quarta-feira, 2 de maio de 2012

Liberdade educativa: alguns esclarecimentos


Tenho discutido com o professor Luís, no blog Dúvida Metódica, as minhas ideias sobre ensino. Ele teve a paciência de me levantar várias objecções a que respondo abaixo. Penso que estas respostas são esclarecedoras e por isso coloco-as aqui, onde poderão ser objecto de mais objecções de mais leitores.

1) Da legitimidade do estado para legislar em algumas coisas não se segue que a tem para legislar em todas. Responder à minha proposta com conversas sobre a legitimidade do estado para legislar em geral é como responder desse modo quando alguém afirma que o estado não tem legitimidade para legislar sobre quem publica o quê nos jornais. Esta pessoa pode perfeitamente reconhecer a legitimidade do estado para legislar em muitas coisas, mas defender, por várias razões, que no caso particular dos jornais não deve legislar sobre quem publica o quê, em nome do bem público. Esta pessoa também não defende certamente que não deve haver legislação com respeito aos jornais; mas esta legislação serve para proteger o direito à diferença, e não para impor a mesmidade.

2) O problema é não haver consenso possível sobre o que é melhor no ensino, como estamos a ver há quase 40 anos. Os profissionais do ensino, que são quem tem a palavra mais importante a dizer, não conseguem chegar a um consenso. O resultado disso é pior para todos: a legislação, as directrizes e os programas ministeriais são incoerentes porque têm elementos de várias ideias incompatíveis de ensino. Num ciclo político inscreve-se na lei algumas ideias oriundas de uma dada concepção de ensino; no ciclo seguinte, inscreve-se outras ideias, incompatíveis com a primeira. O resultado é desorientação de alunos e professores, e conflito público interminável sobre o ensino. Basta pensar no seguinte: se não tivéssemos mudado uma vírgula do sistema de ensino, excepto a necessária actualização dos programas em função do avanço do conhecimento, estaríamos hoje melhor ou pior? A resposta óbvia é que estaríamos melhor porque pelo menos a) toda a gente saberia exactamente como as coisas funcionam e b) não haveria um conflito público permanente, que provoca uma enxurrada legislativa sem fim.

3) Quando a divergência provoca danos temos de fazer alguma coisa para lidar com ela. Saber acolher a divergência é sinal de maturidade. Respeitar as ideias dos colegas também. O que eu proponho é que tenhamos diferentes modelos de ensino, tal como temos diferentes jornais. Proponho a liberdade. E a liberdade foi a razão de ser do 25 de Abril de 1974. Um ideal que ainda falta cumprir na mentalidade portuguesa, pois sempre que falo de liberdade (e este não é o único caso) as pessoas acusam-me veladamente de ser anarquista. Eu não sou anarquista. Penso que só num estado bem ordenado um ser humano se pode realizar plenamente. Mas para isso o estado tem de estar bem ordenado, e não está bem ordenado quando é opressor ou quando herdou tiques de um passado opressor e insiste em mantê-los. Repito: não sou anarquista. Sou abrilista, se quiserem dar-me uma classificação; sou dos que choram como crianças quando vêem imagens do 25 de Abril ou ouvem a Grândola Vila Morena; sou dos que têm um imenso, um infinito agradecimento aos militares de Abril e ao povo que nos libertou das elites podres de uma ditadura mentecapta, e que parece infelizmente tão atraente para tantos intelectuais portugueses hoje. E é nesse espírito que defendo a liberdade: a mais ampla liberdade possível, compatível com a mais ampla liberdade dos outros.

4) Andamos a perguntar para que é a educação há quase 40 anos. O problema é que diferentes responsáveis educativos têm diferentes respostas incompatíveis e não conseguem chegar, nem jamais chegarão, a um consenso mínimo. Para uns, a educação é para dar empregos e fomentar a mobilidade social; para outros, é para doutrinar as criancinhas para passarem a gostar disto ou daquilo, ou para aceitarem esta ou aquela ideia ou atitude; e para outros, como eu, a escola é para ensinar matemática, ciências, artes, filosofia, história, do modo mais imparcial, objectivo e rigoroso possível.

5) Há quase 40 anos que andamos a perguntar o que podemos fazer para ter um ensino melhor; a cada novo ciclo político, novas ideias são traduzidas em legislação, e ficamos com um sistema incoerente e kafkiano em que ninguém se entende. Isto porque responsáveis diferentes dão respostas diferentes sobre o que podemos fazer para ter um ensino melhor: alguns de nós pensam que ter exames nacionais exigentes é importante para ter um ensino melhor; mas muitos dos nossos colegas pensam que para ter um ensino melhor é crucial que não haja exames nacionais, sejam exigentes ou não. O que fazer?

6) Os meus opositores concluem sempre que se cada professor tiver a liberdade de ensinar como quiser as coisas ficam piores. Piores do que o quê? Do que a selva que temos hoje? Concedo, no máximo, que talvez as coisas melhorassem gradualmente se houvesse uma continuidade de bons programas, bons exames nacionais, boas directrizes ministeriais. Mas o nosso problema é exactamente este: o que eu considero que seriam bons programas, bons exames nacionais e boas directrizes, outros colegas consideram que seriam horríveis; e vice-versa. O que fazer então? Quem continua com a ilusão dos exames e das directrizes é porque está sempre com a esperança de que um dia se fará essas coisas bem; mas isto é pueril porque mesmo que isso o façamos num dado ciclo político, irá durar no máximo uns cinco anos, e depois volta ao mesmo, assim que quem pensar de maneira diferente tiver o poder nas mãos.

Quando os meus opositores pensam nas alternativas nunca pensam nas alternativas todas: cometem sempre a falácia de comparar uma situação em que há directrizes nacionais pelo menos razoáveis com a situação em que cada aluno e cada pai está desprotegido perante os professores, e estes são todos uma desgraça. Mas isto não é considerar todas as alternativas. A alternativa mais realista é a que efectivamente temos hoje: as directrizes ministeriais são uma desgraça completa, e muitos professores de excelência estão impedidos de fazer um trabalho melhor devido a) aos seus colegas, que herdam do ministério o poder para interferir e b) às directrizes ministeriais. É do máximo interesse de pais e alunos que haja pluralidade educativa, porque só assim eles poderão não apenas responsabilizar directamente os professores — e só eles, no meu entender, têm legitimidade para pedir contas aos professores — como poderão escolher diferentes professores, que terão diferentes abordagens.

7) O que proponho não é a inexistência de um sistema educativo. É a inexistência de uma ditadura educativa. É a existência de um sistema aberto, livre, de ensino, no qual os professores são livres para escolher conteúdos e metodologias, respondendo exclusivamente perante alunos e pais. Um sistema em que se acabe com o poder despótico que os professores têm uns sobre os outros, com a força do ministério por detrás, sabendo-se de tantos casos em que os professores de excelência são prejudicados pelos medíocres precisamente porque o ministério lhes dá esse poder.

Posso estar errado, porque estou longe de ser infalível e de ter um acesso privilegiado à verdade. Mas ainda não vi exactamente onde estou errado.

21 comentários:

Anónimo disse...

Ola,

Eu ja nem discuto, apenas tento perceber :

"O que proponho não é a inexistência de um sistema educativo. É a inexistência de uma ditadura educativa. É a existência de um sistema aberto, livre, de ensino, no qual os professores são livres para escolher conteúdos e metodologias, respondendo exclusivamente perante alunos e pais. Um sistema em que se acabe com o poder despótico que os professores têm uns sobre os outros, com a força do ministério por detrás, sabendo-se de tantos casos em que os professores de excelência são prejudicados pelos medíocres precisamente porque o ministério lhes dá esse poder."

Vamos então tentar imaginar como isso funcionaria na pratica : podia ser um sistema onde os professores, devidamente credenciados e apresentando como requisitos minimos uma licenciatura e um estagio profissional (ou nem isso ?), se apresentassem a eleições locais, um pouco como os juizes estaduais nos EUA ?

Estou a ver isto daqui : "Por uma escola severa mas justa em Ceboleira de cima, vota na lista do José Pedro Lima : tabuada à antiga, uso moderado da palmatoria, filosofia pura e sã (sem modernices nem propaganda cripto-marxista), geometria da mais pura estirpe euclidiana. Resultados garantidos para toda a vida !"

E' isso ?

A seguir, deviamos pugnar por uma advogacia livre, por uma medicina livre, e acabar de vez com a ditadura das ordens nacionais, sempre a quererem impigir de cima o que se deve entender por saude, por direito, etc. Enfim, um abuso permanente...

Abraço

joão viegas

José Batista da Ascenção disse...

Caro Desidério Murcho

Como são belas as suas ideias. Como são elegantes os seus

argumentos. E como são fortes, sinceras e contundentes as verdades

que enuncia.

Textos como os que assina são um bálsamo para qualquer professor

que insiste em levar a água ao moinho, ia dizer em remar contra a

maré...

Mas não consigo ver como é que o que propõe funcionaria na prática.

Não, não consigo. Julgo que os professores não são suficientemente

bons para isso. Particularmente, julgo que não sou suficientemente

bom para isso. Julgo que a generalidade dos meus alunos não são

suficientemente bons para isso. Julgo também que os pais da

larguíssima maioria dos meus alunos não estariam à altura de uma

tal responsabilidade.

Gostaria de pensar que não tenho o direito de admitir isto, excepto

no que me toca. Gostaria...

Como gosto, repito, de apreciar a sinceridade das suas posições. E

a generosidade de as partilhar.

Desculpe o tom em que escrevi isto. Consciente e deliberadamente,

não me contive.

Deixo-lhe um sentido abraço.

Desidério Murcho disse...

Caro José

Tenho uma experiência de mais de 15 anos na tarefa de tentar melhorar o ensino da filosofia. E, claro, muitos de nós sabiam mais do que outros; uns tinham mais experiência prática de ensino, outros conheciam melhor as bibliografias recentes relevantes. A sinergia foi muito positiva. Desenvolvemos trabalhos muito bons. O ensino melhorou exponencialmente. Alguns professores começaram a dar aulas de filosofia como nunca se deram no país: com rigor, seriedade, com base em bibliografia actualizada e relevante. Os alunos reagiram bem: passaram a gostar de uma disciplina que tinha mau nome. Eu nunca tive aulas de filosofia tão boas no secundário, quando era estudante; na verdade, as aulas que tive não tinham quase relação com a filosofia tal como realmente é, tal como agora vejo que é lendo as publicações académicas relevantes.

O nosso único obstáculo sempre foi e continuará a ser o Ministério da Educação. Não se trata de nem reconhecer o nosso trabalho; isso é irrelevante porque o reconhecimento que queremos é o do olhar dos estudantes, de um obrigado sentido, de um aperto de mão comovido. Estou-me nas tintas, muito sinceramente, para os burocratas do Ministério que mal sabem escrever num português lúcido. Mas interessa-me os alunos.

A minha proposta permitiria que estas sinergias não se perdessem. Que os professores mais comprometidos e com vontade de fazer melhor conseguissem fazer melhor. Você nem imagina o que aprendi de filosofia porque tenho de pensar em cada frase, cada página, cada problema, teoria e argumento que escrevo nos meus manuais. E como aprendo com os professores que me dizem: "isto assim não dá, os alunos confundem-se".

A minha experiência diz-me que realmente há muitos professores que pura e simplesmente querem apenas fazer o mínimo e que não têm qualquer compromisso nem com a sua área de estudos, nem com o seu ensino. Mas diz-me também que quando se gera trabalho útil, bem feito, simples, produtivo, a maior parte dos professores acaba por ver a sua qualidade, as suas vantagens. Sobram apenas alguns que não o aceitam, mais por espírito tribal do que outra coisa. Muito bem: eles que façam diferente, que façam à maneira deles, e boa sorte! Mas deixem-me a mim fazer um trabalho bom e honesto, juntamente com os meus colegas e com os alunos.

E não devemos desprezar a vontade que os alunos têm de aprender. Sim, muitos estão desmotivados — porque a escola, depois do ensino primário, vai ficando cada vez pior, e o aluno desmotiva-se. Mas nós temos tido experiências maravilhosas de alguns dos mais problemáticos alunos, que entram já rebeldes e não cooperativos na disciplina, e acabam por gostar dela, por estudar, por participar. Porque vêem inteligência, vêem que aquilo não é conversa fiada, faz sentido, é uma coisa real. Uma parte importantíssima dos problemas de comportamento dos alunos resulta do simples facto de as aulas serem totalmente desinteressantes. Matam a curiosidade, a criatividade, o gosto de aprender. Não admira! Os programas e directrizes e métodos ministeriais foram concebidos por pessoas que não têm qualquer paixão, qualquer interesse profundo, pessoal e inequívoco, pela área da sua suposta especialidade; pessoas que abandonariam tudo se amanhã lhes saísse a lotaria.

A minha proposta não é utópica. É realista. Na minha proposta teremos ensino mau? Sim. Também o temos hoje. Mas teremos cada vez mais ensino melhor, e isso hoje não é possível, ou é pelo menos muitíssimo difícil.

Carlos Pires disse...

Pode ler as objeções de Luís Mendes aqui.

Luís Mendes disse...

Penso que já apresentei os meus argumentos e mostrei aquilo com que não concordo na sua perspectiva, nomeadamente em http://duvida-metodica.blogspot.pt/2012/04/os-exames-nacionais-serao-uma-forma-de.html. Mas parece-me que não respondeu às minhas questões, não rebateu os meus argumentos e que os meus contra-argumentos não foram apresentados de forma tão clara como eu pensara. Desde já peço desculpa pela extensão.

Luís Mendes disse...

1) Eu não disse que da legitimidade de legislar sobre X se inferia a legitimidade para legislar sobre Y, Z, etc. O que eu disse foi: a legitimidade do Estado para legislar relativamente ao que é comum, no interesse comum e pelo Bem Comum, tem sido suficientemente demonstrado por outros de forma assaz; a educação pertence ao que é comum, à coisa pública, de facto é um interesse de todos; ou seja, a educação insere-se no conjunto de “coisas” sobre as quais o Estado deve legislar e responsabilizar-se; o Estado pode, com toda a legitimidade, mas avaliando devidamente a sociedade a que se reporta, centralizar mais ou menos o sistema – isto significa que deve ter em atenção que aquilo que funciona na Finlândia pode não funcionar em Espanha (contudo, também não é verdade que lá não existam exames).
2) O Desidério afirma que o Estado não pode legitimamente legislar sobre a Educação, mas outras vezes parece querer dizer que o Estado apenas não deve ser abusivo. Ainda assim, o cerne da sua argumentação parece ser no facto de existir divergências entre os professores de Filosofia. Todavia, a primeira parte da sua argumentação parece postular que o Estado não deve legislar (ou legislar abusivamente) sobre a educação em geral. Não é claro, na sua argumentação, se pretende que apenas não existam programas nem exames em Filosofia, ou se pretende generalizar a todas as disciplinas. Se se remete apenas à Filosofia e aos professores de Filosofia, então parece-me que a sua argumentação padece de parcialidade, ou então é preciso esclarecer o que é que, de facto, torna a Filosofia uma disciplina tão particular que os seus docentes devem ter o direito de ensinar o que lhes pareça melhor, ao contrário dos demais. Mas se o que o Desidério afirma é que todas as disciplinas devem estar isentas de programas e exames, então não me respondeu a uma pergunta bastante clara: considera que um professor de português, porque tem dificuldade na gramática, deve ser autorizado a não a ensinar?, ou que um professor de matemática que não vê relevância nos números imaginários, decida não os ensinar, ainda que estes sejam objectivamente importantes para o cálculo de áreas, etc.?
3) Como disse, a sua argumentação parece centrar-se na divergência que existe entre os professores, e daí parece concluir que o Estado não deve legislar, assumindo que apenas quando há unanimidade (quando não é possível a pluralidade, ou quando esta se reduz a um “consenso” – termo que o Desidério parece interpretar no sentido de “unanimidade”) é legítimo legislar e recusando ao critério do debate prévio a potência de legitimação. Ora, parecem-me abusivas várias assumpções aqui. Primeiro: não é verdade, em nenhum país do mundo, que só se legisle quando há unanimidade, nem nas ditaduras, nem nas democracias. Segundo: não é verdade que a democracia signifique que o Estado não tem legitimidade para legislar quando não há unanimidade, nem é verdade que a democracia signifique que, se há discórdia, o Estado não deve impor nada. Não o é empiricamente: não há nenhuma lei sobre a qual todos concordem; há muitas leis em todos os Estados do mundo sem consenso maioritário, ou onde ele é duvidoso (p.ex., é duvidoso que a maioria da população concorde com a inexistência da pena de morte). Mas também o não é por princípio, pois a democracia não exige a unanimidade, mas sim permite a discórdia; a democracia não deixa cada um por si quando há discórdia, mas “força” um consenso e “impõe” esse consenso, ainda que não unânime. Não é verdade que o Estado o possa fazer no assassínio e não o possa fazer na acção do professor, porque a educação é tanto um interesse comum como a segurança. Por outro lado, o professor está na educação não como dono, mas em nome da sociedade – não é dono, não é senhor. Ou seja, não se segue da existência de diversidade de opiniões que o Estado não deva legislar sobre uma determinada matéria. Mas mesmo que se seguisse, o Desidério deveria ainda perguntar-se se está a considerar toda a gente que de direito se pode e deve pronunciar sobre a educação.

Luís Mendes disse...

4) A educação não é a estufa dos professores, nem os alunos as suas flores de estimação. A educação é uma instituição social, demasiado importante para que só os professores tenham uma palavra a dizer. Porque o Desidério deve considerar este aspecto: se abolirmos os programas, os currículos e os exames, é este o (não-)sistema que se está a IMPOR aos filhos de todos nós. O Desidério defende que se IMPONHA aos CIDADÃOS um sistema educativo em que cada professor pode decidir o que ensinar, pode escolher um qualquer método, ou NENHUM (foi esta a palavra que utilizou: nenhum). Ora bem, antes de perguntar aos professores aquilo que eles, na sua sabedoria, querem, deve perguntar que sistema é que cada pai, cada cidadão quer.
5) O Desidério também não respondeu a esta pergunta: imagine-se na situação original de Rawls, apenas com leves alterações. Imagine que: apenas sabe que tem filhos; que não sabe se será rico; não sabe que professor calhará ao seu filho, se um bom, se um mau. Nestas condições pergunte então (e pergunte como se todos respondessem colocando-se nesta situação – e não como sendo professores): que sistema de ensino é preferível? Um sistema onde cada professor se pode lançar a divagar sobre se os anjos são masculinos, hermafroditas, andrógenos ou assexuados, ou um sistema onde os professores têm um programa a cumprir, regras a respeitar, etc.? É que esta pergunta não é um pormenor, a não ser que o Desidério suponha, como parece afinal supor, que a questão que se deve começar por colocar é: o que querem os professores fazer na sua aula? Mas eu proponho que se vá a montante. É aí que se encontra a imparcialidade, não no perguntar ao professor: “tu quer ter de cumprir regras, ou fazer o que bem entende?” Porque se a educação evoluir de facto o suficiente, então talvez um dia eu concorde consigo e afirme que já não precisamos de tantas regras. Se educarmos o povo ele precisará cada vez menos da lei. O princípio é educação e nela residem os problemas e as soluções do futuro.
6) O Desidério começa pelos professores, e por isso parece-lhe que impor um programa é um atentado aos professores. Mas não se trata de eu querer impor a minha perspectiva aos restantes professores. Eu penso que a sociedade – e não eu – é que pode impor a sua vontade a todos os professores, e não os professores à sociedade. Note: eu começo pelos alunos, pela sociedade – melhor, pela humanidade que há em cada um – e por isso parece-me que uma educação que não impõe programas aos professores é que é um acto de tirania (impõe aos pais e aos alunos um sistema sem rigor em que cada professor é ditador na sua aula relativamente ao que ensina) e de terrorismo: os pais passarão a ter terror de não conseguirem dinheiro suficiente para colocar os filhos numa escola privada. Contudo, o Desidério tem razão, claro que nem todos os professores seriam maus. Mas, mais uma vez lhe pergunto: acredita que a maioria dos professores seria tão exigente, tão cumpridora, tão exímia se não houvesse programas como o é havendo-os? Acredito que não. Imagino que a maioria leccionaria num ano o que agora lecciona num mês. O Desidério poderá dizer que isso que seria leccionado seria bem leccionado. É um facto: toda a gente chegaria ao final do secundário a saber muito bem a tabuada, os números reais e talvez as fracções. E o resto que aprendessem em casa.

Luís Mendes disse...

7) Assim, começando-se pelo princípio (o futuro dos alunos) estabelecemos a necessidade de um conjunto de coordenadas para os professores – que o Estado deve impor. Só DEPOIS de termos estabelecido esta necessidade chegamos aos professores. O sub-argumento anterior findou. E, agora sim, já não precisamos de ir perguntar a toda a sociedade, mas só aos especialistas, o que deve ser ensinado. Repare: não vamos perguntar só aos professores se devem existir regras a aplicar aos professores (visto que não é óbvio que possam ser imparciais aqui sobre aquilo que lhes deva ser exigido); perguntamos à sociedade se quer uma Escola com Programas, ou professores com plenos poderes. Perguntamos aos especialistas: o que se deve ensinar em cada disciplina. Aqui o Desidério pode encontrar muitas objecções, mas repare que nenhuma delas pode ter valor relativamente ao que foi estabelecido a montante. Ou seja, o facto de agora os professores divergirem nada implica, logicamente falando, sobre aquilo que previamente se estabeleceu. Desta forma não se pode dizer, de forma válida, que o facto de os professores discordarem entre si (sobre se se deve ensinar Platão ou Nietzsche, Ética ou Estética, se se deve ou não fazer exames, ou seja lá sobre o que for), implica que possam ficar isentos de regras. Note que não poderá abalar (de forma lógica) as conclusões previamente obtidas.
8) Ainda não está definido, de facto, que programa, que exames, etc. Quem tem legitimidade para o fazer? Ora, a legitimidade está nos órgãos escolhidos democraticamente. Não está nos professores mais uma vez. Os professores não são donos da educação, são executores. O facto de uma pessoa ser exímia na execução do policiamento, não significa que dê um bom juiz. Um bom juiz pode não ser bom legislador. Mas, muito mais importante, o polícia e o juiz não têm legitimidade para legislar. O que é que faz um legislador? Nos Estados modernos: o facto de ser representante dos cidadãos. Por outro lado, quem tem legitimidade para governar? Não um qualquer cidadão. Mas uma instituição: o Governo. E quem ocupa legitimamente o Governo nos Estados modernos? Representantes dos cidadãos. Então, o Governo e a Assembleia têm legitimidade. Mas também isto não diz tudo: devem, claro, fazer-se acompanhar de estudiosos, de especialistas, dos que são reconhecidos como tal, não eu com toda a certeza, talvez o Desidério, enfim, todo um conjunto de especialistas que assistirá aqueles que têm legitimidade para decidir (sendo que a sua decisão deverá ser tão esclarecida quanto possível).
9) Diz o Desidério que esta forma de resolver as coisas tem criado problemas, erros, enfim, mudanças muito rápidas. É verdade. Mas, mais uma vez, formalmente, nada disto tem impacto lógico naquilo que previamente se concluiu. Essa é uma observação meramente empírica. Significa isto que: é verdade que as coisas não têm sido óptimas. Mas, previsivelmente, têm sido melhores do que se cada professor fizesse o que lhe apetecesse. Tem havido erros em muitos exames. Mas isso não significa que se deva acabar com os exames. O Desidério pretende acabar com tudo o que dá erro? Ficaríamos sem humanos. Há discórdia entre os professores. Mas isso não significa que eles possam por isso fazer o que lhes apetece. O Desidério pretende que, sempre que não haja unanimidade, se deixe fazer o que as pessoas querem? Matar-nos-íamos uns aos outros.

Luís Mendes disse...

10) Se cada professor fizesse o que lhe parece melhor ficaríamos pior do que temos sido. Porque assim com o sistema que temos tido, em vez de um não-sistema, pelo menos podemos identificar o que está mal. E isto é uma grande vantagem, porque visto que estamos em democracia podemos discuti-lo, propor melhorias, etc. Mas se cada um fizesse o que lhe apetecesse, como poderíamos avaliar? Seriam os pais, diz o Desidério. Repare no seguinte: o Desidério coloca os pais e os alunos no final de tudo, como que em apêndice ao problema da educação, e é aqui que reside toda a nossa discordância. É que eu coloco os pais e os alunos no início. Começo pelos pais e pelos alunos, e o Desidério acaba neles – só no final lhes dá a palavra. O Desidério deixaria que os professores ensinassem a dança da chuva, porque pensa que é bastante que no final os pais venham avaliar a coisa. Mas não é. É que o mau professor pode encontrar muitas formas de agradar aos pais. O professor de matemática que durante o 10º ano leccionasse aquilo que o programa actual diz que deve ser dado no 1º período teria boas críticas dos pais se fosse simpático, não impusesse coisas chatas aos alunos, e no final do ano, numa grande jantarada de despedida, oferecesse muito boas notas a todos – alguns pais ficariam irritados por os filhos não saberem um pouco mais, mas seriam uma minoria. Mais tarde ou mais cedo as Faculdades teriam que começar a fazer exames de admissão e a ignorar as avaliações do secundário. Não só porque cada professor ensinaria o que lhe aparecesse e uns alunos aprenderiam inequações e outros apenas até à tabuada, mas sobretudo porque muitos professores deixariam de ser rigorosos na avaliação, visto que apenas os pais os avaliariam, e estes querem boas notas, não necessariamente rigor. Os ricos colocariam os filhos em escolas privadas, as quais pagariam aos bons professores para seguirem programas e cumprirem objectivos. Os pobres, esses, perderiam uma conquista civilizacional que parece estar associada à Revolução Francesa, e em Portugal à Democracia e ao 25 de Abril: a escolarização como instrumento de mobilidade social.

Deixo-lhe aqui um agradecimento por esta discussão. Desculpe se não fui claro.
Dou por terminada a minha exposição, parecendo-me que deixei aqui os meus argumentos e contra-argumentos.

Desidério Murcho disse...

1) Que se legisle, é uma coisa; que se legisle abusivamente, é outra muito diferente. A água é um bem comum e há legislação sobre a água. Mas essa legislação seria abusiva se nos obrigasse a beber todos os dias meio litro de água de uma dada marca declarada pelo estado como a única boa. Isto é precisamente o que o estado faz com o ensino. Declara que se tem de ensinar matemática ou história, e como se deve ensiná-la, e que só se pode ensiná-la dessa maneira. E isto é abusivo e arbitrário precisamente porque muitos profissionais da educação discordam — esse é o debate em que andamos há quase 40 anos.

2) A libertação do ensino por mim defendida é para todas as áreas, e não apenas para a filosofia. São os professores que devem escolher o que querem ensinar e como querem ensinar. Na verdade, isso já acontece: são os professores — quem mais haveria de ser? — que faz tais escolhas. O que acontece é apenas isto: alguns professores, os que escolhem isso, ganham o poder político e impõem por essa via as suas escolhas aos outros. Quem faz os exames, programas e directrizes das disciplinas são os professores das respectivas disciplinas; quem faz os desenhos curriculares gerais são também professores. Acontece apenas que estes professores, porque têm o poder do estado, impõem aos outros as suas escolhas. E depois os outros protestam e ficamos num debate estéril durante décadas, em vez de cada qual andar a estudar e a aprimorar e a aprender com a experiência, para ver qual é a melhor maneira de chegar à excelência educativa.

3) Não é legítimo legislar impondo uma ideia única quando nada temos a perder aceitando ideias diferentes. Não é legítimo legislar impondo a religião católica, mesmo que todos os portugueses menos um sejam católicos, porque nada temos a perder se esse único não católico for deixado em liberdade para exercer o seu budismo ou ateísmo. Não é legítimo impor um currículo, um método, um programa quando nada teríamos a perder — e muito teríamos a ganhar — com o pluralismo educativo. Se pensarmos imparcialmente, vemos uma diferença enorme entre permitir o assassínio só porque há quem queira matar outras pessoas, e permitir o pluralismo educativo. Pensando imparcialmente, eu não quero permitir o assassínio, mesmo que eu de facto tenha vontade de matar alguém, porque pensando imparcialmente eu não sei se serei eu quem mata, ou quem é morto. Mas pensando imparcialmente eu nada tenho a perder com o pluralismo educativo, por comparação com o que temos hoje; isto porque se houver pluralismo educativo e eu não gostar das escolhas do meu professor, posso procurar outro. Se houver centralismo, nada posso fazer se acaso não gostar do que me ensinam.

Cláudia disse...

Substância água - H2O

Não está para referencial em analogia.

Desidério Murcho disse...

4) Se você perguntar a cada aluno e pai o que ele quer, a resposta simples é: liberdade de escolha. E é isso que hoje não têm — a menos que sejam ricos. Era isso que eu queria quando era estudante: queria ter podido escolher os professores, para poder repetir as poucas experiências boas que tive com bons professores, deixando as aulas dos muitos outros que só contavam histórias da carochinha. Na situação actual o estado não responde aos interesses de alunos nem de pais; responde apenas às manipulações dos professores que andam nos corredores do poder. O pluralismo educativo dá a pais e professores uma palavra a dizer, directamente, quanto ao ensino que recebem dos professores. Se não gostarem do que faz um professor, procuram outro, ou protestam junto dele. Os professores terão de responder directamente às pessoas reais que estão a servir: alunos e pais.

5) O problema é que você mesmo é incapaz de se colocar na posição original da experiência mental de Rawls. Para ser capaz de fazer isso é preciso ser capaz de pensar imparcialmente, imaginando-se com interesses e personalidades muito diferentes das que tem. E é isso que eu faço, e é precisamente porque faço isso que vejo muito claramente que é a imparcialidade que obriga à pluralidade do ensino. Porque se me imagino nessa situação eu não sei se serei como sou — alguém que prefere matemática e física a conversa fiada sobre os anjos ou sobre o Dasein — ou se serei alguém muito diferente, que prefere precisamente o que na realidade não prefiro. Ora, prefira eu A ou B, se o sistema for centralizado e eu tiver o azar de nesse sistema só ter uma delas quando eu quero a outra, estou tramado. Pelo contrário, se houver pluralismo educativo, prefira eu A ou B, terei essa alternativa à minha disposição.

Deixe-me só fazer um esclarecimento adicional, Luís. Há uma grande, uma enorme diferença, entre divulgar, publicar, estimular — e obrigar. Eu tenho um grande apreço pelos cientistas portugueses que têm currículos académicos sérios — incomparavelmente melhores do que o meu — e que se dão ao trabalho de fazer divulgação científica e livros para o ensino, como é o caso dos professores Carlos Fiolhais, Jorge Buescu e Nuno Crato, entre (felizmente) bastantes outros. (Infelizmente, isto não acontece na nossa área, a filosofia.) Penso que o trabalho que eles fazem é maravilhoso; mas só é maravilhoso porque é um convite e não uma imposição. No dia em que um deles ou todos obrigar toda a gente a estudar o que eles consideram central e importante, e ainda que eu também concorde que é central e importante, eles estarão a ser pequenos ditadores epistémicos, e terão a minha oposição frontal. Não gosto mais de um Estaline epistémico ou pedagógico do que gosto do outro. Infelizmente, Estalines epistémicos e pedagógicos é precisamente o que o Ministério da Educação fomenta, e toda a discussão sobre educação em Portugal é apenas uma questão de várias pessoas diferentes com ideias diferentes tentarem ficar no lugar do Estaline educativo. E eu penso que isso está profundamente errado, porque ofende o princípio da imparcialidade, que é crucial num estado democrático livre, de direito e bem ordenado.

Desidério Murcho disse...

6) Este é outra vez o argumento de que sem o estado a vigiar os professores, estes fariam um trabalho péssimo. Que indícios há a favor disto? Os professores serão piores profissionais do que outros profissionais que não são tão rigidamente vigiados pelo estado, como os professores de futebol ou de música? Além disso, se um professor for realmente mau, é mau segundo que critérios? Evidentemente, os únicos critérios relevantes são os dos alunos e dos pais, e não os seus ou os meus. Isto significa que um trabalho de um colega de matemática ou filosofia pode ser péssimo segundo os meus critérios, mas pode ser excelente segundo os critérios de alguns dos seus alunos e respectivos pais. Nesse caso, qual é o problema de ele desenvolver o seu trabalho precisamente do modo como alguns alunos e pais apreciam, apesar de eu não o apreciar? Desde que eu tenha a possibilidade de escolher outro professor com uma abordagem diferente, que eu considere melhor, não há qualquer problema. Agora compare isto com o que se passa hoje: eu nunca pude escolher os meus professores e quase só tive professores incompetentes no ensino secundário. Se tivesse podido escolher, a história teria sido diferente. Outra coisa que não pude escolher: eu gostava de ciências e de matemática, mas como gostava também de humanidades tive de parar de ter ciência e matemática no décimo ano — para ter uma carrada de disciplinas mentecaptas de que já nem me lembro. Qual é a beleza deste sistema de totalitarismo educativo? A falácia é sempre a mesma: imagina-se, como acontece com todas as defesas de todos os totalitarismos, que o Big Brother está a fazer o que é realmente melhor pelo povão ignaro, mesmo que este rejeite isso que tão generosamente lhe é oferecido. Mas que critérios são relevantes para saber se o que o Big Brother quer para mim é bom? Os dele? Isto é ridículo. Têm de ser os meus critérios. São estes que contam, e os únicos que contam. E contam mesmo que ele tenha razão e eu esteja errado — porque um dos aspectos mais importantes da vida humana é a experiência do erro e se eu preciso de errar para ver que estava errado, é urgente que possa errar. Tenho direito ao erro. Quero poder errar.

A razão pela qual tantos professores hoje precisam de ser vigiados pelo estado é precisamente porque no sistema que temos os alunos e pais nada podem fazer se não gostarem do trabalho do professor. Os professores não são objecto de escolha. E por isso mesmo, fazem o que calha — a menos que o estado os ponha na ordem. É o próprio centralismo que provoca a necessidade de mais centralismo e mais controlo. Nas melhores escolas privadas o estado não controla tão fortemente os professore quanto nas públicas. E você não encontra menos profissionalismo e zelo nas privadas, porque estas são objecto de escolha das pessoas e se as pessoas não as escolherem, têm de fechar as portas; por isso, os professores que nelas trabalham têm de ter brio profissional, têm de fazer as coisas bem feitas. Caso contrário, são despedidos. Há 30 anos você entrava numa escola privada, mesmo das mais baratas, e a diferença era notória: as públicas, começavam as aulas em Dezembro, quando começavam (eu cheguei a começar as aulas depois das férias do Natal); as privadas não falhavam: começavam dia 1 de Outubro, naquele tempo a data oficial para o começo das aulas. Nas públicas, rara era a semana em que eu não tinha “furos” porque os professores faltavam; quando fui para a privada, nunca um só professor faltou. E por que razão fui para a privada? Para poder fazer os exames nacionais: é que nas públicas os professores nem davam toda a matéria que saía nos exames, e por isso lá se ia a universidade. Os professores das privadas tinham precisamente a responsabilidade, que cumpriam, de nos dar toda a matéria necessária para os exames — e não precisavam do controlo do estado para isso.

Desidério Murcho disse...

7) Claro que, por coincidência, o genuíno portador dos reais interesses dos alunos é seja quem for que concorda com o seu modelo de ensino — mesmo que a generalidade de pais e alunos discorde de si. Desculpe-me a ironia, mas ninguém pergunta aos pais dos alunos nem aos alunos se querem aprender as inanidades que existem em quantidade incrível nos programas e desenhos curriculares. Isto é imposto a alunos e pais, que nada podem fazer quanto a isso porque não têm escolha. Se você está realmente preocupado com os alunos e pais — e como professor deve estar porque é perante eles que você e eu devemos responder — então tem de aceitar o pluralismo educativo, porque só este garante que alunos e pais podem escolher o que consideram melhor. E é irrelevante se o que eles consideram melhor é, do seu ponto de vista ou do meu, pior. Sem pluralismo educativo, são as elites que têm poder político que decidem o que os outros têm de estudar e como têm de o fazer, escudando-se na mentira típica de todo o totalitarismo: “é para o teu próprio bem”. Isto é mentira. Toda a máquina educativa do estado tem por missão central, e nem sequer muito disfarçada — basta ler os programas das disciplinas — doutrinar, fazer cidadãos iguais uns aos outros. E os intelectuais querem usar essa doutrinação para fazer mais cidadãos iguais a eles — cidadãos que apreciam a matemática e a música clássica, em vez do futebol e da novela, do surf e da música de dança. Deveria ser óbvio que nada disto é remotamente compatível com uma sociedade livre e democrática, plural e bem ordenada.

8) Só haveria legitimidade para legislar no que respeita a exames, programas e directrizes se de um ponto de vista imparcial reconhecêssemos a impossibilidade de atender a preferências incompatíveis. Isso é o que ocorre com o roubo; se for eu o ladrão, é fixe se for permitido — mas se for eu o roubado, não. E não há maneira de conciliar estas duas preferências antagónicas. Assim, pensando imparcialmente, eu tenho de admitir que prefiro que o roubo seja ilegal, ainda que eu não saiba se vou ser quem rouba ou quem é roubado. Mas no caso da educação isto não acontece. Podemos ter programas diferentes, diferentes desenhos curriculares, diferentes exames nacionais, diferentes métodos, diferentes manuais com diferentes abordagens. Esta diversidade não prejudica seja quem for. Quem prefere A escolhe A, quem prefere B não está obrigado a escolher A, pode escolher B.

Eu não defendo que se deve acabar com os exames nacionais. Defendo que se deve acabar com exames nacionais únicos e estatais. É muito diferente. Os exames nacionais devem ser feitos por associações de professores, e se houver mais de uma perspectiva acerca de como fazer exames de matemática, deverá haver mais de um exame nacional diferente de matemática. Qual é o problema? Por que de razão temos todos de ficar formatados pelos mesmíssimos exames, sem escolha alguma, quando tantos professores e alunos e pais gostariam de ter exames diferentes?

Desidério Murcho disse...

10) Uma vez mais temos o argumento da malevolência e incompetência dos professores. É um argumento curioso, pois se os professores são assim, quem lhe garante que não são eles a fazer a legislação educativa? Por acaso eu até penso que são precisamente os piores professores — os que não têm qualquer interesse em estudar nem em ensinar — que vão para o Ministério fazer directrizes. Mas quem pensa de modo centralista pensa sempre que no Ministério ficam pessoas impolutas, bem intencionadas, os pais da pátria; ou pensam ingenuamente que nós, cá fora, podemos fazer alguma coisa para mudar aquilo de que não gostamos. Ambas as ideias são pueris.

Quem põe os interesses dos alunos e pais no início de tudo sou eu, porque lhes dou a possibilidade de escolher. Quem quer impor aos pais e alunos um modelo único de ensino — o seu — é o centralista. Alguém perguntou a pais e alunos se querem estudar filosofia? Não. Alguém decidiu que têm de estudar filosofia. Se isto não é ditadura educativa, o que o seria?

Seria excelente se as universidades começassem a fazer exames de admissão, pois essa é uma das suas responsabilidades — mas não a querem assumir porque dá trabalho. E preferem deitar esse trabalho para cima dos professores do ensino secundário, que ganham menos e dão mais do dobro de aulas por semana. Se o meu sistema tiver por consequência que as universidades passem a fazer exames de admissão, isso é um ponto a seu favor.

A sua ideia é que sem os estalines educativos o ensino público será uma desgraça e só os ricos terão bom ensino privado, caro. Bom, isso já acontece. Em média, as escolas públicas são piores do que as privadas, e quem tem dinheiro pode oferecer aos seus filhos um ensino muito melhor do que quem o não tem.

Acontece que não há qualquer indício de que as escolas públicas ficariam pior se houvesse maior responsabilização directa dos professores perante quem realmente conta: alunos e pais. Pelo contrário: essa responsabilização directa sempre existiu em maior grau nas escolas privadas e nem por isso as privadas são todas piores do que as públicas. E isso seria um indício seguro de que a responsabilização directa e a possibilidade de escolha produzem maus resultados em vez de bons.

Obrigado pela sua paciência e peço desculpa se não entendi os seus argumentos e ideias. Do que entendi, nada me fez mudar de opinião. Apenas me parece que quem se opõe ao que defendo é porque 1) tem preconceitos impensados contra a livre iniciativa, 2) tem dificuldade em imaginar o novo, um pouco como os vitorianos ficavam assombrados, no séc. XIX, quando se começou a defender direitos iguais para as mulheres, 3) tem crenças empíricas falsas e infundadas sobre o que fariam os professores se respondessem mais directamente perante alunos e pais e 4) tem crenças pueris sobre a bondade das directrizes educativas estatais.

Anónimo disse...

Ola,

Quanto a mim, o Desidério continua a nadar em plena confusão.

1. Em primeiro lugar, contrariamente ao que ele escreve, é claro que existe legislação sobre a agua, precisamente por tratar-se de um bem comum. Existe, por exemplo, legislação que impede que a agua seja poluida, existe legislação sobre as regras de distribuição da agua, existe legislação sobre o preço de distribuição da agua, etc. O argumento do Desidério cai por terra.

2. Assumindo que a questão principal recai sobre a oportunidade de escolher entre varios programas, então teriamos de concluir que esta questão é politica e ninguém tem legitimidade para decidi-la, a não ser os orgãos representativos eleitos, que precisamente decidem atravês da lei e, mediante delegação legal, atravês de regulamentos. A decisão é tomada em nome do povo. Tanto quanto sei, o povo inclui os pais, inclui os alunos (os quais, é certo, so votam quando são maiores), e inclui também os proprios professores, que votam nas eleições politicas tal como os outros cidadãos. E' o que se passa hoje em Portugal, no RU, no Brasil, na Conchinina e, tanto quanto sei, na esmagadora maioria dos paises do mundo. Que legitimidade têm os professores para decidir sozinhos a questão, politica, de saber se devemos ou não ter varios programas à escolha no sistema publico ? Apenas a legitimidade burocratica que se reconhece a peritos, quando eles gozam de autoridade entre os seus pares, coisa que o Desidério nega que exista nesta matéria. Ainda que existissem peritos com autoridade incontestavel, que pudessem dizer, por exemplo, que de um ponto de vista técnico não é possivel ensinar de forma satisfatoria se o programa for decidido a nivel nacional, eles teriam apenas legitimidade para ser ouvidos. Nunca lhes caberia a decisão final. Em democracia, pelo menos, é assim. O sistema que confere plenos poderes a tecnicos chama-se tecnocracia, que é diferente.

3. Mas a questão nem sequer é verdadeiramente sobre a escolha ou sobre a liberdade. Com efeito, é sobejamente reconhecido que os professores se regem por um principio de liberdade. Eles é que decidem, sob o controlo exclusivo dos seus pares (portanto dos profissionais competentes na sua arte) como devem ensinar os seus educandos. Apenas se entende - o que em pais nenhum é tido como um atentado à liberdade de ensino - que o devem fazer dentro de um programa definido em termos gerais, nacionais, por forma a assegurar que os conteudos ensinados aos alunos, com dinheiro publico, são os mesmos em todos os pontos do pais. Por outras palavras, os programas apenas são directivas gerais que definem as competências que os alunos devem adquirir. Seria de todo impossivel, e seria uma profunda inequidade, que não existissem essas directivas gerais, esses objectivos nacionais. Com efeito, em tal situação, teriamos a maior administração do pais, e o primeiro posto do orçamento geral, a funcionar em roda livre, sem quaisquer garantias que as verbas publicas são empregues em condições de igualdade. Como qualquer serviço publico administrativo, o serviço da educação rege-se, entre outras coisas, pelo principio da igualdade, o que implica a igualdade perante o imposto e perante os encargos publicos. Estes principios seriam completamente desvirtuados se o professor de Baixa da Banheira tivesse plena liberdade para ensinar astrologia em vez de filosofia, ao contrario do que fazem todos os outros, prejudicando assim os seus alunos e negando-lhes o beneficio de um sistema de ensino de qualidade, pago pelos impostos de todos.

continua

Anónimo disse...

(continuação)

4. E' claro que deve existir um equilibrio razoavel e funcional entre a necessidade de fixar directivas gerais e a de respeitar a liberdade dos professores. Também é claro que os programas nacionais devem ser bons, assentes nas melhores bases técnicas e compativeis com as regras proprias de cada disciplina. Acho perfeitamente normal e são que o Desidério critique os programas actuais de filosofia nesta base e so posso aplaudir a preocupação dele com a qualidade dos programas de filosofia. Mas esta argumentação vai no sentido de se modificarem os programas, ou de os aperfeiçoar. Nunca poderia servir como argumento para os abolir. Sem programas nacionais, e assumindo que (como afirma o Desidério) existem maus professores de filosofia, so estariamos a encorajar os maus professores a administrar um mau ensino... Não vejo como isso possa conciliar-se com as afirmações do Desidério em prol de um ensino de qualidade.

5. Mas a maior falacia do Desidério consiste em transpor, com algum fanatismo, a logica da "concorrência" para o dominio do ensino publico. A concorrência funciona se estivermos a raciocinar em termos de mercado e se existir elasticidade da procura e da oferta. Se todos os cidadãos têm dinheiro suficiente para comprar sapatos, e se os fabricantes de sapatos podem actuar em condições de concorrência perfeita, então podemos razoavelmente esperar que o mecanismo da oferta e da procura vai tendencialmente fazer com que se produzam melhores sapatos. Infelizmente, isto não acontecte no dominio da educação. Se todos os cidadãos tivessem recursos para pagar a melhor educação para os seus filhos, e se todos tivessem realmente escolha entre os varios estabelecimentos de ensino que se propõem administra-la, então... não precisariamos de um serviço publico de educação ! Dito noutros termos, o serviço publico da educação é de indole administrativa, com forte componente redistribuidora. Não se trata de um serviço de tipo industrial ou comercial. Por isso, a ideia mestra do Desidério nestes ultimos textos, de que a escolha so pode favorecer a qualidade, pura e simplesmente não funciona aqui. Basta lembrar que houve plena escolha durante séculos (antes de existir o ensino obrigatorio), sem que isso se traduzisse pela existência de um serviço de educação de qualidade ao alcance de toda a população...

Boas

joão viegas

Fartinho da Silva disse...

Caro Desidério Mucho,

Tem quase toda a razão. O problema é que passados poucos anos, teria dois ou três grandes grupos económicos a mandar em mais de 90% das escolas e com o único objectivo de obter rendas vitalícias do estado corrupto...

Desidério Murcho disse...

Um dos papéis do estado é precisamente garantir a livre concorrência e evitar as situações de monopólio ou quase monopólio. Não é por qualquer outra razão especial a não ser esta: precisamos da concorrência para termos ideias melhores, para abandonarmos ideias piores. Quando a constituição de grandes grupos económicos lesa a criatividade e a inovação o estado tem de intervir, quebrando a hegemonia desses grupos. Isso pode ser feito de diversas maneiras; uma delas é impedir que o grupo económico que faz X possa fazer também Y.

Mas o importante é aprender com a experiência: ver o que funciona melhor ou pior, e legislar e agir de acordo com isso. Infelizmente, grande parte não apenas dos políticos, mas também dos opinadores públicos, já decidiram politicamente há anos se são do que eles pensam que é uma cor ou outra cor política, e depois defendem sempre a mesma coisa sem ter em conta a realidade. Eu chamo a isso a cegueira da ideologia.

A mim não me interessa ideologias. Se o centralismo do estado funcionar bem, não tenho problemas. Mas se a descentralização funcionar melhor, também não tenho problemas. Se defendo uma em vez da outra, em alguns casos, é porque me parece haver indícios e razões a favor dessa e não da outra -- e não porque eu seja neo-liberal, como me acusam os críticos menos imparciais. Não sou neo-liberal, nem liberal, nem azul nem encarnado: sou o Desidério Murcho e penso pela minha cabeça e erro e mudo de ideias e estou atento a argumentos inteligentes e bem fundamentados contra as minhas ideias. Nada mais.

Anónimo disse...

Ola

"A mim não me interessa ideologias. Se o centralismo do estado funcionar bem, não tenho problemas. Mas se a descentralização funcionar melhor, também não tenho problemas."

Se os teus posts recentes dissessem mesmo isso, ou se fossem escritos com esse pressuposto, eu não teria nada a dizer. Mas não é o caso.

Decentralização e autonomia são uma coisa, pivatização ou desregulamentação é outra, diferente. Os posts que escreves defendem, de maneira completamente ideologica e sem qualquer tentativa sincera de debater o assunto com rigor, a privatização e a desregulamentação (e não apenas a decentralização) "porque sim", porque para ti o que é estatal é mau por definição, ou impossivel de conciliar com a liberdade e necessariamente sinonimo de ineficacia e de custos injustificados.

Esta postura impede que os teus argumentos, porventura bons, em prol da melhoria dos programas, ou do sistema, ou mesmo da regulamentação, possam ser ouvidos. So isso...

Sugiro que, apos escreveres um post, pares um pouco e faças o teste dos falsificacionistas : sera que as hipoteses propostas no meu texto podem ser infirmadas pela realidade ? Que dados as podem infirmar (ou confirmar) ?

Mas devo admitir que num aspecto estas a ser convincente. Quando te leio fico a pensar, "bom, se os programas nacionais suscitam tanta raiva, a ponto de abolir o rigor que o Desidério apregoa nos seus outros textos, então devem ser mesmo bastante maus...".

Abraço

joão viegas

Fartinho da Silva disse...

Caro Desidério Mucho,

Peço imensas desculpas por responder só agora.
Concordo inteiramente com o que acabou de escrever. O meu propósito foi apenas e só o de chamar a atenção para o enorme problema que temos em Portugal com as rendas e os monopólios. O Estado tem a obrigação de resolver estes problemas e de evitar novos constrangimentos desta natureza...

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