segunda-feira, 26 de abril de 2010

Bolseiros forçados a dar aulas de graça


Encontram-se em discussão pública os Projectos de Regulamentos do Estatuto da Carreira Docente Universitária na Universidade de Lisboa. No artigo 13, que transcrevo, contempla-se a possibilidade de ser atribuído serviço docente aos bolseiros sem qualquer remuneração:
Artigo 13.º
Serviço docente dos bolseiros de investigação

1 — Aos bolseiros de investigação da Universidade de Lisboa pode ser atribuído o serviço docente previsto no artigo 3.º.
2 — O serviço lectivo não deve exceder quatro horas semanais de aulas e seminários.
3 — Compete ao Conselho Científico proceder à distribuição do serviço docente aos bolseiros de investigação, de acordo com as respectivas qualificações.
4 — Pelo serviço lectivo atribuído aos bolseiros não é devida qualquer remuneração adicional.
Não se trata de um convite ou proposta, que estou certo que seria do acordo de muitos bolseiros, mas da pura e simples atribuição. Eu sei que as universidades estão estranguladas financeiramente. Mas isto é roubar os pobrezinhos.

Infelizmente o problema está longe de ter origem na UL.

Os bolseiros exercem funções em regime de exclusividade, ou sejam não podem exercer outras actividades remuneradas. Exceptuam-se algumas situações, entre as quais a docência no ensino superior. Mas a Fundação para a Ciência e Tecnologia deduz a remuneração da docência ao valor da bolsa (até um mínimo de €250).

Consideremos um bolseiro de doutoramento, que recebe €980. Se ganhar €500 a dar aulas a FCT paga-lhe apenas €480. Se ganhar mais de €730, a FCT paga-lhe sempre €250. E não há limite de número de horas de aulas, pelo que a questão não é o tempo retirado à investigação.

No fundo o que a UL diz com este regulamento é qualquer coisa como "vocês não ganham mais de qualquer forma, ao menos não somos nós a pagar".

Transcrevo dois artigos do estatuto do bolseiro de investigação em vigor, que me parece claramente desrespeitado por esta docência forçada:

Estatuto do Bolseiro de Investigação Científica

Lei Nº 40/2004, de 18 de Agosto

ARTIGO 1º
ÂMBITO DE APLICAÇÃO

(...)

5. É proibido o recurso a bolseiros de investigação para satisfação de necessidades permanentes dos serviços.
ARTIGO 2º
OBJECTO

São abrangidas pelo presente Estatuto as bolsas destinadas a financiar:

a. Trabalhos de investigação tendentes à obtenção de grau ou diploma académico pós-graduado;

b. Actividades de investigação científica, desenvolvimento tecnológico, experimentação ou transferência de tecnologia e de saber, com carácter de iniciação ou actualização, independentemente do nível de formação do bolseiro;

c. Actividades de iniciação ou actualização de formação em qualquer área, desenvolvidas pelo próprio, no âmbito de estágio não curricular, nos termos e condições previstas no regulamento de concessão da bolsa, salvo o disposto em lei especial.

(...)

Financiar aulas não está incluído...

ARTIGO 4º
NATUREZA DO VÍNCULO

Os contratos de bolsa não geram relações de natureza jurídico-laboral nem de prestação de serviços, não adquirindo o bolseiro a qualidade de funcionário ou agente.

Para o bem e para o mal. Que legitimidade há então em "atribuir serviço docente"? Que acontecerá se o bolseiro recusar? É despedido? O mecanismo efectivo é a coação. Lembremos a fragilidade do bolseiro: basta o orientador não dar um parecer favorável à renovação da bolsa e esta não é renovada.

15 comentários:

Tatiana Faia disse...

Constatação muito curiosa esta, sobretudo quando se lêem notícias animadoras como esta: http://www.publico.pt/Ci%C3%AAncias/portugal-tem-novas-armas-para-travar-fuga-de-cerebros_1433895
E creio que isto demonstra o quanto todos os dias somos desinformados...

Anónimo disse...

No meu caso, cheguei a estar 5 meses no início do doutoramento sem receber bolsa. Como não tenho muitos recursos, vivi mal!

Rui M disse...

Era só o que faltava.

joão boaventura disse...

George Steiner disse ...

"A lei, por mais draconiana ou esclarecida que seja, comporta compromissos e iniquidades."

(In Os livros que não escrevi).

Anónimo disse...

"Mas a Fundação para a Ciência e Tecnologia deduz a remuneração da docência ao valor da bolsa (até um mínimo de €250).

Consideremos um bolseiro de doutoramento, que recebe €980. Se ganhar €500 a dar aulas a FCT paga-lhe apenas €480. Se ganhar mais de €730, a FCT paga-lhe sempre €250. E não há limite de número de horas de aulas, pelo que a questão não é o tempo retirado à investigação."


Isto não é assim com o regulamento de 2009. Nele, é admitido o exercício de actividade docente até um máximo de 6 horas semanais. Consulta aqui, ó marçal:

http://alfa.fct.mctes.pt/apoios/bolsas/FAQ


Embora no regulamento não esteja muito explícito, a informação que tenho é de que é prática da FCT não descontar no valor da bolsa rendimentos proveniente de actividade docente até um máximo 6 horas semanais. Podes consultar a ABIC.

Rui Albuquerque disse...

Que volte a haver a categoria de Assistente!!!

Por que a tiraram do ECDU? Para poupar mais uns cobres, para fazer acordos de qualidade duvidosa com as universidades americanas, para sustentar um sistema que tem cada cada vez mais iniquidades e injustica como esta. Porque nos grandes lucros e nos "empregos" luxuosos das elites nunca tocam.

Ana disse...

O que é muito interessante é haver bolseiros que praticamente dão as aulas dos seus chefes de equipa...e não só não são remunerados na totalidade, como tb não podem incluir essas aulas nos curriculos!!

Anónimo disse...

Mas o que Anon_16:22 refere não contradiz nada: o que a FCT e o EB dizem é que o bolseiro pode dar até 6h de aulas por semana, em média anual. O ECDU vem agora dizer que as 4h previstas não são remuneradas. Ou seja, é permitir estatutariamente uma situação que já existe e se vai agravar: o trabalho não remunerado. Há quem lhe chame esclavagismo...

Pedro M. S. Monteiro disse...

Não vejo problema num aluno de doutoramento despender 4 horas semanais com este tipo de actividades, até acho muito enriquecedor. Desde que essas aulas sejam pagas como acontece por exemplo na Universidade de Cambridge. Os alunos de doutoramento recebem algum dinheiro por dar aulas práticas (laboratórios, aulas de exercícios, supervisionar exames, etc). O que não concordo é que exijam aos alunos. Se os alunos recebem bolsa da FCT concordo que até sejam obrigados a prestar serviços, desde que requerido pela FCT, mas se não tiverem bolsa acho um disparate. Em Cambridge os colégios tem bolsas e muitas vezes exigem que estes tipos de trabalhos sejam feitos, mas nunca um aluno sem bolsa é obrigado a dar aulas.

Ana disse...

Já para não falar, por exemplo, de um chefe de equipa se recusar a dar o seu parecer favorável à bolsa ou renovação da mesma por razoes meramente "politicas", isto é, por o bolseiro estar a ser orientado por algum elemento com quem, por acaso, o chefe tenha uma guerra pessoal.

E o que dizer quando,por guerras e questiunculas mesquinhas entre chefes, toda a equipa ser obrigada a migrar para outro departamento ou centro de investigação? E acabar destruida por falta de financiamento? De bolseiros que nao estao para aturar esta falta de respeito e estatuto profissional?

o meu reportório de histórias deste estilo é imenso; a minha total e completa desilusão também!

De modo que, como tenho de viver e evoluir, disse que já chegava!

Anónimo disse...

Quando a investigação (e designadamente a investigação correlacionada a projectos de doutoramento)é condicionada por critérios extra-científicos como alguns exemplos aqui demonstram, deixamos de ter investigação com liberdade e passamos a ter coacção. Coacção que infelizmente pode ( e digo apenas pode...)partir do próprio orientador, das suas ambições, vaidades e desígnios pessoais. Por outro lado é conhecido o drama de muitos bolseiros doutorandos que fazem verdadeira ginástica de subsistência.De modo que se torna quase redundante recordar o artº 4ºdo estatuto do bolseiro. Ser bolseiro é um acto de fé na capacidade de resistir.
Daniel de Sousa

Ana disse...

A ciência portuguesa está cheia de exemplos de esclavagismo, actos de fé e resistência. É verdade que há quem encontre melhores paragens, mas nem todos têm a sorte de estar com um bom chefe de equipa, nem todos podem ir para fora (e a maioria permanece lá fora), nem todos têm meios para se sustentarem enquanto esperam por uma bolsa que não irá aparecer, nem todos têm feitio para engolir sapos.

A Ciência portuguesa não precisa só de financiamento, tb precisa de uma mudança de mentalidades, porque a continuar com a subserviência e o despotismo de alguns académicos (que hoje em dia, dado que já ganharam o seu assento, pouco fazem para além de colher os louros pelo trabalho de outros ou arranjar guerras com outros departamentos ou então, nada...), chegará o dia que praticamente nenhum cientista permanece em Portugal ou nas instituições de investigação.

Peço desculpa pelo meu negativismo, mas a minha experiência em Ciência foi um sonho mau que hoje só quero é ver pelas costas (mas não posso, porque me encontro à espera de ser chamada para defender a tese de mestrado, que entreguei há quase 5 meses atrás e cujas previsões apontam que seja marcada para julho...tenho colegas à espera há um ano...assim vai o ensino universitário em Portugal...).

David Marçal disse...

A posição do Sindicato Nacional do Ensino superior acerca do projecto de regulamento em causa, que considera ser ilegal a obrigação dos bolseiros prestarem serviço docente:

http://www.snesup.pt/htmls/_dlds/ulisboa_rp_servicos_snesup.pdf

Anónimo disse...

Eu pouco me importo com os bolseiros de doutoramento, se querem estudar doutoramento é porque têm condição temporal para isso, senão pensariam em outros horizontes.

O que me preocupa é uma aula do ensino superior ser leccionado por alguém que não tem o mínimo de preparação para tal. Surge então um novo fenómeno, dos "professores" universitários obrigados, donde a faculdade onde eu estudo abunda, mas isso é pouco importante, os alunos têm de ser autodidactas - desde cirurgiões a arquitectos - o importante é aprender sozinho, as faculdades tornar-se-ão só um edifício fictício, é eese o sonho de uma noite de bologna!

E depois há quem reclame dos profissionais no mercado de trabalho...

Mas isso é pouco importante para DGES, as faculdades ou mesmo para o De Rerum Natura que espero um "post" sobre a qualidades das faculdades do ponto de vistos da capacidade didáctica dos professores.

Que fique o meu comentário, sem ofensas, ao que sinto na faculdade onde ando. Pode ser um caso isolado, mas será?

Catarina disse...

Eu e um amigo produzimos um contributo para a discussao deste artigo do regulamento proposto pela UL. Para mais informacao, vejam no Forum da ABIC a ultima mensagem: http://forum.bolseiros.org/viewtopic.php?f=8&t=3450#p16106

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...