Deus escreve sobre cosmologia. Tenho o maior gosto em apresentar em primeira mão o prefácio do último livro de Jorge Dias de Deus, em breve nas livrarias (e feiras do livro)de todo o país:
"Onde se aborda a visão infantil sobre o centro do Universo, a contribuição das religiões para essa visão, e o papel de Stephen F. Mason
na escrita deste livro
Para começar, é preciso explicar o título: Ciência Cosmológica. No fundo, ele quer dizer ciência relacionada
com a cosmologia, isto é, para a moderna ciência do
Universo. A questão é que a ciência, como actividade
humana socialmente relevante, é relativamente recente. Mas a cosmologia, como visão do Universo ligada
a construções mágicas e religiosas, é bem mais antiga.
Os mitos da criação e do caos inicial têm milhares de
anos, ao passo que a ciência moderna só tem poucas
centenas de anos, mas a cosmologia de base científica
só existe há umas dezenas de anos.
Portanto, a ligação entre a ciência e a cosmologia
começou por não existir e, quando existiu, foi muito
ténue. Mas, ao longo do tempo, essa ligação foi‑se afirmando, sobretudo após a ciência moderna se ter tornado dominante. Com este livro, através da história da
ciência e da cosmologia, quero mostrar de que modo
uma cosmologia sem ciência evoluiu para uma cosmologia científica, que é a nossa cosmologia hoje.
O livro pretende apresentar as várias fases de desenvolvimento da ciência cosmológica. A primeira
fase, que vai dos tempos primitivos até ao final da
Idade Média europeia, retrata o conflito entre uma
visão tradicional, mágica e religiosa e uma tentativa
de explicação racional, lógica, que podemos chamar,
hoje, uma explicação científica. Contra o materialismo
de Atomistas e Epicuristas, que defendiam um mundo
material governado por leis naturais, ganhou o mundo físico‑religioso de Aristóteles, que misturava leis
da Natureza (umas vezes certas, outras vezes erradas)
com forças motoras asseguradas por arcanjos, querubins e outras espécies afins que eram, como se veio a
verificar, irrelevantes e perfeitamente desnecessárias.
Numa segunda parte do livro descreve‑se a evolução,
desde o Renascimento científico europeu, nos séculos
xvi e xvii, com Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes
e Newton, no qual houve o mérito de colocar na ordem do dia a questão essencial de as mesmas leis da
Natureza serem válidas tanto na Terra como nos céus.
A Revolução Científica dessa época, complementada
com as revoluções científicas do começo do século xx,
incluindo a Relatividade e a Mecânica Quântica, permitiu pensar o Universo no seu todo como uma entidade com história, com evolução.
Por último, aborda‑se a visão científica actual do
Universo, com relevo para os grandes desenvolvimentos observacionais (novos telescópios) e para os grandes
desenvolvimentos teóricos, em especial com a Relatividade Geral e Restrita de Einstein: Inflação e Big Bang
com expansão acelerada do Universo, buracos negros,
massa‑energia escuras, radiação cosmológica de fundo,
ondas gravitacionais, etc., etc.
Qualquer criança pensa que é o centro do mundo.
E, porque não, o centro do Universo? Tudo se passa
à sua volta, tudo se vira para ela. Até o grande Sol,
todos os dias, desde a manhã que anda à sua roda! E
pais e avós satisfazem tudo o que a criança, sensatamente ou não, pretende. Quer dizer, o facto de, desde
crianças, vermos as coisas pelos nossos olhos, e quem
diz ver diz ouvir ou, em geral, sentir, leva‑nos a uma
visão muito especial do mundo em que vivemos. Não
há nada que não pareça centrado em nós.
Tudo parte, de facto, dessa visão infantil em que
o mundo parece estar bem centrado em nós. Um dos
grandes feitos dos homens do Renascimento foi exactamente conseguir deslocar o ser humano do centro do
mundo. Quando eu, por exemplo no meu quarto, rodo
a cabeça e olho em volta, vejo as coisas mexerem‑se.
Mas elas estão paradas, a minha cabeça é que se mexe.
Se andar no meu quarto a direito, da esquerda para a
direita, vejo as paredes e os móveis a deslocarem‑se da
direita para a esquerda. Novamente a ilusão. A Terra
leva um dia a dar uma volta em torno do seu eixo e
leva um ano a dar a volta ao Sol. Foi isso que Copérnico percebeu e, quando se preparava para morrer descansado e sem problemas com a hierarquia religiosa,
bem poderia ter dito: «é a Terra que anda enquanto o
Sol está parado». Talvez tivesse poupado, mais tarde,
maçadas a Galileu!
Mas Copérnico nada disse. Foi preciso passarem cerca de trezentos anos até ficar claro que Copérnico tinha
razão. Galileu esforçou‑se muito para convencer toda a
gente de que era ele, com Copérnico, quem estava certo, mas os seus argumentos não foram suficientemente convincentes. Com Newton, percebeu‑se que o Sol,
mais pesado, não se movia muito, e que o movimento
era da Terra. Mas foi preciso que Foucault, recorrendo
a um pêndulo de 67 metros de comprimento, pendura‑
do do tecto do Panteão de Paris em 1851, mostrasse
que o plano de oscilação do pêndulo acompanhava a
rotação da Terra.
O episódio de Copérnico, com tudo o que se seguiu,
não é mais do que um entre muitos que foram enchendo a história da ciência, em geral, e da astronomia e da
cosmologia, em especial. Porém, ele teve o mérito de pôr
frente a frente duas concepções antagónicas do Universo:
um Universo fechado, limitado, centrado na nossa visão
infantil do mundo, por um lado, e um Universo aberto,
talvez infinito, descentrado, admitindo uma pluralidade
de mundos, em princípio equivalentes, por outro.
A Terra, de facto, está na periferia da nossa galáxia, a Via Láctea, onde existem milhões de estrelas e
muitos — não se sabe quantos — sistemas planetários
do tipo do nosso sistema solar. E, sabe‑se hoje, existem milhões e milhões de galáxias no Universo. Haverá
alguma razoável justificação para a defesa da centralidade infantil, com base no ser humano e no terceiro
planeta, a Terra, que tem, ao que parece, por destino,
como aliás todos os planetas do sistema solar, rodopiar
incessantemente em volta do Sol?
Para a maior parte das religiões, em particular para
as religiões monoteístas, o ponto de partida reside na
centralidade do ser humano, do Homem, com H grande, que habita a Terra, como destinatário de todas as
mensagens divinas. Partem pois, digamos, do princípio
infantil. Não é, portanto, de admirar que tenham existido e continuem a existir tensões entre ciência e religião (ou religiões). No entanto, não parece que tenha
necessariamente que existir um conflito entre ciência e
religião. Primeiro, a religião, historicamente, é bem mais
antiga do que a ciência, devendo portanto ter uma base
de sustentação que não é, ou não tem que ser, a da
ciência. Depois, cientistas reconhecidos, como Galileu
e Newton, nunca sentiram um conflito desse tipo: estavam ambos profundamente convencidos de que o que
faziam não era mais do que decifrar o livro da Natureza, tal como ele fora escrito por Deus. Einstein, uns
séculos depois, não pensou de um modo muito dif rente. Não se afigura pois difícil imaginar um pacto de
coexistência pacífica entre ciência e religião com base
na tolerância e na liberdade.
Como foi dito, a ciência, como actividade humana
socialmente relevante, é relativamente recente, mas a cosmologia, como visão do Universo ligada a construções
mágicas e religiosas, é muito antiga. Embora mergulhe
as suas raízes nos tempos primordiais da humanidade,
como ciência, a cosmologia surgiu só no século xx. O
facto de se ter acabado por atribuir ao Sol o lugar de
centro do mundo, e isso aconteceu até ao século xix,
mostra bem como o conhecimento do Universo esta‑
va reduzido a pouco mais do que o conhecimento do
sistema solar (tal como já acontecera com Babilónios
e Gregos). «Tudo o resto eram estrelas, todas elas coladinhas no pano azul do fundo do Céu. De facto, só
nos finais dos anos 20 do século xx se fabricaram telescópios que permitiram ver para além da nossa galáxia
e possibilitaram uma especulação minimamente fundamentada sobre o Universo. É daí que nasce a ciência
cosmológica de hoje, a ciência que inclui o Big Bang,
a expansão acelerada do Universo, a radiação térmica
de fundo, a matéria escura e a energia escura, a relatividade geral de Einstein, os buracos negros e algumas
fantasias ligadas às viagens no tempo...
O inglês Stephen F. Mason é o autor do livro Histoire des Sciences (1956), título em francês. De facto tratava‑se de uma tradução do inglês — nesse tempo,
princípios dos anos 60, a jovem intelectualidade nacional continuava sob influência francesa — e comprei o
livro numa viagem supostamente libertadora a Paris,
paga com dinheiro de explicações a alunos quase sempre
preguiçosos. Só alguns anos depois, quando tive tempo
livre à minha disposição, li o livro, religiosamente, de
uma ponta a outra, «valorizando‑o» com comentários
escritos e pequenos cálculos a lápis. Quando acabei fiquei convencido de que haveria de ser historiador — ou
talvez filósofo — e que iria escrever um livro como o
de Mason. A ideia ficou, e passados uns tempos, ainda
nos anos 60, fui pedir ajuda ao Professor Silveira, respeitado professor de Física do Instituto Superior Técnico, para me orientar para o futuro. E à pergunta sobre
se achava bem eu ir estudar para historiador ou filósofo da ciência, a resposta veio logo. A ideia era esta:
«O menino aprenda primeiro qualquer coisa de física
e meta‑se só depois em fantasias.»
Assim fiz.
Voltando ao livro de Stephen F. Mason, estou agora
a cumprir a promessa que fiz, há uns 50 anos, de escrever como Mason, só que, não sendo profissional de
história da ciência, falta‑me o rigor, a clareza e a orga‑
nização lógica e coerente que tanto apreciava em Mason. Peço — e conto com — a tolerância do/a leitor/a."
Jorge Dias de Deus
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