sábado, 14 de setembro de 2013

ZÉ GRANDE, O MEU AMIGO FEITOR

Texto que nos foi enviado pelo nosso habitual colaborador Professor Galopim de Carvalho. 
Pintura de Dórdio Gomes
Zé Grande era o feitor de um importante lavrador com residência em Évora e pai de dois rapazes da minha geração. No Alentejo o lavrador não é o trabalhador que lavra a terra mas o dono delas. Via de regra, tem ao seu serviço um homem da sua confiança, bom conhecedor dos trabalhos agrícolas, incluindo os relativos à criação e negócio do gado. Zé Grande tinha sido porqueiro em criança, fora dos tempos de escola onde concluíra a 4.ª classe. Bom de cabeça, a leitura não lhe metia medo e, dizia-se, era esperto e fino que nem um doutor. Fora ganhão respeitado em todas as fainas, tendo revelado qualidades de organização do trabalho e de chefia que o fizeram chegar onde chegou.

O lavrador era um homem com estudos e invulgarmente culto, uma excepção na sociedade provinciana, atrasada e preconceituosa que ainda era a nossa nos anos 50 do século que passou. Conhecedor de arte, tinha em casa dezenas de pinturas originais, entre as quais recordo algumas do pintor arraiolense Dórdio Gomes, com magníficas paisagens alentejanas, onde os homens e mulheres do campo, o montado de cortiça e os cavalos eram temas dominantes. Apreciador da grande música, dispunha das maiores obras dos mais destacados mestres da Europa, em discos da Deutsche Grammophon, de 78 rotações. Foi na sua casa que ouvi, pela primeira vez, os concertos e as sinfonias de Beethoven, a abertura da ópera Tannhäuser, de Wagner, Daphnis e Chloé, de Ravel, a Sagração da Primavera, de Stravinsky e muitas outras.

Zé Grande era um homem de estatura avantajada, na casa dos 50 anos, bem parecido e bem falante. Era grande por fora e por dentro, diziam os que com ele privavam. Conhecia “de olhos fechados” todos os segredos da vida do campo, quer os do trabalho, quer os do dia-a-dia dos homens e mulheres que ali trocavam a força dos braço pelo pão que comiam.

Conheci-o numa das vezes em que, a convite do Domingos, o filho mais velho do lavrador, fui à herdade das Pedras Alvas, onde ele vivia. Ficámos amigos e foram muitas as vezes que nos sentámos à mesma mesa, no Café Arcada, quando ele vinha à cidade tratar dos mais variados assuntos próprios das suas funções.

Recordo o modo de se tratarem entre si estes meus amigos. Vingava nesse tempo, no Alentejo que conheci, a hierarquia da idade. O patrão velho tratava por tu o feitor e este, ao responder-lhe, dava-lhe senhoria. Aos filhos do patrão, que ele vira nascer e crescer e que, com o tempo, acabaram por ser seus patrões, o Zé dava o tu, ao que eles respondiam com o tradicional vossemecê.

Um belo dia de Maio, em que as searas de pão estavam a virar de verde a ouro, o Domingos levou-me a percorrer aquela mesma herdade. Andámos por lá o tempo todo numa charrete puxada pela Vermelha, uma elegante e ligeira égua, até fazer horas do almoço que ali e então se dizia “jantar”. Não vi toda a propriedade, tal a sua extensão, mas vi que as pedras alvas que deram nome à propriedade, eram as de um importante filão de quartzo leitoso que, por ser mais duro do que o xisto, aflorava, saliente, à superfície do terreno.

Na casa do feitor regalámo-nos com umas belas sopas de tomate, enriquecidas pelo pingo da linguiça e do toucinho tirado da salgadeira, aromatizadas com poejos e acompanhadas com ovos escalfados.

Estávamos de abalada e já prestes a entrar no velho Opel, quando o Zé, pedindo-nos que esperássemos um minuto, entrou em casa, saindo momentos depois com um par de botas de atanado que entregou ao jovem patrão.

- Podes usá-las à vontade, que já não te fazem bolhas nos pés.

Fiquei curioso face àquela conversa do feitor e, vínhamos nós na estrada, a chegar à cidade, perguntei ao meu amigo o que é que ele queria dizer com aquela história das botas e das bolhas nos pés.

É muito simples, - Respondeu-me, com um sorriso matreiro estampado no rosto. - O Zé Grande calça o mesmo número que eu, mas tem os pés mais calejados, mais valentes do que os meus. Assim, como as botas de atanado são duras como um corno, passo-lhas para a mão antes de as calçar. Ele besunta-as com sebo e anda com elas uma semana ou duas até as amansar.

A. Galopim de Carvalho

5 comentários:

João Boavida disse...

Belo texto este de Galopim de Carvalho. Mais um. Até o modo de contar, sem o pretender, é alentejano. Não saberei bem porque, mas é.

Anónimo disse...

Caro Galopim de Carvalho

Assim era no mundo rural, e também com sapatos.

Cumprimentos.

Ildefonso Dias disse...

Caro Professor João Boavida;

O texto poderá ser belo na medida em que retrata fielmente a realidade de uma época.
Mas trata a realidade da exploracão humana.
Pessoas como o Zé Grande, na maioria das vezes eram uns tiranos, oprimiam os trabalhadores, exploravam-nos até ao limite ... tudo em defesa dos seus senhorios, e da classe dos ricos (incultos, exploradores humanos, e não cultos ao contrário do que afirma o Professor Galopim) a que muitas vezes julgavam pertencer.
Evidentemente que o "amansar" das botas ao "menino" e a submissão do "Zé Grande" aos patrões diz bem até onde a sua alarvidade poderia chegar quando se tratar-se de se dirigir aos trabalhadores explorados.
É por isso que o texto é Alentejano.


Cumprimentos,

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Gostei do original que ilustra o tema alentejano do professor Galopim de Carvalho !

De Rerum Natura disse...

Estimado Ildefonso Dias
Tudo o que diz é verdade e eu conheci casos que inspiraram muitas das crónicas (por vezes, ficcionadas) que tenho trazido a público. Mas, nem todos os donos de terras agrícolas do Alentejo foram do tipo estereotipado do agrário/latifundiário, no sentido pejorativo mais divulgado. Nem o Zé Grande (nome fictício) foi o subserviente lacaio do patrão. Se assim não fosse, não tínhamos sido amigos.
Melhores cumprimentos
Galopim de Carvalho

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