O livro recentemente publicado de Antero de Quental (retrato na imagem) "Contracapas" (Tinta da China, 2008), com atribuição, organização e prefácio de Ana Maria Almeida Martins, contém alguns pequenos mas deliciosos inéditos do grande poeta e filósofo português oitocentista. São, na maior parte, recensões não assinadas, elaboradas para a revista "Ocidental" que ele dirigiu com Jaime Batalha Reis.
A seguinte extracto refere-se a um livro filosófico-teológico do Marechal Duque de Saldanha, sim esse mesmo que tem um largo com estátua em Lisboa e que foi, além de militar, várias vezes ministro e quatro vezes primeiro-ministro de Portugal. A apreciação de Antero de Quental pode resumir-se no adágio popular: "Quem te manda a ti sapateiro tocar rabecão?". Mas, sendo um pouco mais longa, vale a pena lê-la não só pelo seu conteúdo como pela qualidade da escrita. Não há dúvida sobre a autoria da nota crítica até porque o livro mostra o fac-simile do manuscrito, com a letra de Antero.
"A Voz da Natureza: ou o poder, sabedoria e bondade de Deus, manifestados na criação, na conexão do mundo inorgânico com o mundo orgânico e na adaptação da natureza externa à estrutura dos vegetais e à constituição moral e física do Homem", pelo Marechal Duque de Saldanha - Londres, W. Knowles, 1874.
Este livro é um estudo sobre dos tópicos principais daquela pretendida ciência, que, no século passado, alguns sábios ingleses, mais piedosos dom que consequentes, intentaram fundar com o nome de Teologia-natural, e que ainda hoje é cultivada, posto que sem fruto apreciável, em vários seminários protestantes. O assunto é ingrato e facilmente descamba em tedioso. Querer explicar a natureza pela Teologia é empenho proximamente tão absurdo como querer explicar a Teologia pela natureza. Qualquer das duas coisas redunda em tautologia e frases vagas e declamatórias - e é, com efeito, a que se reduz a pretendida Teologia-natural dos deístas ingleses. Estes inevitáveis defeitos do género, que a ciência e elevação moral e poéticas dos próprios Newton, Humphry Davy e outros altos espíritos não lograram ocultar nas obras que consagraram a estes assuntos, não é muito tornarem-se ainda evidentes no livro do sr. Duque de Saldanha, militar, político e diplomata, que só em horas perdidas e distraidamente empunha a pena, como homem do mundo e não como filósofo. Mas há assuntos em que não é permitido ser medíocre. Sentimos que o sr. Duque de Saldanha não se tivesse lembrado disto antes de mandar imprimir o seu livro. A competência é essencial em todas as coisas, e é grande ilusão supor que a filosofia deva ser excepção a essa regra. Sem pretendermos dar conselhos, mas emitindo simplesmente o nosso voto, entendemos que a experiência colhida pelo sr. Duque de Saldanha no decurso duma longa vida, passada toda num teatro vasto e animadíssimo, podia ser aproveitada em livros mais interessantes e instrutivos, uma vez que esses livros tratassem dos incidentes dessa vida, que em pontos se confunda com a nossa história, e das cenas representadas nesse teatro, onde por vezes coube ao general e ao político o papel de protagonista. Um simples capítulo de memórias militares e políticas do sr. Duque de Saldanha teria incomparavelmente mais interesse e valor do que todos os volumes possíveis que sua excelência consagre a questões filosóficas. Nestas, é muito natural que aos militares e diplomatas prefiramos simplesmente.... os filósofos".
Revista "Ocidental", 1º ano, tomo 2, 5º fasc., 15/Julho/1875
2 comentários:
Pelos vistos o Marechal Duque de Saldanha não tinha emenda, porque já anteriormente tinha publicado uma monografia “Estado da medicina em 1858: opúsculo dividido em cinco partes” (Imprensa Nacional), o que levou o médico Bernardino António Gomes, em 1859, a criticar, não só o seu conteúdo, mas tecer algumas recriminações ao uso exagerado da “kinesipathia” que “teve por fundador um poeta sueco, Ling”, que se propôs restaurar as raças do norte por meio da ginástica, o que achou louvável, mas:
“ (...) fez-se da gymnastica panacea para todas as doenças, e pouco a pouco as estatísticas mentirosas, as doenças mal determinadas para fazer suppor curas extraordinárias, e outros processos menos dignos, foram fazendo, nas mãos dos successores de Ling, degenerar o seu bello pensamento e a instituição destinada a realisa-lo, pondo-a no caminho do charlatanismo.”
Como prova de que eivada de charlatanismo cita, a páginas 15, a receita do Dr. Newman para tratar a opacidade da córnea (névoa nos olhos): “ Pressão na região supra-orbitaria vinte e três vezes por dia. / Rotação passiva da cabeça sete a oito vezes por dia. / Fricções ao longo do seio longitudinal do craneo e do transverso. / Flexão com resistência do tronco. / Rotação activa dos extremos inferiores. / Percursão nas solas dos pés com cylindros de madeira. / Isto continuado por quatorze semanas.”
Gusmão (1859: VII, 279) secundou as críticas de Gomes, num artigo que redigiu para a revista "O Instituto", com o título “O Marechal duque de Saldanha e os medicos. Breves considerações ácêrca da memoria sobre o estado da medicina em 1858 por Bernardino António Gomes”.
Caro João Boaventura
Muito interessante o que nos conta. Mas os recortes que nos enviou são difíceis de ler. Aguardemos pela publicação na íntegra do "Instituto de Coimbra" em forma digital na Web para tornar mais conhecidas essas e outras pequenas histórias da nossa história. Cordialmente
Carlos Fiolhais
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