sábado, 21 de fevereiro de 2009

A Física em Coimbra no século XIX - 1


Post convidado do historiador de ciência Décio Ruivo Martins (na foto galvanómetro de Thomson, adquirido em 1858):

Entre 1808 e 1810 a invasão pelas tropas napoleónicas criou uma grande instabilidade na vida académica coimbrã. Vários estudantes e professores da Universidade de Coimbra ajudaram na defesa da cidade e da região. O Laboratório Químico desempenhou um papel essencial na resistência ao ser transformado numa fábrica munições. O seu director, Thomé Rodrigues Sobral (alcunhado pelos franceses como o "mestre pólvora") distinguiu-se na luta contra os exércitos de Junot e de de Massena. Sob a sua orientação, boa quantidade de pólvora e munições para a artilharia portuguesa foram fabricados no local onde hoje é o Museu da Ciência (um enorme almofariz de pedra usado nessa tarefa encontra-se em exposição no átrio). A casa de Sobral foi incendiada pelos soldados de Massena em retaliação. Vários instrumentos do Observatório Astronómico e do Gabinete de Física foram confiscados por Junot nunca tendo regressado. Após a ocupação francesa, a Guerra Civil (1828-1834) condicionou também o funcionamento da Universidade. Em parte devido a essas guerras, a ciência e o ensino em Portugal atrasaram-se em relação aos outros países europeus.

Contudo, na segunda metade do século XIX, foi reconhecida a necessidade de criar condições para que a Universidade pudesse acompanhar a evolução das ciências experimentais observada nos centros mais avançado. Os professores da Faculdade de Filosofia argumentaram que, quando as nações civilizadas davam a maior importância à ciências experimentais e quando se verificava um progresso tecnológico sem precedentes, a Universidade de Coimbra não podia ficar de fora. Assim, no final da década de 1850, começaram a dar-se passos para a criação nessa Faculdade de um centro dedicado ao geomagnetismo. Foram os professores de Física Jacinto António de Sousa e António dos Santos Viegas que mais se empenharam neste projecto. Em 1840, a Royal Society de Londres tinha incentivado a Academia das Ciências de Lisboa para que em Portugal fossem realizadas observações geomagnéticas tal como eram feitas na rede britânica. No Verão de 1857, após uma visita do astrónomo e físico germano-escocês Johann von Lamont, Portugal aderiu à Göttingen Magnetischer Verein, estabelecida em 1834-1836 por Gauss e Weber. A Universidade já tinha tradição de observações geomagnéticas pois que, desde o início do século XIX, eram, no Gabinete de Física, feitos registos de declinação e inclinação do campo magnético terrestre. As medições meteorológicas eram também feitas regularmente três vezes por dia, desde 1845, tendo os resultados sido publicados na revista O Instituto, iniciada em Coimbra desde 1852. Com o objectivo de criar um Observatório Meteorológico e Magnético (hoje o Instituto Geofísico) segundo os padrões internacionais, os professores de Física estabeleceram na década de 1860 contactos no estrangeiro para se familiarizarem com as mais recentes técnicas experimentais nessa área. Alguns professores visitaram os melhores observatórios geomagnéticos da Europa, tendo obtido a colaboração de eminentes cientistas como Jacques Adolphe Quetelet (fundador do Observatório Real da Bélgica), Edward Sabine (um dos promotores da Magnetic Crusade, exortando o governo britânico para criar observatórios magnéticos em todo o seu vasto império), e Balfour Stewart (director do Observatório de Kew). Para equipar o observatório de Coimbra foram seguidas as recomendações de uma das obras de referência da época: Magnetic Instructions for the use of Portable Instruments…; with forms for the registry of magnetic and meteorological observations, de Charles Riddell. Alguns dados do Observatório de Coimbra foram publicados nos Proceedings of the Royal Society em 1867 e em 1870.

Ao longo da segunda metade do século XIX, foram estabelecidos vários contactos internacionais por Santos Viegas, que durante mais de 50 anos se dedicou ao Gabinete de Física. Em 1876 participou nas conferências científicas realizadas no South Kensington Museum, em Londres, onde visitou a exposição de instrumentos científicos. Este museu continha muitas das peças que hoje estão no Museu da Ciência de Londres. Viegas foi o representante nacional na Conferência Internacional e Exposição de Electricidade que teve lugar em Paris, em 1881, reunindo cerca de 250 delegados de 28 países. Nesaa época, os cientistas e telegrafistas reconheciam a necessidade de fixar unidades de grandezas eléctricas e definir padrões de medida aceites internacionalmente, a fim de que todas as medidas fossem comparáveis. A Sociedade de Engenheiros Telégrafos tinha sido fundada em Maio de 1871, numa reunião realizada em Londres e Charles William Siemens tinha sido convidado para seu primeiro presidente. De acordo com Alexander Trotter, o termo "engenharia eléctrica" começou a ser usado na exposição de Paris. Em 1887 a Sociedade de Engenheiros Telégrafos passou a chamar-se Instituto de Engenheiros Eléctricos (hoje é conhecida como Instituto de Engenharia e Tecnologia).

Durante a sua estada em Paris, Viegas recebeu do governo francês a Legião de Honra. Em 1883 foi um dos fundadores da Sociedade Internacional de Electricistas, sedeada em Paris, que depois passou a designar-se Sociedade Francesa dos Electricistas. No mesmo ano Viegas foi membro da Comissão Científica da Conferência e Feira Internacional de Engenharia Eléctrica, realizada em Viena, cujo conselho foi presidido pelo famoso físico Jožef Stefan, director do Instituto de Física de Viena. Stefan orientou o doutoramento de outro grande físico: Ludwig Boltzmann. Ambos se tornaram célebres pelos seus estudos sobre a radiação do corpo negro e pela lei de Stefan-Boltzmann. Nas suas visitas a França, Bélgica, Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria, Itália, etc, Santos Viegas conheceu e trabalhou com muitos cientistas de renome, como William Thomson (Lord Kelvin), Helmholtz e Kirchhoff. No Conservatoire des Arts et Métiers, de Paris, conheceu Alexandre Becquerel, pai de Henri Becquerel, o descobridor da radioactividade. Nos últimos anos da sua vida, Santos Viegas lançou uma nova área de estudos – a sismologia – tendo-se tornado membro da Sociedade Sismológica Italiana. Em Abril de 1903 instalou um pêndulo horizontal Milne no Observatório Meteorológico e Magnético de Coimbra. O seu último projecto científico consistiu na montagem de um sismógrafo Wiechert, que deixou inacabado.

O programa de ensino da Física Experimental da Universidade de Coimbra foi evoluindo ao longo do século XIX, revelando semelhanças com os das melhores escolas francesas, principalmente a Escola Politécnica. Sob a supervisão dos Santos Viegas a colecção de instrumentos do Gabinete de Física foi sendo actualizada. Existem hoje muitos instrumentos feitos por Duboscq e Pellín, Breguet, Bianchi, Koenig, Ruhmkorff, Muller-Unkel, Geissler, Siemens & Halske, etc., que muito enriquecem o património do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra.

Décio Ruivo Martins

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