hoje, existem milhões e milhões de galáxias no Universo. Haverá alguma razoável justificação para a defesa da centralidade infantil, com base no ser humano e no terceiro planeta, a Terra, que tem, ao que parece, por destino, como aliás todos os planetas do sistema solar, rodopiar incessantemente em volta do Sol?

 Para a maior parte das religiões, em particular para as religiões monoteístas, o ponto de partida reside na centralidade do ser humano, do Homem, com H grande, que habita a Terra, como destinatário de todas as mensagens divinas. Partem pois, digamos, do princípio infantil. Não é, portanto, de admirar que tenham existido e continuem a existir tensões entre ciência e religião (ou religiões). No entanto, não parece que tenha necessariamente que existir um conflito entre ciência e religião. Primeiro, a religião, historicamente, é bem mais antiga do que a ciência, devendo portanto ter uma base de sustentação que não é, ou não tem que ser, a da ciência. Depois, cientistas reconhecidos, como Galileu e Newton, nunca sentiram um conflito desse tipo: estavam ambos profundamente convencidos de que o que faziam não era mais do que decifrar o livro da Natureza, tal como ele fora escrito por Deus. Einstein, uns séculos depois, não pensou de um modo muito dif rente. Não se afigura pois difícil imaginar um pacto de coexistência pacífica entre ciência e religião com base na tolerância e na liberdade.

Como foi dito, a ciência, como actividade humana socialmente relevante, é relativamente recente, mas a cosmologia, como visão do Universo ligada a construções mágicas e religiosas, é muito antiga. Embora mergulhe as suas raízes nos tempos primordiais da humanidade, como ciência, a cosmologia surgiu só no século xx. O facto de se ter acabado por atribuir ao Sol o lugar de centro do mundo, e isso aconteceu até ao século xix, mostra bem como o conhecimento do Universo esta‑ va reduzido a pouco mais do que o conhecimento do sistema solar (tal como já acontecera com Babilónios e Gregos). «Tudo o resto eram estrelas, todas elas coladinhas no pano azul do fundo do Céu. De facto, só nos finais dos anos 20 do século xx se fabricaram telescópios que permitiram ver para além da nossa galáxia e possibilitaram uma especulação minimamente fundamentada sobre o Universo. É daí que nasce a ciência cosmológica de hoje, a ciência que inclui o Big Bang, a expansão acelerada do Universo, a radiação térmica de fundo, a matéria escura e a energia escura, a relatividade geral de Einstein, os buracos negros e algumas fantasias ligadas às viagens no tempo...

 O inglês Stephen F. Mason é o autor do livro Histoire des Sciences (1956), título em francês. De facto tratava‑se de uma tradução do inglês — nesse tempo, princípios dos anos 60, a jovem intelectualidade nacional continuava sob influência francesa — e comprei o livro numa viagem supostamente libertadora a Paris, paga com dinheiro de explicações a alunos quase sempre preguiçosos. Só alguns anos depois, quando tive tempo livre à minha disposição, li o livro, religiosamente, de uma ponta a outra, «valorizando‑o» com comentários escritos e pequenos cálculos a lápis. Quando acabei fiquei convencido de que haveria de ser historiador — ou talvez filósofo — e que iria escrever um livro como o de Mason. A ideia ficou, e passados uns tempos, ainda nos anos 60, fui pedir ajuda ao Professor Silveira, respeitado professor de Física do Instituto Superior Técnico, para me orientar para o futuro. E à pergunta sobre se achava bem eu ir estudar para historiador ou filósofo da ciência, a resposta veio logo. A ideia era esta: «O menino aprenda primeiro qualquer coisa de física e meta‑se só depois em fantasias.»

Assim fiz. Voltando ao livro de Stephen F. Mason, estou agora a cumprir a promessa que fiz, há uns 50 anos, de escrever como Mason, só que, não sendo profissional de história da ciência, falta‑me o rigor, a clareza e a orga‑ nização lógica e coerente que tanto apreciava em Mason. Peço — e conto com — a tolerância do/a leitor/a."

Jorge Dias de Deus

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