Relógio atómico
Texto recebido do Prof. Galopim de Carvalho, que agradecemos:Do que me tem sido dado ler em obras de divulgação sobre Física (só de divulgação, pois que a Física pura e dura não está nem estará ao meu alcance) julgo saber que o problema da unidireccionalidade do tempo das nossas vidas, o dos chamados sistemas complexos, ainda é, como escreveu Carlos Fiolhais neste blogue, em 8 de Dezembro de 2011, um dos grandes mistérios desta admirável ciência. Se é verdade que a Segunda Lei da Termodinâmica distingue futuro do passado, uma vez que, num sistema isolado, a entropia cresce espontaneamente com o tempo em todos os processos reais (ditos irreversíveis), a mecânica clássica ou quântica não conseguem fazer essa distinção. Também para Einstein, o autor da mecânica relativista, essa diferença não existe, dado que as não encontrou nas equações fundamentais da física.
Mas não é sobre o tempo dos físicos que ousei escrever estas linhas. Esse tempo só eles sabem abordar. O meu propósito limita-se a abordar o tempo do quotidiano, o, tempo que,se associa ao mundo macroscópico.
Nesta divagação ocorreu-me perguntar:
- Sem algo que o suporte, o tempo existe?
A cosmologia e a geologia convidam-nos a lidar com milhares de milhões de anos, extensões de tempo inabarcáveis, praticamente eternas, face à efemeridade das nossas vidas. Centenas de milhões de anos a mais ou a menos, nos primórdios da matéria de que somos feitos, nós e o Universo inteiro, representam o mesmo grau de indefinição do milhão a mais ou a menos no tempo dos dinossáurios, do mais ou menos um ano na história do velho Egipto, ou do mais dia, menos dia, mais minuto, menos minuto, no tempo das nossas vidas. Da Geologia à Pré-história e à História, bem como do ontem ao agora, a escala do tempo encurta-se à medida que se vai precisando a sua duração. Na vivência do quotidiano apenas contamos os dias, as horas, os minutos e, por vezes, os segundos. Fracções de tempo mais pequenas do que o segundo, como décimas e centésimas, são-nos acessíveis na sequência das transmissões televisivas de competições desportivas, onde os cronómetros electrónicos qualificam os vencedores e determinam aos recordes. Mas há medições de tempo em escalas ainda mais reduzidas, na ordem das milésimas de segundo, das milionésimas, e mesmo mais pequenas. Nano, pico, femto e ato são prefixos acopláveis à palavra segundo (nanossegundo, picossegundo, atosegundo) para referir unidades muitíssimo mais reduzidas (um sobre mil milhões de segundo, um sobre um milhão de milhões de segundo, etc.). Trata-se de unidades de tempo ínfimas, igualmente inabarcáveis pelo comum das gentes, mas que têm lugar importante em domínios da física teórica e experimental.
Num ensaio de pura especulação, eu, que não tenho a preparação em física suficiente, estou em crer que um só instante não tem tempo e que o tempo, parecendo algo de real, não tem, só por si, qualquer significado. Posso mesmo aceitar que o tempo, sem nada que o suporte, não existe. Aos físicos a sabedoria de se pronunciarem.
Existem, é certo, medidas do tempo. Medimos sucessões de acontecimentos por comparação com sucessões de outros acontecimentos. É como medir pesos com outros pesos, e comprimentos comparando-os com outros comprimentos. É minha convicção, posso estar enganado, que um litro de água vale pelo líquido que essa medida encerra. Mas o que é um litro de nada? E o que é um quilo sem que seja de qualquer coisa? E um metro de coisa nenhuma, que significado tem? Da mesma maneira, aceito que um ano de vida vale por aquilo que nele acontece.
Fenómenos periódicos do nosso dia-a-dia dão-nos a percepção do tempo. O nascer e o pôr do Sol, as fases da Lua, o apetite, a fadiga, o envelhecimento das pessoas e das coisas fazem-nos sentir que algo decorre, se esgota, se renova...
O deslizar da sombra num quadrante solar, um pêndulo que oscila cadenciado, a areia passando no estrangulamento de uma ampulheta ou a água a correr numa clepsidra são meios, mais ou menos padronizados, de avaliar sucessões de acontecimentos a que chamamos tempo, o mesmo que hoje podemos quantificar, instantaneamente, no nosso relógio de pulso, graças à engenhosa aplicação do nosso conhecimento científico das propriedades piezoeléctricas do quartzo.
Sem dimensão, o presente é um instante. Assim, em linguagem figurada, o presente, ou o agora, é como que uma ponte sob a qual se escoa o rio do tempo. Dela se afasta a água, incessantemente, como passado e, para ela, também incessante e inevitavelmente, se dirige como futuro. O agora não tem tempo. O amanhã e o futuro são projecções lógicas do pensamento com base na experiência, que é sempre passado.
O tempo não volta para trás, diz a sabedoria popular. Com efeito, o tempo do quotidiano tem um só sentido, o positivo, o do “para a frente”, o do “soma e segue”. Nunca o negativo, o do “volta para trás”. Recuar no tempo é, todavia, um exercício possível, ao alcance da nossa capacidade mental. Fazemo-lo apelando à memória, seriando registos sucessivamente mais antigos, gravados nos locais próprios do cérebro, onde buscamos o nosso saber arquivado. Todos nós viajamos para trás no tempo ao recordar. Fazer Geo-história, Pré-história ou História é pesquisar e manipular documentos registados, quer seja nas rochas e nos fósseis, quer nos achados arqueológicos ou em pergaminhos e papéis, quer ainda, como acontece nos tempos actuais, numa multitude de registos magnéticos. Tal pesquisa é, afinal, como no apelo à memória, viajar no tempo ao contrário.
A. Galopim de Carvalho
5 comentários:
A nossa percepção da-nos a entender que existimos num mundo a quatro dimensões, as três espaciais e mais o tempo, mas na realidade comporta-se mais como um fluxo. E nós experimentamos esse tempo, contemplando o passado, que está em cada coisa que ocorre (ou não) e ao mesmo tempo antecipando a cada instante o futuro, o que vai ocorrer (ou não).
A minha percepção é que o tempo é um dos grandes problemas das teorias científicas, a simples variação do fluxo temporal, deveria ser um absurdo (que implicasse uma divergência na energia), a nossa percepção (e a nossa experiência) mostram que o tempo não é uma variável como as outras e só a nossa imaginação permite que a tratemos de outro modo (sem que isso seja um absurdo para nós).
Donde a secular quadra ponderando:
O tempo perguntou ao tempo
Que tempo o tempo tem
O tempo respondeu ao tempo,
Que o tempo, tempo não tem.
E, a propósito, a oportunidade de contemplar o tempo a passar, no
Relógio do Mundo
Cordialmente
Tenho na mão um suplemento do jornal "Público" de 17 de Maio de 2008, em que António Melo faz uma "entrevista ensaio" (páginas 47-50) a várias personalidades (dois matemáticos e três físicos):
Nuno Crato;
Paulo Almeida;
João Caraça;
Jorge Dias de Deus;
e Paulo Crawford.
O título da peça é: "Em busca do tempo nunca encontrado". E o primeiro período da introdução reza assim: "Ninguém sabe o que é o Tempo, mas é muito provável que ele esteja a acabar." E pouco mais adiante escreve-se: "Dos cinco reputados cientistas nenhum sabia, de saber feito, o que era o Tempo, deram explicações diferentes uns dos outros e admitiram, com espantosa ingenuidade, que realmente não sabiam. Quanto a Deus, pior ainda, não é certo que ainda esteja neste Universo."
Mesmo tratando-se de uma revista publicitária, e não sabendo (nem então nem agora) quem é o autor da peça, li atentamente o depoimento de cada sábio. E optei por guardar a revista.
A Ciência não trata do que é o tempo. Nem o que é o espaço, nem o que é a substância, nem o que é uma lei, nem o que se as coisas poderiam ser de outra forma. Essa é uma tarefa da Filosofia e se olharem para a Filosofia encontraram milhares de páginas sobre o conceito de tempo, com cambiantes que normalmente os cientistas nem sonham e completamente ignoram. Perguntar a um cientista o que é o tempo é o mesmo que perguntar a um filósofo o conjunto de soluções de uma dada equação diferencial aplicada a um sistema dispersivo concreto. Só por ignorância.
Isso é uma simplificação (um pouco absurda), a ciência também trata do tempo, assim como a filosofia (e até a religião).
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