Agora que saiu um novo livro do autor de "Caos" James Gleick, com o título de "Informação" (Temas e Debates e Círculo de Leitores), recupero aqui a minha recensão de "Caos" que foi publicada no Expresso, em 1990, quando saiu a tradução portuguesa (Gradiva, 1989)
No princípio era o caos. Hesíodo, na Teogonia, celebrou o Caos, o Caos que está na base da mitologia grega das origens. Haydn abriu a sua oratória A Criação com a «apresentação do caos», o caos bíblico. Kant falou de caos na Teoria Geral do Céu, que foi a primeira tentativa de explicação científica do início do mundo. Depois do caos veio a ordem, a ordem fria e rígida que os newtonianos quiseram impor à organização do mundo. Mas hoje alguns compositores dedicam-se à música fractal, e os astrónomos concluem que o sistema solar é, afinal, imprevisível. Os livros de ciência aparecem ornamentados com as cores do caos. Eis, portanto, o caos de novo entre nós.
Agora que o século aceleradamente se extingue, corre por aí o caos como moda científica. Nos anos 60, os «mágicos» Pauwels e Bergier diziam que tudo era possível. Nos anos 70, ganhou-se algum juízo e respeitou-se alguma ordem. Nos anos 80, com a proliferação do computador e das artes da simulação, tudo voltou a ser possível. Surgiu o caos , a «ciência do imprevisível» (se acaso esta designação faz algum sentido). Os utopistas franceses e os «hippies» norte-americanos deram lugar a um Mandelbrot, que inventou conjuntos caleidoscópicos e vertiginosos, e a um Feigenbaum, que inaugurou uma nova disciplina -- os sistemas não lineares -- e vislumbrou uma visão diferente do mundo. Quem diria que a electrónica iria atingir de raspão a estética e apanhar em cheio a epistemologia? A aparição do caos foi, ela própria, imprevisível, tão imprevisível como vai ser, afinal, a sua influência nos anos 90 na rearticulação dos vários saberes.
O caos é seguramente uma palavra com uma forte carga sociológica. Nisso é semelhante à quase defunta «teoria das catástrofes», embora apresente a vantagem da restrição a quatro letras. Não existe, portanto, título mais apetecível para um livro de divulgação científica do que Caos, mas desiludam-se os potenciais autores que aspirem ao «copyright». O livro já existe e está entre nós.
Caos, com subtítulo "A construção de uma nova ciência", é um livro invulgar. O autor, James Gleick, não é «maître de recherches» no CNRS, nem astrónomo em Cornell. Não escreve prosa de divulgação nas horas feriadas que o telescópio lhe deixa. Também não é sucessor de Newton nem anda de cadeira de rodas. É jornalista e repórter de ciência: armou-se de bloconotas e gravador e foi ouvir Mandelbrot, Feigenbaum e mais de uma dúzia de outros profetas do caos, de pregadores de «uma nova visão do mundo». Não faz a reportagem do infinitamente grande nem do infinitamente pequeno, mas do infinitamente variado. Caos é um daqueles livros que não se escrevem em meia-dúzia de dias nem se publicam todas as meias-dúzias de meses. Trata-se de uma reportagem da ciência em acção, escrita por um observador curioso, arguto e entusiasmado. Arrisco-me a prever que ficará, daqui por uns anos, como um documento de algum modo único sobre um dos triunfos ou uma das ilusões da ciência deste fim do século.
Embora esteja por concluir a discussão sobre se existe mesmo uma disciplina nova sobre o título de «caos», está provado que o caos veio renovar muitas disciplinas. Não há a certeza que existam conceitos decisivamente novos -- abalos tão demolidores como a relatividade ou os quanta --, mas existem perspectivas de diálogo e cruzamento entre investigadores de vários credos. O caos apresenta a distinta vantagem de estabelecer plataformas horizontais, e de fazer crescer para o lado as ciências habituadas a crescer só para cima.
Porque o caos pertence, afinal, a todos. Aos matemáticos, que se esforçam por domar selvagens equações diferenciais com as suas redes de teoremas e corolários (alguns deles desconfiam um pouco do jornalista que lá foi ao gabinete, mas se esqueceu de levar as equações no gravador); aos físicos e químicos, que oscilam, um pouco erraticamente, entre os «atractores estranhos», que são a termodinâmica do não equilíbrio do belga Prigogine, ou a sinergética do alemão federal Haken (ainda se está para ver quem é o «Grande Atractor», que consiga arrastar os maiores fluxos); finalmente, aos biólogos, que se preparam para tomar de assalto a ciência do próximo século (e fazem bem, uma vez que há físicos, como Hawking, pretensiosos ao ponto de quererem dar por encerrada a Física). Os cientistas da vida têm também jus à sua fatia de caos: os modelos de selecção baseiam-se em sistemas não lineares e conduzem, por isso, a resuItados surpreendemente variados.
O caos que nos é oferecido no mercado da divulgação apresenta uma forte componente estética. A embalagem é, sem dúvida, atraente, quer o conteúdo seja ou não novidade. As imagens fabricadas por regras simples num computador constituem um «trompe l'oeil» labiríntico do qual dificilmente se escapa. Os fractais, figuras criadas pelo matemático francês Mandelbrot, exibem, por um lado, formas fantasiosamente recortadas que provocam a imaginação e, por outro, auto-semelhanças «ad infinitum» que causam frémitos mentais como os obtidos com as auto-referências em lógica. O poder de atracção do caos reside precisamente na infinita variabilidade dentro de uma certa permanência estrita: o gótico está contido na camisa de forças de um algoritmo. Nem a Matemática é a desolação que se suspeitava nem o plano dos números complexos o deserto que se receava. Os jovens «hackers» pintam esse deserto com a ajuda do «Basic» ou do "Pascal".
Mas o que vem a ser, dentro da embalagem, o caos? A palavra é um bom telhado para um edifício com muitas divisões e com ainda mais portas e janelas. O edifício também se chama «fenómenos não lineares». Num processo físico ou químico não linear, o inesperado pode acontecer e o melhor ainda é esperar tudo ou não esperar absolutamente nada. Sistemas desse tipo são altamente sensíveis às condições iniciais. Pequenas diferenças no começo podem ter efeitos desmesurados no final. Uma borboleta que abane inocentemente as asas numa crista de altas pressões pode provocar uma chuvada daí a dias num sítio distante. Esses sistemas não são apenas comuns em Física e Química: aparecem em Meteorologia (e daí o supremo direito de o meteorologista falhar), em Fisiologia (a paragem cardíaca pode ser uma manifestação de caos e daí o supremo direito de o método falhar), e até na Geoestratégia (foram já propostos e publicados na insuspeita Nature modelos não lineares de corridas ao armamento, e daí que o supremo direito de o general, também ele, falhar).
Por que é que o caos demorou tanto a surgir em cena? Faltava-lhe o seu instrumento essencial -- o computador -- , que está para o caos como o telescópio está para o macrocosmos e o acelerador de partículas para o microcosmos. Foi com a ajuda de um computador primitivo que E. Lorentz entreviu, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), o caos do tempo meteorológico e foi por meio de uma calculadora de bolso que Feigenbaum descobriu, em Los Alamos, a ordem subjacente a um processo de iteração simples. O caos é a ciência da época porque o computador é o instrumento da época. O computador permite efectuar simulações, realizar jogos de faz-de-conta tão perfeitos que a imitação se chega a transformar na coisa imitada. O paradoxal é que as imagens de caos, instantâneos de uma natureza irregular e caprichosa, são captadas com o mais mecânico dos instrumentos o computador digital.
Terá o caos implicações filosóficas? Parece que sim. Já ninguém sustenta o determinismo ingenuamente optimista do Século das Luzes. «Sire, não tenho necessidade dessa hipótese!», ripostou outrora Laplace, autoritário, a um Napoleão que lhe perguntou onde aparecia Deus no Tratado de Mecânica Celeste. Hoje sabe-se que o sistema solar, o santo dos santos dos deterministas, não é previsível de todo. Ninguém garante a sua estabilidade a longo prazo. Convém lembrar que a mecânica de Newton serviu de base a doutrinas económicas, socials e filosóficas. Vivemos hoje tempos de insegurança colectiva e o determinismo já não tem a mesma utilidade que antes (veja-se, por exemplo, a sucessão de acontecimentos a Leste, o buraco de ozono que abre e fecha, etc.). Em alturas de crise, é confortável um telhado científico, e a «universalidade» de alguns comportamentos quase caóticos ‚ uma esperança de ordem escondida no vasto e enrodilhado novelo de todas as possibilidades. Que há a fazer se se desconhece o que vai acontecer a seguir, se não se sabe quem é amanhã o Presidente da Bulgária ou se os pinguins resistem à radiação ultravioleta? O mundo, este mundo, é irremediavelmente imprevisível. Talvez existam, porém, certas regularidades bem disfarçadas. Os físicos não renunciam de todo à ordem porque a lei e a ordem são a sua profissão. Para já, e quanto mais não seja, prenuncia-se uma nova ordem das ciências. A Biologia, por exemplo, aproxima-se da Física antes de eventualmente lhe suceder: realizam-se simpósios sobre vida artificial, onde aparecem jardins botânicos inteiramenle digitais e autómatos celulares que mimam ecossistemas reais. Os físicos olham para as copas das árvores e para a forma das nuvens com um outro olhar. Alguns é mesmo a primeira vez que observam um feto arbóreo ou um cirro-cúmulo. Emerge «uma nova visão do mundo». Ou, talvez melhor: uma nova mundovisão.
James Gleick, conhecido publicista do New York Times (Gleick está agora a preparar uma biografia de Feynman que, antes de concluída, já está esgotada), escreveu um livro que subiu rapidamente as escadas dos «best-sellers». O Caos conseguiu evidenciar que os assim chamados leigos podem e devem ouvir e contar ciência, naquilo que ela tem de pequena comédia (como a surpresa da descoberta do meteorologista Lorentz) e de pequeno drama (as incompreensões sofridas por Feigenbaum). Trata-se da primeira grande obra de um jornalista de ciência, essa nova profissão que as modernas mudanças sociais e culturais tornaram necessária. Gleick apresentou, em pinceladas sugestivas, as personagens e construíu com elas um enredo feito de pequenas vitórias e pequenos fracassos. Contou uma história, contando histórias. A sua tese central de que há uma nova ciência é porém, demasiado forte e -- como costuma acontecer às teses demasiado fortes -- passível de ser rebatida. É uma discussão em aberto, que tem as suas sedes próprias. Não obstante essa discussão, os matemáticos recomendaram o livro, os físicos enlearam-se interessadíssimos na sua leitura, os biólogos deram saltos quando perceberam que aquilo também lhes dizia respeito. O leitor sente-se numa página matemático, noutra físico e noutra ainda biólogo. Porque está ali perto deles.
Uma palavra para a edição portuguesa. Foi relativamente rápida: o «book» foi publicado nos Estados Unidos pela Viking Penguin, em 1987, e um dia antes do Natal de 1989 já circulava em português. Em Portugal já se conseguem traduzir e editar livros de ciência com uma brevidade comparável à de outros países. A colecção «Ciência Aberta» da Gradiva é uma boa colecção do género. Seria boa em qualquer outro sítio do cosmos. Portugal está hoje em dia perto das «modas científicas», o que tem manifestas conveniências. Não há nenhuma razão para os «media» se alimentarem e nos alimentarem apenas de todas as outras modas. Ainda faltam obras de autores nacionais no panorama da nossa divu1gação científica, à semelhança do que se passa nos países de sólida cultura científica, mas lá se chegará um dia. Para haver estilistas originais, é preciso, salvo seja, que haja muitas passagens de modelos importados.
A tradução foi talvez rápida de mais: a expressão «em termos de» aparece vezes sem conta (é curioso que essa expressão se vulgarizou a partir, decerto, dos locutores televisivos). Os adjectivos esquecem-se de ir para o seu lugar normal em português. É o fenómeno da anglicização da língua, de que há prenúncios evidentes em várias literaturas técnicocientífica disponível entre nós.
O prefácio, do «caologista» Jorge Buescu, abre honestamente o livro; falta porém inexplicavelmente, no fim da edição, o índice de assuntos presente no original. As imagens do caos estão decentemente reproduzidas, conseguindo atrair e prender. Aí está o livro para os (oxalá muitos!) leitores. Leitor, cumpra pois a sua obrigação de leitor e leia.
No início era o caos. Não se sabe como vai ser o fim do caos. São precisas mais algumas iterações para se ver. Que o computador é útil, está confirmado. Que as imagens do caos suscitam emoções e adesões, ninguém duvida. Que as regularidades matemáticas na transição da ordem para o caos se realizam na natureza, é um facto experimental indesmentível (pode-se verificar até com o gotejar de uma torneira!). No entanto, se o caos constitui um novo paradigma, no sentido de Kuhn, ou um epifenómeno de fim de século, num sentido qualquer, está ainda por averiguar. A evolução das ideias científicas, a substituição do velho pelo novo, é não linear e por isso imprevisível.
Muitas vezes quando se anuncia o novo -- e, a propósito do caos, Gleick toca as trombetas da revolução científica -- há tendência para esquecer o velho. A continuidade é, contudo, essencial a qualquer ruptura. Uma nova ciência deve ser a continuação da velha por outros meios. Por exemplo, foi Poincaré‚ embora sem dispor de um rato de computador para explorar os céus e resolver o famoso problema dos três corpos, quem lançou, no início do século, as raízes do moderno caos. Referiu-se atrás o diálogo entre Napoleão e Laplace. A seguinte história de um outro imperador e de um outro astrónomo é, a respeito do novo e do velho, exemplar. Frederico Guilherme IV da Prússia foi um dia visitar o Observatório Astronómico de Bonn. Cumprimentou nessa ocasião Argelander, o prestigioso astrónomo da corte, e perguntou-lhe um tanto displicentemente: «Então, o que há de novo nos céus?». Resposta do velho sábio: «Será que Vossa Majestade já conhece o que há de velho?».
- J. Gleik, "O Caos - A Construção de uma Nova Ciência", Gradiva, 1989 (prefácio e revisão científica de Jorge Buescu; tradução de José Carlos Fernandes e Luís Carvalho Rodrigues).
Na figura: "Misterioso, Ousa" de Carlos Calvet (1978), Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian.
2 comentários:
Quem é o pintor do quadro que ilustra o artigo?
Misterioso, Ousa" de Carlos Calvet (1978), Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian.
CF
Enviar um comentário