sábado, 5 de janeiro de 2013

A confusão

Há um ano A.S decidiu mudar de vida. Deixou o trabalho que tinha e lançou-se na aventura de viver 11 meses e 11 dias com 1111 euros. Em troca das coisas de que precisava fez de tudo: maquilhagem, currículos, limpezas e até alimentou galinhas. Agora já não tem mil euros, mas não vai voltar a trabalhar.
O extracto acima, dum texto recente do jornal Público, levou-me a abrir a ligação do blogue de A.S., um diário centrado numa experiência pessoal. O tom é mais do que entusiástico, é eufórico...
Nestes dois dias recebi mais de 2000 subscrições, mais de 1500 pedidos de amigos, uma data de convites para dar palestras, entrevistas para a tv e rádio e inúmeras trocas, tais como: telecomunicações, calças usadas, gelado e bolas de berlim, horta de cogumelos, alojamento em Cabo Verde, almoços e jantares, retratos em caricatura, a revisão do meu livro, a edição do meu livro em formato digital... eu sei lá!!!
Este discurso é apenas um exemplo dos muitos discursos ligeiros, sintonizados e alheados do real, que têm sido acolhidos e corroborados na comunicação social.

Para perceber o seu sentido e implicações é importante retomar a diferença, a enorme diferença, entre "frugalidade", como opção de vida, e "pobreza", como acidente de vida, feita aqui por Norberto Pires.

Diferença que devia ser tida em conta pelos jornalistas, que, em tempos mais recentes, têm, muito airosamente e sem ponta de crítica, insistido no "relato de casos" de pessoas que dizem viver felizes à míngua. Melhor, que por viverem à míngua, acabam (enfim!) por se encontrarem a si próprias, por encontrarem um sentido para a sua vida, por encontrarem sei-lá-mais-o-quê... A míngua é, pois, a «condição» de plenitude.

O livre arbítrio, que necessariamente recai sobre cada um de nós, pode conduzir-nos a essa escolha, que alguns considerarão franciscana mas que terão de aceitar como legítima, tão legítima quanto outra qualquer escolha adulta e responsável.

O problema não está aí, o problema está na falta de discussão de tal «condição», sobretudo quando emerge em toda a sua pujança, confundindo pobreza com frugalidade. Confusão que é particularmente grave em tempos perigosos, como os que atravessamos, em que a mistificação avança e submete cada um a desígnios que não escolheu.

Concretizo esta afirmação socorrendo-me de três aspectos que entendo serem os mais óbvios.

(1) Essa falta de discussão faz passar a mensagem oculta, mas fortíssima, de que os bens materiais a que nos «acostumámos» e tomámos como certos, seguros e eternos, mesmo os mais elementares - trabalho, casa, alimentos disponíveis no frigorífico, uns trocos no bolso... - não são fundamentais.

(2) Daí decorre facilmente a generalização: só o desprendimento (por parte de todos) desses bens materiais, acessórios e obstaculizantes, conduzem (sem qualquer sacrifício, antes com alegria) à verdadeira existência.

(3) A ausência de crítica relativamente aos dois aspectos anteriores afasta a atenção de carências materiais que são uma realidade bem concreta para cada vez mais pessoas, que, de repente e sem terem feito qualquer opção, deram consigo e com os seus no estado de pobreza. Mais do que isso, obscurece essas carências, e as angústias que desencadeiam, bem como a possibilidade de se pensar em alternativas dignas.

Em suma, essa confusão redunda em (mais) uma manifestação do «politicamente correcto»: quem se desvia do discurso ascético deve tratar de perceber que está no caminho errado e, naturalmente, desalinhado. Resta-lhe, portanto, alinhar-se, sob pena de ser apontado, punido, excluído...

Esta estratégia é muito usada por governantes, porque, infelizmente, a verdade está longe de constituir o cerne das suas preocupações. Sabemos isso e defendemo-nos, reagimos. Mas o mesmo não acontece quando passa para a lavra de jornalistas, que ainda acreditamos terem um compromisso com a verdade, apurada e validada a partir de diversos ângulos.

A terminar, volto a Norberto Pires: "muitas vezes essa «confusão» é intencional e tem objetivos obscuros (entram aqui conceitos ideológicos muito perigosos), outras vezes é o resultado de se falar com o coração (sob efeito da emoção) e não se prestar a devida atenção ao que diz".

De facto, não sei a que se deve essa confusão, mas concordo que é, "de facto, muito grave!"

5 comentários:

Joachim disse...

Além de grave é estúpido.
E é insultuoso para quem passa por dificuldades, em particular se tem família e filhos para alimenter e educar.

José Batista disse...

Sobre isto, que é deveras pertinente, e muito mais do que isto, vale a pena ler "OS CONVIDADOS DA MESA DE NATAL DOS PORTUGUESES" de José Pacheco Pereira, aqui: http://www.abrupto.blogspot.pt/

Anónimo disse...

Nós adoramos e nossos pais (alguns) já praticam faz algum tempo. Achamos excelente ideia e trocamos coisas entre nós há anos, comida, bebidas, roupa, calçado e tantas outras coisas.

Vários alunos

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Sai fora de confusão, (in)trodição.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Gostaria de expressar que a confusão pertence por demarcar o nível de interpretação.

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