sábado, 25 de junho de 2011

REGRESSO A JUNQUEIRO (1)


Pedinchão inveterado de textos do ensaísta Eugénio Lisboa, recebi dele este mail cuja divulgação pública será desculpada pela sua longa e, para mim gratíssima, amizade: “Caro Rui, acabo de te enviar um texto sobre Guerra Junqueiro. É o posfácio que escrevi para o livro 'À Volta de Junqueiro', organizado por Henrique Manuel Pereira, edição da Universidade Católica, Porto.

Com o agrado de sempre, publico-o com a certeza do seu valioso contributo como tema humanístico para um sistema educativo que das humanidades tão arredado parece andar porque prisioneiro em grilhos que, salvo raras e honrosas excepções, não primam pela correcção.

"Este acervo de entrevistas dedicadas à personalidade e à obra de Junqueiro constitui-se num autêntico acto de justiça. E, como se trata de um riquíssimo e variado conjunto de depoimentos, bem se pode dizer que é justiça pela medida grande. Pois é assim – e só assim – que ela deve fazer-se, quando, por fim, se faz justiça: já alguém observou, com acerto, que a moderação na busca da justiça não é uma virtude. Por outro lado, é também sabido – e tem sido justamente reiterado – que não só se deve fazer justiça, como se deve providenciar no sentido de se ver que ela está a ser feita. Desejo, por isso, que este volumoso livro, devido à excepcional competência de Henrique Manuel Pereira e à sua quase inconcebível capacidade de trabalho, tenha a maior divulgação possível, assim permitindo que o excepcional poeta que foi – e é – Junqueiro regresse à atenção carinhosa de escolas, universidades, institutos de investigação e público em geral.

A desproporção entre a atenção e aplauso ruidoso de que o poeta de Os Simples desfrutou em vida, e o silêncio pesado e opaco que o envolveu durante as décadas que se seguiram à sua morte, em 1923, chega a ser obscena. Para esta desproporção têm-se buscado causas várias e a de uso mais corrente é a que, neste livro, indica Mário Soares, ao considerar “muito injusto” o ensaio de António Sérgio, O Caprichismo Romântico na obra do Snr. Junqueiro (1920), no qual o grande ensaísta mimoseava o bardo de Pátria com primores deste jaez :”pitonisa histérica de barricada, grande versejador e pequeno espírito, espirrador de frases vácuas que ainda se admiram por aí além”. Seguiu-se-lhe Vieira de Almeida, que também não foi macio: “Não é um artista, em nenhum dos sentidos da palavra; é um retórico de impropriedade redundante, verbosidade frouxa e arranque disparatado.”

Com o devido respeito devido a Mário Soares, não estou de acordo com o facto de se considerar ”injusto” o ensaio de Sérgio: agressivo, quase truculento (na esteira do Junqueiro satírico, de resto...), talvez; injusto, não, na medida em que o autor dos Ensaios explicitamente observa que, no seu texto, “se não trata de críticas literárias a um poeta, e de coroar com elogios, ou de apear com repreensões, a beleza ou fealdade que possam existir nas suas obras”. Sérgio reconhece em Junqueiro “muito talento” e “poder de verbo”, simplesmente nota que lhe falta “finura de inteligência” e “grandeza de alma”. Sérgio critica a “natureza dos seus [de Junqueiro] livros como instrumentos de formação humana, como temperadores e orientadores da mentalidade de quem os lê”, porque se sente autorizado a fazê-lo pelo próprio Junqueiro, quando este avisa (e quem me avisa meu amigo é) que “a arte, e especialmente a poesia, tem uma acção directa na vida e nos costumes”. É ao pensador, ao formador, ao filósofo, que Junqueiro ostensivamente quer ser – é a estes que se dirige Sérgio, inculcando que o talentoso poeta não é nada daquilo que aspira a ser. Goethe observava que Byron só era grande quando cantava, mas, desde que se punha a reflectir, não passava de uma criança. Não se diga que Junqueiro era exactamente uma criança, mas fazer dele o grande pensador, o grande filósofo ou o grande místico que alguns nele quiseram ver só pode levar, por reacção, ao exagero contrário dos que o acusam de “verbosidade frouxa” e de primarismo de pensamento.

Exagero puxa exagero, de sinal contrário e dimensão idêntica. Voltaire dizia do comediógrafo francês Pierre Marivaux que este passava a vida a pesar coisa nenhuma em balanças feitas de teias de aranha. Em reacção ao hiper-filósofo que alguns contemporâneos viram no autor de "A Musa em Férias" (Raul Brandão pasma literalmente perante a suposta bossa filosófica do bardo), pode cair-se na tentação vingativa de aplicar-lhe o vinagre do autor de Candide. Sem vantagem para ninguém. De resto, acho sempre pouco saudável atribuir-se o descrédito em que, entre nós, caem certos valores ao que deles disse o Sr. Fulano ou o Sr. Cicrano. Que as críticas de Sérgio tenham anulado durante nove décadas o estatuto de Junqueiro não prova nem o poder aterrador de Sérgio nem a nulidade deprimente do poeta: expõe, tão só, a menoridade intelectual e cultural de gerações que se vergaram, timoratamente, a um único juízo proferido por um “clerc” de grande gabarito. Foi assim que Almada “apagou” Júlio Dantas (a quem, aliás, pediu desculpa, mas isso não contam os trovadores) e que Eduardo Lourenço quase “deliu” a presença – não pela força dos argumentos aduzidos, antes pela menoridade intelectual dos consumidores. É este um fenómeno que caracteriza a nossa vida cultural, que vive de subserviência e , não pouco, de um inquietante teor de provincianismo.

Sérgio soube sempre separar as águas: para um lado, a coisa literária, com os seus valores próprios, para o outro, valor formativo, social, moral das obras. Nuno Júdice, no seu aliás muito belo depoimento, nota que “António Sérgio é um homem que não adere muito à poesia”, o que julgo ser menos verdade".

Eugénio Lisboa


(Continua)

2 comentários:

Cláudia S. Tomazi disse...

Vislumbra a natureza ao que possa conceber,
de mui Formosa o prepraro, até ensaios raros,
que visitamos em quanta história, mas, da glória?!
Em tratar-se por lógica das atitudes, conceder

eis, resta ao humano tam perpicaz, vitória!
Elucida aos trâmites do que fora o empenho,
e se por d'estes, que em desdenho o desengano,
se afronta ao decrépito, eleva-o ao engenho.

Desde que fora assim, com o passar das contas,
posto que as letras em tudo, sabe do que apronta
a toda gente o futuro pretérito e futuro presente!

Modestia é esta homenagem ao Junqueiro, e a ponta
entre tantas que levanta, que encontram-se as tantas,
que é arte de pensamento ao que deveras é lente!

Cláudia disse...

modéstia*

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