quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Livros com química: Os miseráveis de Victor Hugo



As aventuras de Jean Valjean, condenado às galés por ter roubado um pão, e das dezenas de personagens com quem se cruza e relaciona no seu regresso como um misterioso, honesto e benemérito empresário de sucesso, são um dos muitos percursos que se podem fazer pela leitura de Os Miseráveis, um romance onde Victor Hugo parece ter querido contar-nos tudo. Podemos atravessar e conhecer com pormenor os esgotos de Paris e a sua história, participar na utopia desesperada da Comuna de Paris, assistir a injustiças e encontrar a bondade. E poderemos também deparar-nos com muitos aspectos científicos, de química, em particular.

Numa das passagens mais famosas e insólitas, Victor Hugo, coloca na boca do estudante alcoólico Grantaire referências avançadas e precisas de conhecimentos químicos. Este, num discurso inflamado pelo álcool refere que os cabelos de [Matelote] são cor de cromato de chumbo para mais à frente garantir que vamos destituir o governo tão certo como haver quinze ácidos entre o ácido margárico e o ácido fórmico. No primeiro caso, Hugo refere-se a um pigmento amarelo que ainda há pouco tempo era usado para as riscas amarelas das estradas e, no segundo, a afirmação sobre os ácidos está absolutamente correcta. De facto, na série de ácidos carboxílicos de fórmula geral CH3(CH2)nCOOH, com n=0,...,15, que se seguem ao ácido fórmico (fórmula HCOOH) existem quinze ácidos até ao ácido com n igual a quinze que é, precisamente, o ácido heptadecanóico (ou margárico). 

Mas há muitas mais citações e referências à químicas em Os miseráveis. Noutra passagem, um acontecimento é referido como tendo agido na sua alma, no estado em que estava, como certos reagentes químicos que actuam sobre uma mistura precipitando um componente e clarificando o outro. Noutra, é dito que uma vista produziu nele um choque galvânico.

Mas, neste livro, a química não é só usada em metáforas e imagens. A descrição minuciosa do processo industrial inventado por Valjean tem aspectos químicos interessantes, embora ambíguos. Valjean diz ter melhorado o processo de imitação do azeviche, substituindo a resina e o negro de fumo pela goma laca e a terebentina, mas não é muito claro como isso poderá tornar o processo mais económico, um aspecto de análise do livro que não parece ter ainda sido suficientemente explorado.

Também as mais de cinquenta páginas de descrição minuciosa do sistema de esgotos de Paris e de discussão sobre a questão da reciclagem do que circula nos esgotos, com referência directa ao químico Justus Liebig, é muito significativa. Leia-se o seu início: Paris atira todos os anos vinte e cinco milhões para a água. E isso sem metáforas. Como e de que maneira? Dia e noite. Com que objectivo? Sem objectivo. Com que intenção? Sem intenção. Porquê? Por nenhuma razão. Por meio de que orgão? Através dos seus intestinos. O que são os seus intestinos? O esgoto.

A agricultura científica entusiasmava os cientistas da altura, em particular Liebig a quem parecia um desperdício os esgotos lançarem no mar um adubo valioso. Também Davy e outros escreveram tratados sobre agricultura e Hugo terá, certamente, compreendido bem a importância desta para melhorar a vida das pessoas. Num outro ponto do livro Valjean indica que a folha de urtiga quando tenra é um excelente legume e depois de velha tem filamentos e fibras como o linho e o cânhamo. Cortada é boa para as aves, pisada é boa para os animais. A semente da urtiga na comida do gado faz-lhes o pêlo luzidio e a raiz misturada com sal produz uma bela cor amarela, além de ser um excelente prato. Faltou referir as propriedades medicinais, mas, neste caso, o que Hugo quer realçar é que há tesouros no que se desperdiça. Não há más plantas nem maus homens, o que há é maus agricultores, diz Hugo pela voz de Valjean.

Em Os miseráveis podemos também encontrar indícios da química que ainda não existia na altura. Na sequência do roubo de uns talheres de prata são referidas as desvantagens dos talheres feitos de outros materiais comuns na época: estanho, ferro e madeira. A falta de referência aos talheres de alumínio indica claramente que este era um metal ainda pouco comum. O ferro inoxidável não era também ainda conhecido. A iluminação era feita principalmente com velas, embora a electricidade seja muito referida no livro. Não existiam antibióticos nem analgésicos ou antipiréticos eficazes. A fome e a doença, que infelizmente ainda existem em muitas partes do mundo, eram comuns mesmo no centro da Europa. E, no entanto, as pessoas poderiam ter vidas miseráveis e estarem expostas a provações e sofrimentos físicos que hoje dificilmente conseguimos imaginar, mas certamente também podiam ser felizes, ou infelizes, como actualmente. Victor Hugo numa citação famosa diz que se pode acabar com a miséria mas não com a infelicidade. De certa forma, Hugo poderá ter razão: ao mesmo tempo que a química ajuda a acabar com a infelicidade através de melhores medicamentos, as pessoas vão descobrindo novas razões e formas de serem infelizes.

Agora que vai estrear uma nova versão em filme, pode ser interessante reler o livro, ou ouvir o audiolivro no original ou em inglês (mais de sessenta horas de audição gratuitas disponíveis em http://librivox.org/)

Referência sobre o capítulo dos esgotos
Marald, Erland. "Everything Circulates: Agricultural Chemistry and Recycling Theories in the Second Half of the Nineteenth Century." Environment and History 8, no. 1 (February 2002): 65–84 (http://www.environmentandsociety.org/node/3111, acedido 2 Janeiro de 2013).

16 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo bom gosto.

Judite Castro disse...

Experimentem também esta abordagem diferente:

Os Miseráveis, de Victor Hugo - O romantismo como forma de humanização do real

http://www.omilitante.pcp.pt/pt/318/Cultura/697/

Judite Castro disse...

Já agora... Esqueci no comentário anterior: Parabéns, também, pelo bom gosto. Embora estando lá, nunca tinha "visto" esta perspectiva da química. Obrigada.
Bom ano

Anónimo disse...

"haver quinze ácidos entre o ácido margárico e o ácido fórmico"

O que é que isto significa?
O que significa um ácido estar entre outros dois?

Sérgio Rodrigues disse...

Obrigado pelos comentários. Acrescentei uma frase a explicar a química da comparação que Grantaire utiliza. Bom ano para todos!

Cláudia da Silva Tomazi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Batista disse...

Um dos capítulos que mais me impressionou na leitura de "Os Miseráveis" no que respeita a conhecimentos relacionados com a ciência, é o que se refere às (supostas) vantagens dos esgotos (intestinais) humanos, traduzido, por exemplo, nisto: "A ciência, depois de ter por muito tempo andado às apalpadelas, sabe hoje que o mais fecundante e eficaz adubo é o excremento humano" (...) "E que se faz deste ouro-esterco? Atira-se ao abismo" (terceiro e quarto parágrafos do capítulo 1 do livro segundo, intitulado «o intestino de leviatã»; volume V), em que é patente o desconhecimento, normal à época, do perigo higiénico dos "colibacilos" como a «Escherichia coli», que pode constituir 40% da massa das fezes humanas.
Mas toda esta obra de Victor Hugo está cheia de "afirmações científicas" extraordinárias, como esta outra (no mesmo volume): "A igualdade tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. (...)"A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos, eis a lei. Da escola idêntica sai a sociedade igual. Sim, instrução! Luz! Luz! Luz! (...) o século vinte será venturoso".

Foi, não foi?

Andando para trás, na obra, no volume quarto escreve-se: "Com a ascenção do género humano, as camadas profundas sairão muito naturalmente da zona de perigo. O desaparecimento da miséria far-se-á por uma simples elevação de nível" e umas linhas mais à frente: ... "a eclosão próxima do bem estar-universal, é um fenómeno divinamente fatal"

Estamos a ver como tem sido e é...

E recuando ainda mais um pouco, no volume III, a defesa de Jean-Jacques-Rousseau, pela voz de uma personagem: "- Silêncio diante de Jean-Jacques. Admiro esse homem. É verdade que enjeitou os filhos, mas adoptou o povo".

Cristalino.

Onde é que alguns dos nossos pedagogos, de agora e de há décadas, terão ido buscar a inspiração?

E, no entanto, estes aspectos em nada desmerecem a obra (imensa) de Victor Hugo.

Tento imaginá-lo no presente a corrigir-se com brilhantismo. E a dizer aos seguidores mais ferrenhos: tenham calma e... juízo!

José Batista disse...

Atenção, ali em cima escrevi, erradamente, "ascenção", onde devia ter escrito "ascensão". Cometo este erro frequentemente, por, mecanicamente, confundir o conceito com o meu último nome.
Apresento desculpas.

ManuelaDLRamos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ManuelaDLRamos disse...

En français s'il vous plaît ;-)
HUGO, Victor – Les Misérables http://www.litteratureaudio.com/livre-audio-gratuit-mp3/hugo-victor-les-miserables.html

Sérgio Rodrigues disse...

Obrigado pelo link! O livrivox também tem a versão original (em francês, claro), mas no site que indica há muitos outros livros!

Sérgio Rodrigues disse...

Obrigado pelo comentário. De facto, acabei por não ter desenvolvido o parágrafo sobre o esgoto tanto como gostaria...

É preciso notar que o estrume proveniente de animais (não humanos) também tem grandes quantidades de bactérias. As condições do armazenamento, tratamento e utilização do estrume é que minimizam os riscos para a saúde.

Claro que, embora Pasteur já tivesse mostrado a relação entre a fermentação e os microorganismos em 1859, só mais tarde foi relacionado a presença de microorganismos com a saúde (veja-se o artigo citado).

José Batista disse...

Sim, mas atenção: o estrume de animais não humanos, como é o caso das vacas ou de cabras não reveste, nem de longe, o perigo das fezes humanas, mesmo quando esse material, quando seco, no caso dos bovinos, chega(va) a ser pegado com as mãos, aparentemente sem grandes preocupações nem receio das pessoas. Em relação aos detritos do porco, suponho que havia mais repulsa... Agora, a contaminação de águas de irrigação e de poços de abastecimento de água doméstica com coliformes fecais humanos é muito perigosa. Lembre-se o caso da cólera e de outras diarreias...
Mas um facto que sempre me causou estupefacção e náusea foi saber, de realidade testemunhada, que em certas zonas do interior centro do país, que não quero especificar..., muitas famílias de pessoas pobres, sem água canalizada e casa de banho, nem sequer construíam as vulgares latrinas que consistiam de um buraco no chão com umas tábuas à volta..., antes faziam as necessidades fisiológicas nos quintais, precisamente no meio dos legumes (que mais tarde colhiam...), por suporem que isso era um adubo! Foi isto na segunda metade da década de sessenta. E quando li "Os miseráveis", chocado, interroguei-me sobre se essa obra, divulgada entre uma ou outra pessoa mais letrada, poderia estar na origem da divulgação e "fundamentação" de ideia tão brutal... Não que aquelas pessoas, a maioria delas analfabeta, alguma vez tivesse ouvido falar de Victor Hugo...

José Batista disse...

No (meu) comentário anterior, na penúltima linha ..."alguma vez tivessem ouvido"... e não ..."alguma vez tivesse ouvido"...
Outra vez: as minhas desculpas.

Cláudia da Silva Tomazi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cláudia da Silva Tomazi disse...

Seria possível de muitas e muitas lições desta obra citada. Inclusive pela obrigatoriedade e o compromisso que expõe a bela criatividade do título atribuído a vida Miserável, daqueles que tem por momentos, a opção de escolha entre; o quê julgam e, por nem julgado esteja. Avaliado e equacionado, embora a síntise de compreensão dispensa-os deste modesto contexto. Posto que a vida em si, entrega-lhes de alma. É claro, que este francês Vitor Hugo e ao que caiba da história que escrevera, honrando seu povo, despoja o assunto em uma época que pouco o pertencera de facto. Assimilara a quaisquer verdade! Diante da humanização de forma literária e por exemplo(s) a si e a outrem, que nem contemporâneo, restara a obra ao efeito e a causa. Eventualmente este recurso de aprendizado, através de leitura do passado e de um modo geral, responde-nos quão arcaica seria a vida em assití-la por em sendo na ótica miserável. E, que dinte de modesta palavra a conclusão aos senhores, desta pequena amostra, seguida da bela exposição do livro, do escritor, da época e do juízo.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...