Com o prazer de sempre, transcreve-se mais um excelente texto de Eugénio Lisboa, ensaísta e crítico literário,
vindo a lume no último número do “JL”:
As livrarias são sítios onde se
vendem livros da mais variada espécie e propósito, jornais, revistas, discos,
vídeos, áudio-livros, etc. Para quem gostasse de ler, as livrarias costumavam
ser, antigamente, lugares quase sagrados, onde se folheava, apetecidamente, espécies
que nem sempre se compravam. A Buchholz,
situada nos Restauradores, na altura em que eu frequentava engenharia, era,
para mim, um lugar acolhedor e mágico.
Gerida por uma alemã competente,
culta e autoritária, encontrávamos ali a malta toda da Nouvelle Revue Française: Gide, Proust, Valéry, Montherlant, Martin
du Gard... e muita outra que nada tinha a ver com “la bande à Gide”. Tinha uns
sofás convidativos, onde prolongávamos, sossegadamente, a manipulação platónica
dos livros para que não havia, de momento, dinheiro que os comprasse. Não se
ficava com complexos de culpa, porque, quando comprávamos mesmo, o carimbo que a vigorosa Catarina punha no recibo não dizia,
secamente, “Pago”, mas, antes, carinhosamente, “Visite-nos mesmo sem comprar”.
Era bonito, era simpático e não tínhamos problema em entrar ali, mesmo em dias
de vacas magras.
As livrarias, como pontos de
venda de livros, tal como hoje as concebemos, são lojas relativamente recentes.
Talvez muitos leitores não saibam que a mais antiga livraria do mundo existe
ainda, é portuguesa e chama-se Bertrand
(os franceses reivindicam, sem fundamento, esse título para a sua Livraria Galignani de Paris, que, fundada em 1520,
em Veneza, foi, de facto, instalada em Paris, em 1856, isto é, 83 anos depois
da Bertrand). A livraria portuguesa
existe, em actividade não interrompida, na Rua Garrett, em Lisboa, desde 1773.
Fundada em 1732, no Loreto, foi, em 1755 destruída pelo terramoto que tanto
perturbou espíritos como Voltaire, Kant e Goethe. Depois da reconstrução da
cidade, por obra e graça do Marquês de Pombal, na data acima referida (1773), a
nova Bertrand foi instalada e, de
então para cá, não cessou de funcionar. Hoje, hélas!, a Bertrand já não é o que era: a cadeia Bertrand perdeu todo o
“charme” que costumava ser próprio dos espaços onde os amantes de livros
pousavam a namorar qualquer espécie bibliográfica longamente apetecida.
Hoje, na época das “bestas céleres” (vulgo “best-sellers”), as Bertrands, como quase todas as livrarias “de cadeia”, atiram-nos à cara, logo a partir das montras, o lixo editorial mais vendável, escondendo, com recato, as verdadeiras preciosidades. As mais espessas porcarias, em papel encorpado e capas vistosas, gritam-nos, wagnerianamente, o seu imenso “valor de mercado”, em tabuleiros bem aviados, que não deixam ver, facilmente, o oiro de bom quilate. A magia discreta, mas profunda das livrarias de ontem desertou dos grandes espaços sem sedução e foi-se abrigar, quase clandestinamente, em locais menos imponentes, mas onde sopra algum vento fundador.
Hoje, na época das “bestas céleres” (vulgo “best-sellers”), as Bertrands, como quase todas as livrarias “de cadeia”, atiram-nos à cara, logo a partir das montras, o lixo editorial mais vendável, escondendo, com recato, as verdadeiras preciosidades. As mais espessas porcarias, em papel encorpado e capas vistosas, gritam-nos, wagnerianamente, o seu imenso “valor de mercado”, em tabuleiros bem aviados, que não deixam ver, facilmente, o oiro de bom quilate. A magia discreta, mas profunda das livrarias de ontem desertou dos grandes espaços sem sedução e foi-se abrigar, quase clandestinamente, em locais menos imponentes, mas onde sopra algum vento fundador.
As grandes livrarias de ontem, dentro
e fora de Portugal, eram, antes, locais onde se encontravam, a horas certas,
as grandes figuras carismáticas da cultura europeia. Na Bertrand, pontificava Aquilino, na Sá da Costa, António Sérgio (aí
o encontrei, numa tarde inesquecível), na livraria de Adrienne Monnier - AuxAmisdes Livres – podiam ver-se, entre
as duas guerras, os maiores escritores franceses do tempo e, nas suas
prateleiras, desafiavam o apetite do leitor os livros de Gide, Claudel, Valéry,
Proust, Martin du Gard... Ainda em Paris, no 12, Rue de l’Odéon, a
livraria Shakespeare and Company, dirigida por Sylvia Beach, atraía os
grandes escritores anglo-saxónicos: Ernest Hemingway e James Joyce eram, ali,
figuras certas, no período entre guerras. No seu livro célebre, A MoveableFeast, o grande ficcionista
americano deixou um testemunho comovente, de que transcrevo uma curta passagem:
Eis um breve e saboroso retrato de uma
livraria, de uma atraente livreira e de um cliente tímido e a caminho da
celebridade... Hoje, há poucas livrarias que sejam, assim, pequenos mundos ricos,
acolhedores e calorosos – e dispondo de um stock
que prime pela qualidade. Lembro-me, entre nós, de algumas poucas: a Galileu, em Cascais, a Culsete, em Setúbal, a Lello, no Porto (esta, uma das vinte
mais belas do mundo).“Nesse tempo, eu não tinha dinheiro para comprar livros. Pedia-os emprestados à biblioteca da Shakespeare and Company; a biblioteca-livraria de Sylvia Beach, 12, Rue de l’Odéon dava, com efeito, nessa rua fria, varrida pelo vento, uma nota de calor e de alegria, com o seu fogão, no inverno, as suas mesas e as suas estantes repletas de livros, as suas vitrines reservadas às novidades e, nas paredes, as fotografias de escritores célebres, mortos ou vivos. (...) A Sylvia tinha um rosto animado, de traços afinados, olhos castanhos tão vivos como os de um animalzinho e tão cintilantes como os de uma rapariga, e cabelos castanhos ondulados que penteava para trás, para dar relevo à sua bela testa, e que formavam uma massa espessa, cortada rente por baixo das orelhas, à altura da gola do casaquinho de veludo escuro, que envergava nessa altura. Tinha pernas bonitas. Era amável, viva e cheia de simpatia para com todos, e ávida de gracejos e mexericos. Nunca conheci ninguém que se tivesse mostrado tão gentil comigo. Sentia-me extremamente intimidado, quando entrei, pela primeira vez, na livraria e nem sequer trazia comigo dinheiro que chegasse para me inscrever na biblioteca de empréstimos. A Sylvia disse-me que podia entregar o montante do depósito de garantia, quando dispusesse de dinheiro para o fazer.”
Imagino a dificuldade em que devem viver hoje, varridas por este vento árido, malévolo e arrasador de neo-liberalisamo assassino, infame e sem escrúpulos. Quando eu era estudante do Instituto Superior Técnico, muitas vezes sacrifiquei refeições, para poder comprar os livros que cobiçava. Para adquirir o Journal do Gide, na Pléiade, adiei, por um ano, a compra de um fato. Convido, pois, os amantes sinceros de livros e de boas livrarias plenas de atmosfera, carisma e genuína qualidade, a fazerem, se puderem (se os tais ventos deixarem...), um ou outro sacrifício pessoal, que permita a salvação destas jóias da coroa que são as três livrarias que citei e mais uma ou outra que eu tenha involuntariamente omitido. Sejamos bons conspiradores a favor de uma boa e desesperada causa!
O livro não é apenas um “produto” – porque tem alma e dá vida à vida.
Eugénio Lisboa
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