domingo, 8 de fevereiro de 2009

Podem destruir-se as culturas?

Novo post convidado de João Boavida, antes publicado no Diário As Beiras, sobre um assunto que, tanto é olhado como desprovido de interesse reflexivo, como é posto no cerne da identidade cultural: a língua ou línguas que usamos para pensar e comunicar.

É conhecida a nossa tradicional francofonia. Eça de Queirós, quando chegou a Lisboa, ido de Coimbra, reconheceu, espantado: “Era outra vez a França, sempre a França. Eu deixara-a dominando em Coimbra, sob a forma filosófica; vinha encontrá-la conquistando Lisboa, de pena no ar, sob a forma do can-can…” E não era só connosco. As elites russas de novecentos gostavam de falar francês, leia-se “Guerra e paz”, do Tolstoi. Boa parte do século XX é ainda francófona.

O deslocamento do centro de gravidade da Europa para os Estados Unidos, durante o século XX, foi fatal para a cultura e língua francesas. O poder americano, económico e político, a investigação científica, as universidades e a maciça colonização audiovisual tornaram o inglês língua dominante.

Mas, devemos promovê-la diligentemente, ou tomar algumas distâncias sanitárias? Há quem veja aqui um dilema: se aceitarmos o facto, engrossamos o caudal e afundar-nos-emos, como cultura, na corrente cada vez mais forte; se reagimos e a rejeitamos, ficaremos isolados, longe dos da frente na economia e na ciência, aumentando o nosso atraso. Mas os dilemas residem, muitas vezes, mais nos espíritos rígidos que os formulam que nas situações que pretendem traduzir; portanto, as coisas não devem ser vistas assim.

Mas o problema é sério. A longo prazo pode significar o fim da nossa cultura. Podem dizer-me: a questão põe-se só para a ciência e a economia. Mas não são ciência e economia dois dos maiores factores de dinamização e estruturação social e cultural? E nem as artes escapam, com a música à cabeça. Abram-se as nossas estações de rádio e contabilize-se o número de diligentes e excitados promotores da música anglo-americana. Resta a literatura como campo da nossa especificidade cultural. Nela, por enquanto, a língua portuguesa ainda é a nossa pátria, como dizia o Pessoa; mas por quanto tempo?

Quando os cientistas só falarem e escreverem em inglês e os alunos tiverem que falar inglês nas universidades, o inglês acabará por vir para as ruas, transformando as outras línguas numa misturada, como aconteceu com o baixo latim. Ou então cientistas e homens cultos fechar-se-ão em grupos, isolados da população ignara, acabando por tirar às culturas o alimento que lhes dá vida e força.

É bom recordar aos políticos que o português é uma língua em expansão, com perto de duzentos e cinquenta milhões de falantes. Precisa, pois, de criar e valorizar léxicos científicos, estruturas sintácticas treinadas no pensamento exigente e complexo. E é suficientemente rica e dúctil para o fazer. Bem e sem complexos, como o tem feito o castelhano, por exemplo. As línguas ganham estatuto, ou perdem-no.

O historiador Paulo Varela Gomes veio há dias, de Goa, numa crónica no Público, falar, com raiva, no modo como a língua, os hábitos, os tiques e as manias dos ingleses invadiram os territórios onde a nossa cultura em tempos “deu cartas”. E como os ingleses, a partir do século XIX, nos começaram a considerar uma raça inferior. E nós, portugueses, a ajudar, com o espírito decadente a que muitos não resistiam então, e que continua por aí, alegremente suicida. Sim, leu bem: nós ajudámo-los a destruírem-nos. Diz ele: “…quem promoveu a educação em inglês nas escolas de Goa, no século XIX, foram as autoridades portuguesas, que, liberais ou republicanas que eram, partilhavam com os ingleses a ideia de que o velho Portugal era tão decadente que nem a língua se lhe aproveitava”.

Serão muito diferentes as situações? Era bom que certos políticos conseguissem ver para lá da ponta do nariz e não fossem mais papistas que o Papa.

João Boavida

12 comentários:

Carlos Faria disse...

Concordo plenamente, temos de fazer qualquer coisa pela nossa língua no domínio das ciências, economia e tecnologia. É irritante essa mania de terminologia anglo-saxónica quando temos termos lusos sinónimos ou a possibilidade de os criar, enriquecendo definitvamente a nossa forma de expressão. Aspecto ainda mais importantes se tivermos em conta que somos 250 milhões de pessoas a puderem usar esses termos e quiçá exportar novos termos. Já a 23 de Janeiro protestei suavemente contra essa submissão do português técnico ao ingles no meu humilde blog. apesar de gostar da língua de shakespeare e esta ser a do meu país natal
Carlos Faria

joão boaventura disse...

E não só.

Quando os ingleses entraram em Portugal para escorraçarem as três invasões (parece que foram 4), aproveitaram o ensejo de comprar minas e fábricas têxteis, para as fecharem, como se as débeis minas e os fracos teares pudessem alguma vez fazer perigar as minas e os teares ingleses.

Anónimo disse...

Aliás, Eça sintetizou de forma lapidar a utilização popular de galicismos, com a frase: "Portugal é um país traduzido do francês, em calão". Todavia, o próprio Eça não se subtraíu a esse fascínio, através de uma prosa erudita polvilhada de palavras francesas criticadas como uma forma de pedantismo.Como bem alerta o Prof. João Boavida, surge agora um espécie de escravidão académica ao inglês, através de ventos soprados da América que quase apagaram, tornando bruxeleante, a língua francesa tão "vivinha da costa" na minha juvente. Haja em vista o papel áureo do francês em textos universitários de Anatomia. Mas isso são águas passadas que quase já não movem moinhos do âmbito de muitas ciências.

joão boaventura disse...

Vamos voltar à recta pronúncia.

Anos atrás propus que se alterassem os anglófilos
rugby, e foot-ball
para lhes tirar as vestimentas râguebi, e futebol, que denunciavam o aportuguesamento.

Propus, com base no grego, as suas substituições por, respectivamente, baliqueirópodo (jogado com os pés e as mãos), e balípodo (jogado com os pés).

Consultei o catedrático de Coimbra, o Dr. Manuel de Paiva Boléo, para dar o seu parecer sobre os meus arrojos. Na volta do correio, num postal, comunicou-me a dificuldade da difusão dos novos vocábulos, resumindo o todo, nesta simples frase:

"O povo é que faz a língua".

Vitor Guerreiro disse...

On the other hand:

Se os tiques anglo-saxónicos (seja lá o que isso for) entram na Europa, os tiques europeus também entram na cultura anglo-saxónica (a globalização tem dois lados): o próprio inglês "genuíno" é modificado à medida que interage e modifica outras línguas. Outro exemplo: há mais leitores de filosofia analítica no "continente" mas também há mais tolos nos EUA e no UK a achar que Derrida e Heidegger são o melhor do mundo a seguir ao oráculo de Delfos.

De resto, quando o latim se expandiu, isto também implicou um "imperialismo" que cilindrou outras "culturas". Terá isto sido mau? Francamente, penso que não. Basta ver pela língua - quanto mais se afasta do latim mais idiota, baldas e incapaz de servir para escrever a sério sobre qualquer coisa que não seja vender sabonetes e vender a nova personalidade mística do momento, normalmente, um romancista de Delfos a alvitrar oráculos sobre o destino da cultura... ou apenas sobre sabonetes.

O multiculturalismo sofre de muitos problemas. Um deles é pressupor que os indivíduos estão bem nas suas próprias "culturas" e que afastar-se da "cultura" equivale ao ódio a si próprio ou a "perder as raízes". Correndo o risco de soar aqui demasiado "on the road" (mas sem o misticismo da coisa), eu diria, apelando a essa imagem do romance de Kerouac, que as "raízes" estão precisamente aí, no movimento. As "culturas" são apenas instantaneos, snapshots, polaroides, de um estado de coisas num dado momento. Falar em "preservar" a cultura é o mesmo que querer manter quietinhos os estados de coisas. No caso do multiculturalismo, "preservar" as culturas "étnicas" é apenas uma boa maneira de criar tachos para os autodenominados "líderes de comunidade" (invariavelmente religiosos), eleitos por ninguém, mas supostamenet representativos de todos. A assimilação, os interesses das pessoas que querem assimilar-se, são obstáculos no caminho desses tachos. É um dos aspectos mais perversos do multiculturalismo.

Há muita coisa idiota na "cultura" americana e inglesa? Sim, mas há coisas muito idiotas em todo o lado. O que temos de perguntar não é se isto é "francês" ou "italiano" ou "americano", mas se é bom, se é verdadeiro, se aumenta a liberdade dos indivíduos ou se a entrava, se é melhor ou se é pior. As coisas que vale a pena preservar valem-no não pela origem que têm mas pelo que são. Há muita coisa anglo-saxónica que não vale um cagalhão...certo. Mas não é com a rejeição multiculturalista ou europeísta do "inimigo bretão" que nos livramos disso. Meter os putos na rua a imitar os fadistas à sec. XIX não é a melhor maneira de contrabalançar a idiotia de imitarem os rappers norte-americanos. É apenas o mesmo merdum servido com outro tempero.

Anónimo disse...

Eu acho preferível cultivar o português e o castelhano para nos aproximarmos ainda mais das evoluídas culturas da América do Sul.

Vitor Guerreiro disse...

Compreender-se-á melhor o disparate que pretendo atacar se lermos na National Geographic deste mes, o modo como o autor do artigo português sobre Darwin e os Açores começa. Aquilo é um disparate pegado. Fala em entidades estranhas como "a ciência portuguesa" e em esta ter "pago na mesma moeda" a Darwin. (o que literalmente significa: orgulho no atraso).

joão viegas disse...

Caro Vitor Guerreiro,

Acho que o artigo pode ser lido numa optica completamente diferente da sua e que o problema colocado não é tanto, ou pelo menos não é principalmente, o do desaparecimento das culturas tradicionais ou das linguas tradicionais...

Estarmos a partir do principio que quem quer fazer investigação cientifica, hoje em dia, tem de trabalhar em inglês, significa impormos a todos os não anglofonos o uso de uma lingua diferente da sua lingua "natural". Ou seja implica, tal como durante a idade média, termos uma lingua "cientifica" que tende a ser completamente artificial (esta lingua, alias, revela-se bastante mais pobre do que o inglês de Shakespeare...)

E obvio que devemos encorajar a aprendizagem de linguas estrangeiras como instrumento de abertura ao mundo, e também de abertura ao trabalho de investigação levado a cabo noutros paises.

Mas quando estamos a encorajar cientistas portugueses a redigirem em inglês (mesmo dentro das universidades portuguesas), estamos a fazer muito mais do que isso. Estamos a incentiva-los a desertarem a lingua na qual foram educados, e na qual terão mais tarde que educar os seus alunos... Estamos ao mesmo tempo a trabalhar para que a lingua portuguesa fique mais pobre, desistindo de ser uma lingua de ciência e de cultura.

E estamos a acentuar a tendência para uma ciência que fala uma espécie de esperanto bastante pobre, o que não me parece boa ideia, mesmo se nos restringirmos ao campo das ciências "dura" (de que não sou especialista).

Isto foi o que se passou com o latim escolastico, lingua artificial, que ja não não tinha seiva nenhuma e que, por essa razão, acabou por se afastar completamente do proprio latim classico...

Nos séculos XV e XVI produziram-se dois fenomenos que, em meu entender, estão profundamente inter-ligados : a (re)desoberta do latim classico e o nascimento das grandes linguas nacionais europeias como linguas literarias (e cientificas). Isto devia alertar-nos para o perigo de que fala o texto.

Acho que estamos, infelizmente, a inverter as coisas. Os cientistas portugueses não serão melhores por escreverem em inglês. Em contrapartida, se houver uma interessante comunidade cientifica em Portugal, com trabalhos interessantes, revistas de qualidade, etc. escritos em português, muito facilmente encontraremos quem traduza as suas produções para inglês (e para outras linguas).

Durante o periodo aureo do latim escolastico (universitario), criou-se a ideia de que "um burro carregado de livros era doutor". Não estaremos a cair no mesmo erro ? Deviamos preocupar-nos com o assunto, porque a ciência não é, ou pelos menos não devia ser, "so para inglês ver"...

Desidério Murcho disse...

Xii, tanta tolice por tão pouco. Que se lixe a língua, tuga ou inglesa, desde que 1) esteja burilada para poder exprimir pensamentos complexos (coisa que o tuga não está) e 2) o maior número possível de colegas possam entender-nos. Se escrevermos em tuga, a maior parte do mundo académico relevante não nos entende.

E por que raio é importante defender uma língua, que na verdade foi uma mentira política inventada para gerar fidelidades políticas tolas?

Leia-se o ensaio "A Política e a Língua Inglesa" de Orwell para se ver uma reflexão sobre a língua noutro nível totalmente diferente.

Desidério Murcho disse...

Só mais uma achega. Sempre que se fala deste fascismo linguístico, que me perdoe o João, que muito prezo, as pessoas não reparam que estão a dar voz a fantasias do Quinto Império. Os suecos estão-se nas tintas para a língua deles, e não têm problemas com a língua inglesa, porque reconhecem que é a língua académica internacional. O sueco só interessa aos suecos e acabou. Não têm a veleidade de pensar que o sueco vai conquistar a galáxia, nem têm medo que o sueco acabe. E se acabar, qual é o problema? O latim acabou, e era uma língua culta, ao contrário do português.

Vitor Guerreiro disse...

Tenho uma proposta melhor:

que tal escrever teses com pés e cabeça em inglês, porque isso é melhor para quem faz as teses de mestrado ou doutoramento... e é irrelevante se são em inglês, latim ou noutra língua.

mas...

qeu as mesmas pessoas façam divulgação da sua área em português legível e traduzam textos cruciais que ou não existem em portugues ou só existem em traduções macacas e estapafúrdias?

... mas isto dá trabalho porra! A gritaria política e as loas salvíficas da pátria ao menos entretêm... e dão tachos aos políticos que sabem gritar muito alto... em maus português!

Vitor Guerreiro disse...

dass... em mau português! sorry mates

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