domingo, 13 de setembro de 2015

Afaste-se da escola quem não é da escola

Anteontem foi publicado um texto no Diário de Notícias cujo título é Em 30 alunos, três a cinco têm uma doença mental". "Uma enormidade", foi a adjectivação usada pela pessoa que mo mandou. "Uma enormidade", respondi eu. Há que explicar...

Pedro Sousa Tavares, que assinou o texto, transcreve declarações de um especialista em psiquiatra e saúde mental:
"Em todo o mundo, a prestação de milhões de alunos é afetada por «problemas que não têm nada a ver com dificuldades socioeconómicas, preguiça ou dislexia". O que os afeta (...) são perturbações como a ansiedade, a depressão, o défice de atenção e a hiperatividade, muito mais frequentes se poderia imaginar: «Numa turma de 30 alunos há 3 a 5 que têm uma doença mental», garante, acrescentando que esta é uma estatística sempre igual, estejamos nós "em Portugal, Islândia, Bangladesh, Angola ou Estados Unidos". O impacto no desempenho - muitas vezes confundido com falta de empenho - é determinante: «Não conseguem ter a mesma capacidade de aprendizagem nem o mesmo desempenho cognitivo - e já agora também social, relacional e comportamental, explica». «Não conseguem ter atenção, não conseguem processar a informação, descodificar a informação e exprimir os conteúdos percebidos». Limitações que surgem «mesmo que as patologias sejam ligeiras»".
Apesar de a minha formação de base ser em Psicologia, não posso comentar estas declarações pois não sei que estudo foi feito para as sustentar e, logo, com tanta segurança. Parece-me tratar-se de um estudo internacional que talvez tenha beneficiado de amostras nacionais, talvez tenha abrangido todos os níveis e sectores de ensino, talvez tenham sido usados instrumentos devidamente validados para cada população (de modo a identificar a "ansiedade", a "depressão", o "défice de atenção" e a "hiperatividade"), talvez o tratamento dos dados seja digno de confiança...

Por outro lado parece-me que o discurso a que a notícia dá acesso é conceptualmente discutível: a "depressão" e o "défice de atenção" dificilmente cabem no saco (ao que parece sem fundo) que é o das "patologias", da "doença mental". As implicações para o campo da educação escolar ainda me parecem mais discutíveis, mas a "patologização da aprendizagem" está instalada e a tentação de a engordar é grande.

Passando por cima destas dúvidas (de monta), incido naquilo em que me posso pronunciar: a formação de professores.

É fatal como o destino: qualquer associação, confederação, sindicado, grupo de investigação, empresa, autarquia... que ambicione (maior) protagonismo e outras vantagens declara-se altruisticamente, salvador da escola, dos alunos, dos professores... e, através deles, à maneira do policial cómico Duarte & Companhia, "quiçá, da humanidade"
(As patologias acima indicadas pelo citado especialista, nas suas palavras, " podem levar no futuro a outras consequências para além do insucesso escolar").
O caso em apreço não é excepção a essa "força de vontade". Uma tal "Eutimia, Aliança Europeia Contra a Depressão em Portugal" elaborou um programa de formação contínua de professores, apresentou-a a uma mão bem cheia de municípios (com a autarquização da educação deu o passo certo, pois estas entidades passaram a ter um poder real no sistema educativo, nomeadamente de decidem uma parte do currículo das escolas que lhes estão afectas e da formação dos seus professores) que, naturalmente, o acolheram e, pela certa, o agradeceram (pois vêem neste tipo de propostas trunfos para a sua afirmação).

Assim, no Dia Mundial de Prevenção do Suicídio (há dias para tudo!), foi anunciado que esse programa está pronto para avançar, permitindo, numa primeira etapa (neste ano lectivo?) "treinar entre 1500 e 2000 professores" para que...
"... possam distinguir, na sala de aulas, o que são maus comportamentos e o que podem ser sinais de doença mental."
Semelhante informação é dada no jornal Público, num artigo assinado por Catarina Gomes com um título muito esclarecedor Professores com formação para identificar perturbações psiquiátricas nos jovens, isto é para...
"... saberem identificar «a diferença entre um comportamento desafiador, mas que é ‘normal’, e atitudes que podem esconder uma perturbação psiquiátrica nas crianças e adolescentes»".
Neste artigo adianta-se que o programa, Why School (que encontrei aquitem como objectivo:
"... melhorar a literacia e as aptidões na gestão dos problemas de saúde mental [por parte dos professores], em particular na identificação de casos, triagem, referenciação e apoio aos casos em risco" para "melhorar o acesso dos jovens aos cuidados de saúde mental".
Ou seja, muito basicamente, os professores vão ser ensinados a fazer um (pré-)diagnóstico com vertentes médicas (psiquiátricas), psicológicas e também pedagógicas. As considerações que urgem fazer a esta prática dariam, no mínimo, um longo artigo numa revista séria.

Limito-me, por agora, a notar um "pormenor" que envolve a noção de competência científica e ético-deontológica: diagnósticos e pré-diagnósticos médicos, psicológicos e pedagógicos são, respectivamente, da responsabilidade de médicos, de psicólogos e de pedagogos (estes na condição se terem preparação para tal). O professor não é médico, não é psicólogo, não é pedagogo, logo não pode fazer diagnósticos nem pré-diagnósticos que são atribuições desses profissionais. Os professores, lembremo-lo, são profissionais que ensinam, e, nessa conformidade, podem e devem fazer o diagnóstico do estado da aprendizagem dos alunos. Ponto.

Para que o leitor fique mais elucidado, deixo aqui um extracto do Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses sobre a avaliação psicológica
"A avaliação psicológica é um acto exclusivo da Psicologia e um elemento distintivo da autonomia técnica dos/as psicólogos/as relativamente a outros profissionais (...)"
A terminar, não consigo evitar uma pergunta retórica: Porque é que toda esta gente que anda à volta da escola e que não é a da escola não deixa os professores e os alunos em paz, concentrados no que a escola, efectivamente, é !?

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