domingo, 6 de janeiro de 2013

SOCIOLOGIA DO DIREITO DESPORTIVO NA MONARQUIA CONSTITUCIONAL

Novo texto de João Boaventura, que o De Rerum Natura muito agradece. Publica-se a primeira parte de seguida.

Os da Era nova ou da Era Velha, tinham a obrigação de saber que uma Monarquia Constitucional não é mais do que uma república com uma presidência hereditária.
Oliveira Martins

[les lois]…elles sont justes, puisqu’elles font le bonheur de
ceux qui les adoptent. Elles procurent, en effet, tous les biens.
Platon (1997: 106)


À ce train, on admettra que le Droit, dont on nous a enseigné
qu’il est constitué d’un ensemble de règles confinant au juste, 
et qui, par leur constance, assureraient la sécurité et le salut 
des individus, n’est en réalité, jamais acquis.
Arnaud, A.-J. (1998: 247)

As Constituições 

Refere Miranda (1985: 222) que o “constitucionalismo surge entre nós por via revolucionária; não por continuidade, mas por corte com o passado”, isto é, as Constituições consagram uma rotura com o passado, ou, dito sociologicamente, há na linha limite traçada por cada revolução um ritual de passagem que, pela sua função social, se deverá chamar, de preferência, ritual de consagração, legitimação, ou instituição (Bourdieu, 1982: 121; e 1986: 206). Contudo, de acordo com sete pontos de vista, não esgotados, as Constituições sofrem de algumas condicionantes:

1.º - Napoleão considerava que uma boa Constituição devia ser curta e obscura – como obscuras são as palavras – mas a legislação de suporte deveria ser clara e completa – na certeza de que, como afirmava Voltaire, “leurs nuances sont trop imperceptibles et trop nombreuses”, donde resulta – do ser curta e obscura, uma, e clara e completa, a outra – os pontos seguintes;

2.º - “As Constituições que dimanam das revoluções, são tudo, quase sempre, menos consequências do principio revolucionário” (Costa, 1871: 163);

3.º - "Loi fondamentale d'un État, qui définit l'étendue et les règles d'exercice de son pouvoir, la Constitution a pour rôle essentiel de dresser une barrière contre l'arbitraire. Mais, si elle pose les principes capables de conduire à l'établissement d'un «État de droit», elle n'a pas la possibilité, à elle seule, de déterminer la réalité politique"[1];

4. º - “Se puede decir que los gobiernos son representativos, pero ni la forma de representación ni las reglas constitucionales están estrictamente determinadas en el contexto social. Todas las sociedades modernas defienden la igualdad, pero pueden ser liberales o despóticas” (Aron, 1972: 16);

5.º - Salazar opinava que “a Constituição Portuguesa é ainda um compromisso entre o passado e o presente, ainda escravo em certos pormenores, de outros princípios” (Apud Ferro, 1982: 274);

6.º - “Não há vigência contínua de todas as Constituições, há espaços em branco entre elas, mesmo se, entretanto, são publicadas leis formalmente constitucionais (...)” (Miranda, 1985: I, 229).

7.º - Para Manuel Queiró, a Constituição é “um texto puramente proclamatório, cujo destino só pode residir no incumprimento da maior parte das suas disposições” [2].

Portanto, nem sempre o que está escrito nesse monumento jurídico, que dá pelo nome de Constituição, contempla todos os direitos fundamentais, ou o mínimo essencial em algumas matérias, como as respeitantes às actividades corporais, ou à saúde, que pecam pela omissão; ou, se esses direitos estão contemplados, também ficam esquecidos nos normativos. Por estas, ou outras, razões, há práticas sociais que se antecipam às Constituições: ou porque aparecem, prosseguem e permanecem no dia a dia, em paralelo com o silêncio daquelas; ou porque as práticas sociais e as Constituições se ignoram mutuamente.

Se a Constituição esquece as práticas físicas, estas dispensam a Constituição, na medida em que as mesmas perseguem e trilham o seu caminho. E nestas circunstâncias, a Lei das leis (Ribeiro: 1891, I, 240), não alcançando nem contemplando o campo do corpo, deixa de ser o acelerador ou o impulsionador do corpo em movimento. Ignorando e desconhecendo a prática física como um dos direitos fundamentais, ignora a saúde, marginaliza o tecido do movimento económico, e alheando-se das suas necessidades, oblitera as suas funções prejudicando a política social.

Por alguma razão os médicos, nos finais do século XVIII, princípios do XIX, abordavam os reflexos da actividade física – quer na ginástica quer na educação física – na economia animal, que o mesmo é dizer, manter a saúde estável e acudir às insuficiências geradoras de doença ou mal estar. O que é compreensível se entendermos que economia é, etimologicamente, regulação da casa, ou seja, regulação do corpo.

Embora, e excepcionalmente, a Constituição de 1933 tivesse referido no art.º 14.º que incumbe ao Estado reconhecer “as corporações morais que visem a educação física, e promover e auxiliar a sua formação”, apenas a de 1976 mereceu rasgados elogios de López Garrido, ao declarar que:
La regulación portuguesa es impecable. En el artículo 64 proclama el derecho a la salud, y sañala a continuación que tal derecho se hará efectivo mediante la creación de una serie de servicios, y por la promoción de la cultura física y deportiva. Pero lo más destacado es, sin duda, el artículo 79, que literalmente dice:”El Estado reconoce el derecho de los ciudadanos a la cultura física y al deporte, como medios de promoción humana, y le corresponde promover estimular y orientar la práctica y difusión de los mismos.” Así pues, el derecho al deporte es proclamado y garantizado por vez primera en el rango de auténtico derecho del hombre (Apud Prieto: 1979, 170).
O que a boa vontade do autor esquece é que, se legislar é fácil, mesmo aparentemente, o difícil é sempre realizar, na prática e no terreno, os itens publicados nas folhas oficiais dos governos, como alguns deputados da Monarquia Constitucional, da República e do Estado Novo, o reconheceram e declararam.

Convencionalmente, e salvando os sete pontos acima citados, poderá deduzir-se que:

1 - A Constituição de 1822, considerada a primeira lei fundamental portuguesa, resultante da Revolução de 24 de Agosto de 1820, marcou a transição da monarquia absoluta para a monarquia constitucional, ou liberalismo, mas não cuidou da saúde, pese embora as múltiplas referências médicas de manuscritos, desde o séc. XVIII;

2 - A Constituição de 1838, produto da revolução de 1836, pautou a passagem de um radicalismo vintista [3] para o domínio efectivo do poder real [4]; não dando qualquer indicação sobre o direito à saúde, e omitiu a actividade física, para poder justificar o conteúdo do artigo 119.º, onde se estipulava que os portugueses “são obrigados a pegar em armas para defender a Constituição do Estado, e a independência e integridade do Reino”, porque a defesa da saúde de um Reino, só é viável com a prévia defesa da saúde da nação;

3 - A Constituição de 1911 legitimou a revolução de 1910, instituindo a 1.ª República (ditadura das massas); omitiu a saúde, mas declarou que competia à Câmara dos Deputados a iniciativa sobre organização das forças de terra e mar (artigo 12.º), e, inutilmente, que competia ao Congresso da República “velar pela observância da Constituição e das leis e promover o bem geral da Nação” (artigo 26.º, 2.º), porque o Congresso não velou pela execução das leis que, embora não contempladas na Constituição, displicentemente preconizavam o campo do corpo;

4 - A Constituição de 1933 consagrou a revolução de 1926, implantando e legitimando o Estado Novo, corporativo e autoritário, ditadura do Estado, ou, como Salazar a denominava, democracia orgânica; embora obliterando a saúde, perfilhava e espartilhava a educação física e o desporto numa corporação (artigo 15.º), para instrumentalizá-los, dominando-os e domesticando-os, com o fim de lhes inculcar a ideologia do regime;

5 - A Constituição de 1976 dignificou a revolução de 1974, ao consagrar o regime democrático (Estado de Direito), e ao contemplar, de vez, o direito à saúde (artigo 64.º) e à educação física (artigo 79.º). Mas, a seu tempo, se dará testemunho de como o art.º 79.º se foi minguando das suas boas intenções, como se o descaro fosse lei.

Isto significa que cada Constituição, ao legitimar uma nova estrutura política, anula o carácter do anterior regime político, havendo, na transição de uma para a outra, uma zona cinzenta em que se assiste ao ligeiro diluimento de uma para dar lugar ao crescimento da outra.

Se todas elas representaram uma rotura com a legitimidade do passado pela introdução de alterações significativas nas relações sociais, económicas, políticas, e ideológicas, traduzidas, em princípio e, pelo menos, em letra de forma, há, contudo, uma fórmula que é comum a todas elas: a liberdade de reunião e de associação, coarctadas nos momentos de crises políticas, restringimento omisso na pós-Constituição de 1976, optando pela manipulação ou esquecendo intencionalmente o compromisso.

Como uma Constituição é a Lei das leis (Bacon: 1985, 29), importa averiguar em que medida, e de que forma, essas leis da lei, consagraram a saúde, as actividades corporais, as legitimaram, ou ignoraram, fossem elas, ginástica, educação física, jogos, desportos, ou signos aparentados, e quais as alterações significativas introduzidas para a melhoria e consagração do campo do corpo, ou, por outro lado, quais os fundamentos das omissões ou ambiguidades que as Constituições, no campo em discussão. O que parece induzir-se que a prática política tenha sido a de as alterações significativas incidirem mais nas leis promulgadas, por força da evolução do campo do corpo, nem sempre na melhor configuração, com a consequente alternativa, do que no campo do corpo por força dos normativos. Mas uma evidência se assinala; a de que o monopólio do campo jurídico está condicionado à legítima vontade e arbítrio do campo político, donde o permanente desajustamento destes dois campos com o do corpo.

Em síntese, o campo do corpo tem compelido o tecido legislativo a manifestar-se, a tornar-se visível, para assumir que o mesmo corpo, mais do que ser um instrumento poderoso para a propaganda do Estado, seria um poderoso instrumento para a melhoria e conservação da saúde. Mas, como diria Foucault: "Assim que o olhamos, o rosto da lei vira-se e volta a entrar na sombra: assim que queremos ouvir a sua fala, não surpreendemos senão um canto que nada mais é que a mortal promessa de um canto futuro[5].

O que significa ter a lei dois rostos, como Janus [6]: um, ignorando o mundo do campo do corpo, e o outro, legislando sobre o que desconhece, para esconder o que ignora. Competiria ao legislador interiorizar o exterior, para poder exteriorizar o interior, i. é, criar normas que manifestassem e revelassem o que a interiorização captou da real exteriorização, isto é, um quadro normativo que patenteasse ter o legislador captado esse mundo que lhe é exterior e dá pelo nome de campo do corpo, do qual seguidamente se dará conta.

Continua aqui.

João Boaventura

Notas:
[1] Apud Website http://encyclo.voila.fr/ (24.01.2003)
[2] Vide “O futuro sob prisão preventiva”, in Público, de 16.07.2003
[3] Ribeiro (1891: I, 199) falando dos primeiros deputados do liberalismo opinava: ”Sacerdotes da liberdade, proclamaram-se infalíveis, e fizeram-se inquisidores na sua religião. Eles, só eles a mandarem. O rei que os servisse incondicionalmente, e todos os mais que obedecessem. Era o preceito.” 
[4]  Sobre a Constituição de 1838 o jornal O Atleta n.º 6, de 5.5.1838, a páginas 42, tem este desabafo:”Além da espanhola que adoptámos como nossa no começo da revolução de 1820, contamos com a de 1822, a de 1826, e actualmente com a do ano presente (1838) tantos Códigos, e tantas vicissitudes máximas, temos experimentado no espaço de 18 anos.” Mas este reparo à adopção da Constituição de Cádis não parece correcto. Na 15.ª sessão do Congresso, de 13.2.1920, o deputado Fernandes Thomaz observara que: A constituição hespanhola não é um evangelho. Eu sou portuguez e estou aqui para fazer uma constituição portugueza e não hespanhola” (apud Ribeiro: 1891, I, 92). E o deputado Loureiro diria mais tarde que “a constituição portugueza não era a hespanhola, promotora de anarchias” (apud Ribeiro, 1892, II, 217). Sobre a elaboração da Constituição de Cádis, vide, de Ramon Solis, El Cadiz de las Cortes (Plaza & Janés, S.A., Editores, Barcelona, 1978), em especial o Capítulo 5. 
[5]  Foucault, Michel (2001: 39). O pensamento do exterior, Lisboa: Fim de Século.
[6] Janus representa o guardião das portas, controlando as entradas e as saídas. Por isso tem dois rostos, um virado para o exterior, e outro, para o interior. Vide, a este propósito, “Le modèle de Janus de la sociologie du droit”, in Droit et Société, n.º 1, (1985 : 117-134). Os autores deste artigo articulam La sociologie du droit comme champ de connaissance ou comme champ de pouvoir entre le droit et la sociologie numa tentativa de definir o campo da sociologia do direito.

Referências:
(1871) Costa, D. António da. Historia da instrução popular em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional
(1891) Ribeiro, Thomaz. Historia da legislação liberal portuguesa, Tomos I, Lisboa: Imprensa Nacional
(1892) Ribeiro, Thomaz. Ibid. Tomos II, Lisboa: Imprensa Nacional
(1924) Martins, Oliveira. Dispersos. Lisboa : Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional
(1972) Aron, Raymond. “Clase social, clase política, clase gobernante”, in Clase, status y poder, (II tomo), Madrid: Euramerica, S.A.
(1979) Prieto, Luís M. Cazorla. Deporte y Estado. Barcelona: Editorial Labor.
(1982) Ferro, António, Salazar, o homem e a sua obra. Lisboa: Fernando Pereira Editor
(1982) Bourdieu; Pierre, Ce que parler veut dire. Paris: Fayard
(1985) Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. III, Tomos, (3.ª ed.). Coimbra: Coimbra Editora, Limitada
(1985) Bacon, Francis. De la justice universelle. Paris: Librairie des Méridiens-Klincksieck
(1986) Bourdieu, Pierre. « Les rites comme actes d’institution », in Les Rites de Passage Aujourd’hui. Actes du Colloque de Neuchâtel 1981. Lausanne: L’Âge de l’Homme,
(1997) Platon, Les Lois. Paris: Gallimard
(1998) Arnaud, A.-J., Le Droit trahi par la Sociologie. Paris: L.G.D.J. 

5 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Professor João Boaventura;

"... na transição de uma para a outra, uma zona cinzenta ... "?!

Então não é logo que terminado o período revolucionário?! e cinzenta porquê?! o que tinha de cinzento "a sociedade sem classes" do Marocas!!!

Cordialmente,

joão boaventura disse...

Caro Ildefonso Dias

Uma Constituição não funciona como um Rei (Rei morto, Rei posto).

A Consituição é um mundo de intenções à espera da legislação que esclareça como alcançar as intenções propostas. E isso não se faz de um dia para o outro. Logo, a zona cinzenta, é aquela que decorre desde a publicação da Constituição até à total legislação de todas as intenções.

Uma casa habitável pressupõe, primeiro comprá-la, depois vem a zona cinzenta que decorre entre a aquisição da casa até ter luz, água, gás, mobiliário, etc. Quando tiver todos os apetrechos, a zona cinzenta desapareceu.

Cordialmente

Ildefonso Dias disse...

Professor João Boaventura;

"a zona cinzenta desapareceu"?! ou melhor será dizer que "simplesmente ela exerce-se em camadas mais fundas, interessando os alicerces e deixando provisoriamente de parte a epiderme."?

Se pensarmos que a zona cinzenta desapareceu não corremos o risco de estar no lugar daquelas pessoas “a quem os acontecimentos surpreendem e que até ao fim negam aquilo que é a própria evidencia.”?
[veja-se a surpresa que pode ser, para algumas pessoas, o recente post 'Foi “uma infelicidade”' da Professora Helena Damião]

Professor, estas minhas interpretações/conclusões são tiradas da conferencia “A Cultura Integral do Individuo” do Professor Bento de Jesus Caraça de que lhe transcrevo um pouco para melhor compreensão da minha ideia:

(…) “Mas, mesmo nesses períodos de tranquilidade, as forcas íntimas que trabalham a estrutura social não estão em repouso. Não é difícil discernir as correntes que carreiam incessantemente os materiais para a nova fase de luta. A agitação do organismo social não é menos viva, simplesmente ela exerce-se em camadas mais fundas, interessando os alicerces e deixando provisoriamente de parte a epiderme. Por isso, em todas as épocas de transformação nas relações sociais se encontram sempre pessoas a quem os acontecimentos surpreendem e que até ao fim negam aquilo que é a própria evidencia.”

Cumprimentos cordiais,

joão boaventura disse...

Caro Ildefonso Dias

No fundo, a zona cinzenta, no caso vertente, significa apenas que uma Nova Constituição não apaga totalmente a anterior, pelo que o novo regime vive praticamente debaixo da sobreposição de duas Constituições, daí o seu cinzentismo ou, usando a linguagem epidérmica, sob duas epidermes, das quais, a nova vai desfazendo lentamente a anterior.

Cordialmente

Ildefonso Dias disse...

Professor João Boaventura;

Estou esclarecido quanto à boa interpretação das suas palavras. E aproveito para o felicitar pelo seu trabalho.

Muito obrigado, e aguardo a continuação.

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Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...