Fernando Pessoa tem sempre algo de novo a dar a cada um de nós. A mim deu-me a "Crónica Decorativa II", incluída no livro que o Pai Natal me deixou "Contos, Fábulas & outras ficções", com organização, prefácio e notas de Zetho Cunha Gonçalves (Bonecos Rebeldes, 2008). O autor do conhecido poema sobre o binómio de Newton e a Vénus de Milo não deveria ser anti-científico, mas aquela crónica é dos textos anti-científicos mais bem escritos que conheço. Tal como a engraçadísima "Crónica Decorativa I" sobre a inexistência do Japão, que saiu em "O Raio" (nº 12, 12/Setembro/1914, lê-la aqui), também a segunda crónica foi escrita em 22/Agosto/1914, para a mesma publicação, mas não chegou a ser publicada por "O Raio" ter sido extinto.
Num misto de humor e absurdo, um narrador conservador e anti-científico conta a catastrófica descoberta feita por um "explorador moderno" de que a "Pérsia realmente existe". Lê-se no texto:
"Eu julgava que a Pérsia era apenas o nome especial que se dava à beleza de certos tapetes".E continua:
"Se bem que os exploradores modernos sejam, como em geral todos os homens de ciência, susceptíveis de erro mais que os outros homens, disse-me há pouco um jornalista que no facto merece crédito. A ser verdade (eu ainda hesito) resta saber que nome se vai dar de hoje em diante aos tapetes persas? E a poesia persa a propósito - que nova denominação vai ter?"Nesta altura o leitor quererá saber a sequência. Ei-la:
"Serve-me este assunto de tema para expor certas opiniões que há muito tempo uso sobre o modo extraordinariamente intenso como, de há tempo para cá, a ciência grassa e o espírito científico nos ataca. Se daqui a pouco o pólo sul vai também desatar a ser real, não sei a que ponto chegaremos. Breve existirá tudo e não longe o dia, talvez, em que basta sonharmos uma rainha medieval para ela nos entrar, contemporânea e anatomizável, pela porta adentro, depois de bater à realidade da campainha e de se fazer anunciar pela presença beiroa da criada.E por aí adiante. Tal como a "Crónica Decorativa I" uma verdadeira delícia!
Afirmou-me um amigo meu, o qual, por culto, me merece um crédito dubitante, que lerem livro de Guyau que um Keats brindara coisas más para a memória de Newton porque ele fizera qualquer cousa como descobrir leis que tinham a ver com os astros. Se ponho certo vago na minha descrição é porque não tenho a mínima ideia do que Newton fez ou descobriu. O facto, agora, é o brinde de Keats. Este brinde contém uma intenção justa. A aplicação é que é péssima. Não fez mal a ninguém descobrir as leis dos astros. Eles sempre foram visíveis. E a sua boa qualidade de serem longínquos, não a tirou a descoberta de Newton, fosse ela qual fosse; e, de mais a mais, essa descoberta, sendo matemática e portanto totalmente com feição de falsa, fez, do mal inevitável, o menos possível".
1 comentário:
Provávelmente não apreciava matemática, ou talvez ainda menos os matemáticos que conhecia. Reminiscências ou recalcamentos de infância ou da escola?
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