quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Alegrias e alegorias


Agradeço aos leitores os comentários à minha críptica crónica desta semana do Público. Precisamente por ser uma crónica críptica, vale a pena fazer alguns esclarecimentos e dar alguma informação de fundo.

A Alegoria da Caverna é daqueles conteúdos que são usados mais ou menos inconscientemente no ensino para oprimir socialmente. Não se trata de estudar as ideias de Platão cuidadosamente, ver o que é mais ou menos plausível, nem se trata sequer de compreender a sua teoria do conhecimento, a sua metafísica ou a sua filosofia política: trata-se apenas de usar a Alegoria da Caverna para chamar bestas aos escravos todos que estão acorrentados no fundo da caverna. Mas quem são esses escravos? Pessoas como os taxistas, etc., que refiro no texto. Agora pense-se: que efeito terá isto num estudante? Aprende ele alguma filosofia, fica com mais instrumentos críticos, ganha independência mental e cultural? Não. Ou rejeita toda esta conversa por ser mais uma idiotice escolar — é o que faz a maior parte — ou limitam-se a repetir a cantiga porque têm a sensação vaga de que eles, mas não os outros, não são os escravos da Caverna. Ou seja, porque já desconfiam que pertencem aos eleitos que vão oprimir os outros chamando-lhes analfabetos.

Isto é o cerne da crónica: a prostituição da cultura, neste caso filosófica, para oprimir socialmente.

E de passagem, no início, refiro a estranha doença nacional de considerar que a filosofia é um desporto que só faz quem está morto, e é grego ou alemão, ou diz coisas crípticas. Considero que esta é uma doença aristocrática, pois para o aristocrata a filosofia, como o resto da cultura, serve apenas para duas coisas: amenizar o tédio do fim-de-semana e propiciar novos instrumentos de opressão social, servindo para demarcar cuidadosamente o território dos eleitos.

Finalmente, a crónica é propositadamente críptica e chocante na sua linguagem, exibindo assim na sua própria construção o tipo de criptomania que só é apreciada num contexto de opressão social em que o leitor sente que poder parafrasear umas partes dá prestígio social. Mas como a crónica não se insere nesse contexto, não suscita o interesse hermenêutico que suscitaria se o estivesse. Citar Nietzsche ou Sade serve para oprimir socialmente; e por isso o facto de alguns textos desdes autores serem crípticos ou de mau gosto não é depreciado, ao passo que essas mesmas propriedades são depreciadas num texto que não sirva para oprimir socialmente.

19 comentários:

Vitor Guerreiro disse...

Eh pa, estava aqui a olhar para o texto e pensei no seguinte: até percebo o que queres dizer e vejo o fundo de verdade aflorado pelo insulto. Acontece que fui treinado nesta tradição macaca (por acaso até fui) e até me "identifico" com ela. Como professor ou ginasta cultural, passo a vida a citar Deleuze e a fazer boquinhas no café. Então, como quero muito rebater as tuas afirmações mas também sinto que não consigo apresentar um argumento de jeito, porque a universidade me formou para ser filosoficamente incompetente mas um proficiente enrabador de passarinhos e ginasta cultural com um grande falo no lugar da língua... bem... Vou ficar cheio de raiva, raiva bem verdinha, de menino, e vou pespegar-te aqui umas agressões pessoais básicas, às quais chamarei "argumentos" (sou aforístico, como o Nietzsche, o Mestre Eckhardt e o Mestre deRose, entendes? Topas ó analítico dum raio? Seu redutor policiante!)

Se alguém mais te agride nada direi, mas se alguém concordar contigo vou fustigá-lo, como ginasta cultural que sou, com o meu enorme falo linguístico, tão grande como o meu ego. Afinal, que outra razão poderá ter alguém para manifestar concordância contigo senão subserviência servil? Eu sou independente pá! Eu com os meus aforismos e os meus espasmos verbais...

Repara: se tu ao menos escrevesses SEM argumentos, "assim, tipo..." aforismos, tás a ver méne? Uns aforismos, carago. Assim eu já podia espetar os meus aforismos e... aforismo por aforismo, todos temos razão e ninguém tem e ninguém se chateia...

Esta é a chave da "paz entre as religiões": o relativismo aforístico do não-me-fodas-o-território-que-eu-não-te-fodo-a-ti.

Mas isto não funciona com filosofia. Mas o que tem a filosofia a ver com isto? Simples:
Lembram-se do tempo em que todos os movimentos políticos que saíram da I Internacional queriam ser todos "científicos"? A razão é a mesma pela qual na idade média outros movimentos semelhantes queriam ter uma base teológica. Não é pela ciência nem pela teologia, é pelo prestígio que cada uma traz.

A filosofia é assim, para o aristocrata, de facto, como o MIJO para os cães.

E a demonstração mais cabal desta treta é ver o modo como alguns comentadores se apressam a mijar vingativamente sobre os textos.

E quem não salta é umbigo-diarrento laxativo-derrida...

Victor Gonçalves disse...

Auto-de-fé, auto-de-fé, já, já, já... Ou é demasiado cripto?

Deixe-ma tentar outra vez. Os únicos livros que devem ser usados em filosofia são as traduções de Desidério e amigos, boa e bela e verdadeira e democrática e sincera e compreensível e bem escrita proto-filosofia.

Quanto à República, Platão deve ser queimado, já!!!!!!!!!!!!

Vitor Guerreiro disse...

aforismo aforismo aforismo, do meu falo inchado, protuberante de ego...

dionisíaco o meu eu, dionisíaco o meu eu... lingua o falo no ego e ego o falo na língua... pinga, pimba... pronto!

coitadinhos dos calos do ego

auto de fé o falo que indigência ouvidos emprenha e paciência não há quem a tenha para estes que falam de galo do alto do falo que fala e fala e fala e fala e não pensa, falo! Um segundo, calo!

alminhas singelas de todos os países, despsicofodei-vos

Vitor Guerreiro disse...

O que é surpreendente é a incompreensão de que aquilo que se está a atacar não é a filosofia platónica nem a leitura de Platão nem sequer a alegoria da caverna, mas aquela banhada que todos levamos em meninos, singelos e inocentes meninos que entram estupefactos na faculdade, com todo aquele mundo novo de termos gregos em pedante vocalizo, acabando dois semestres sem uma única vez discutir realmente a filosofia platónica, mas percebendo só algo de perfeitamente desinteressante: é possível usar aqueles textos para depreciar as pessoas que não são como nós. É possível usar a cultura para demarcar diferenças, para gerar separações arbitrárias, em vez de TRABALHAR pacientemente para comunicar claramente IDEIAS e ARGUMENTOS a qualquer pessoa que se interesse por elas, mesmo que não domine palavreados maricas, "soi disants" e "tout courts" para apimentar vacuidades e pretensas superioridades mal soletradas.

Agora perca-se lá mais tempo a criticar o comentário, seguramente "fascizante", talvez "neoliberal", de escrever TRABALHO em maiusculas, que até vem do latim "trepalium" e até alguém inscreveu nos campos de concentração.

Pois embora profundamente oposto aos fascismos que por aí medram, lamento dizer que apenas tendo em conta a afirmação, não posso deixar de concordar, porque é verdade: o trabalho liberta-nos... da psicofoda que é saber no íntimo que não sabemos sequer descrever com clareza o que pensamos, que no íntimo até desconfiamos daqueles autores todos, muito rebeldes, que nos venderam pelo caminho - também eu andei anos a autopsicofoder a cabeça - mas não temos CORAGEM para nos deixarmos de irritações infantis e inspeccionar com honestidade a nossa vida mental e os nossos argumentos e atrevermo-nos a por em causa os nossos mestres. Questionar a sério, e não por em causa à "deleuziano", com espasmos verbais e "ontologias radicais"... já naveguei por essas águas e, perdoem-me o vulgarismo, foda-se!! como é libertador deixar de estar emocionalmente preso, ancorado, a ideias, a pensamentos-lastro que às tantas já nem sabemos por que defendemos. BOLAS, que sabe bem poder agitar a poeira de cima do casaco e a areia de frente dos olhos. Estar-se nas TINTAS para aquilo em que se acredita e focar-se somente no processo de justificação. Discutir ideias, pegar nas ideias, nas próprias ideias. Raios Partam, que foi preciso abandonar a faculdade para sentir a alegria da filosofia. Custou caraças.

Rolando Almeida disse...

Caro Dioniso,
Mas conhece mais alguém que em Portugal esteja a fazer o trabalho que o Desidério está a fazer pela filosofia e ao ritmo que o faz? Se conhecer por favor deixe indicação pois eu desconheço.
Obrigado

João disse...

Bom dia Vítor e Desidério e Rolando.


Curioso todo este alarido.

Mais curioso ainda o facto dos senhores que defendem a argumentação como elemento central na definição do que é filosofar, não apresentarem qualquer argumento contra aqueles que criticam.


O Sr. Desidério afirma algures no blogue da Crítica que nunca leu uma linha de um tal de Benjamin.

Nada melhor do que uma contradição preformativa para garantir a validade do argumento.


Abraços,


João

Mr. Lekker disse...

"A minha sugestão é esta: sempre que nos deparamos com ideias que nos ofendem, o melhor é pensar outra vez, antes de tentar desviar o assunto. Perguntemo-nos se realmente conseguimos refutar cabalmente aquelas ideias que nos irritam, ou se é precisamente porque não sabemos fazer tal coisa que ficámos irritados." (Desidério Murcho)

A quem servir o carapuço...

Rolando Almeida disse...

Desculpe João, não percebi a razão pela qual se meteu comigo nos comentários a este post? De resto quando coloquei uma questão não foi minha intenção apresentar qualquer argumento mas colocar uma questão. E por favor não me trate como membro de uma seita já que não me conhece de lado algum e eu também tenho os meus dias.

Unknown disse...

A crónica do Desidério é certeira e não é difícil reconhecer os seus alvos (nos quais até se poderia incluir um daqueles poetas-deputados alegres), mas ainda mais interessante é a possibilidade de adaptar esta crónica a um outro discurso não menos opaco: o discurso económico, muitas vezes afinado com o "neo-liberalismo" já aqui referido.
Continua a encaixar que nem uma luva, e tem a vantagem de ser um instrumento ainda mais forte de opressão social. Deixava isto para reflexão...

Matheus Silva disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Matheus Silva disse...

Ok.

Dioniso, a sua resposta ao texto é uma falácia ad hominem. O Desidério em nenhum momento defende que não devemos ler Platão, o que ele defende é que não devemos usar a alegoria da caverna (ou qualquer outro texto filosófico) para oprimir socialmente. Sua afirmação de que o Desidério insinua que só devemos usar as suas traduções também carece de fundamento. basta olhar aqui no próprio blog para conhecer a quantidade de novos livros traduzidos que vem sendo divulgados. E mesmo que isso fosse verdade, que diferença faz para os argumentos do Desidério? Nenhuma. Se o Desidério conseguiu demonstrar isso com argumentos ou não é uma outra história.



João, mesmo que o Desidério nunca tenha lido uma linha de Benjamin, Derrida, Habermas ou qualquer outro desses filósofos que comumente identificamos como continentais, isso é completamnte irrelevante para a discussão deste post. Geralmente nunca lemos esses filósofos por bom senso: esses filósofos são terrivelmente obscuros e fazem filosofia com pouquíssimo rigor. Mesmo que eles possam acertar, vez ou outra, em algum pequeno ponto de suas teorias, ainda assim não vale a pena lê-los: em primeiro lugar vai dar muito trabalho pra averiguar isso e, em segundo lugar, o texto é na maioria das vezes tão vago que é impossível averiguar. Essa é uma conclusão com base em argumentos - basta olhar os inúmeros textos que o próprio Desidério já escreveu sobre esse assunto.


Desidério,
é mesmo interessante como alguns professores utilizam esses trechos de clássicos para oprimir as pessoas. Outro trecho da República que é até mais utilizado é a distinção entre os três tipos de alma: de ferro, bronze e ouro. Aqueles que possuem a alma de ouro, naturalmente, serão os filósofos. obviamente que um taxista deve ter alma de ferro. Esse tipo de analogia é muito comum. Outra tática comum é o apelo para a profundidade e estilo desses filósofos como algo inalcançável. Na minha primeira aula de graduação um pofessor me disse o seguinte: nenhum de vocês jamais irá alcançar a elegância e a profundidade de Platão. Esses recursos são muito comuns. Veja como Descartes escreve maravilhosamente" etc
Além disso, tem tb as línguas estrangeiras, que ganham disparado em primeiro lugar na prostituição que se faz da filosofia. Os alunos aprendem com os professores a citar inúmeras palavras em grego, francês ou alemão como se isto fosse o máximo e uma distinção importantíssima. um colega meu que ainda está na graduação me contou a seguinte história: na sua primeira aula de graduação recebeu referências bibliográficas de mais de 10 páginas! : ) E apenas 20 % da bibliografia estava em português, o restante estava em alemão, francês e inglês. Ao que tudo indica a professora estava tentando humilhar e fazer terrorismo intelectual com os alunos, ela tb disse o seguinte "Aqueles que não sabem nenhuma língua estrangeira podem largar esse curso". Isso sim é opressão social.

Desidério Murcho disse...

Matheus, este último caso é particularmente significativo. Pois não se trata de desejar que os estudantes dominem uma língua estrangeira para progredirem melhor nos estudos, mas de oprimir socialmente os pobres que não estudaram em colégios de ricos e por isso não estudaram convenientemente uma língua estrangeira. Se houvesse da parte desse professor qualquer interesse genuíno na qualidade da aprendizagem dos seus estudantes, e já que considera que o domínio de uma língua estrangeira é importante, lutaria contra a falta de qualidade do ensino dos pobres, que não lhes dá a preparação adequada, e ajudaria os estudantes a dominar uma língua estrangeira, dispondo do seu tempo para isso, e traduziria livros de qualidade para que os seus alunos os pudessem ler. Se o professor nada disto faz, só podemos concluir que até gosta que os pobres não dominem uma língua estrangeira: assim, o professor pode oprimi-los. Imagine-se o que seria o professor chegar à aula e todos os alunos saberem ler alemão, francês e inglês com a maior das tranquilidades! Lá se ia a encenação que procura sublinhar “eu sou superior, tu és inferior”.

E agora a última das ironias: o trabalho que desenvolvi durante anos é libertador neste mesmo sentido, o de dar aos oprimidos o conhecimento que eles de outro modo não teriam. Contudo, esse trabalho é visto por pessoas mal-intencionadas como sinistro, e não como libertador. Porquê? Provavelmente, porque essas pessoas sentem-se ameaçadas: agora a plebe, os pobres, os descalços, vão poder discutir com eles, e o facto de não dominarem alemão ou inglês ou francês faz menos diferença. E nem a obscuridade dos seus autores favoritos os salva, pois quem tem uma formação intelectual sólida não se deixa impressionar por palavra caras e expressões vadias. E lá se vai um instrumento crucial de opressão social, que é o único uso que estas pessoas dão à filosofia — dado que quem usa a filosofia como instrumento de opressão social não pode estar realmente interessado em filosofia. Apenas usa a filosofia como os ricos de mau gosto usam os relógios Rolex.

Matheus Silva disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Matheus Silva disse...

Claro Desidério

o interessante é que essa é uma incompreensão ou uma traição da verdadeira prática filosófica: as línguas estrangeiras são apenas um meio para compreendermos uma bibliografia que não encontramos em português, elas não são um fim em si mesmas. O engraçado é que eu tenho visto cada vez com mais frequência alunos que dominam mais de uma língua serem considerados pessoas de inegável talento ou futuro na filosofia. Ora, uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra. Em muitos dos casos é precisamente o contrário: já vi alunos que dominavam duas ou três línguas na graduação e não sabiam explicar o que é um argumento. É mais um engodo pseudo-filosófico pensar que um trabalho filosófico sério envolve necessariamente o domínio de várias línguas.

Rolando Almeida disse...

Caros,
Uma das situações mais espantosas com que me deparei quando entrei, com 18 anos, numa licenciatura de filosofia na universidade portuguesa, foi a facilidade com que os professores citavam em grego e alemão e atiravam para os alunos bibliografias de 20 páginas com livros maioritariamente em francês e alemão. Ora, aquando do 2º ano, já uma boa parte dos alunos também citavam em grego e alemão, mas a maior parte desses alunos faziam as disciplinas com base em apontamentos uns dos outros. A pergunta que faço é a que lado nos conduz este tipo de comportamento? Ah e supostamente os mais sofisticados da inteligência rapidamente se metiam a fazer seminários e cursinhos em áreas altamente específicas, como a ontologia do meu dedo grande do pé esquerdo em Husserll e, em regra, ostentavam livros com títulos em francês ou alemão. Os outros, os que compravam as edições brasileiras ou aprendiam ciência pelo Carl Sagan eram os parvónios. Bom bom era ler Derrida, tirar boas notas e rebaixar e ofender quem não lê Derrida, mas nunca, nunca, explicar de modo plausível e discutir Derrida. Aliás é exactamente isso que continua a acontecer com muitos leitores e que aqui comentam: Derrida é que é bom. mas eu continuo sem saber por que razão é que é bom. Entretanto vou lendo Russell, mas a minha aprendizagem parece constituir uma ofensa para esses sujeitos. Talvez seja essa a razão pela qual reagiram algumas vozes em relação ao texto do Desidério, pois fazer da filosofia uma arma de arremesso é prova cabal de imaturidade intelectual. A mim não me faz qualquer diferença em saber que se estuda muito Derrida. Eu não estudo, em grande parte pelas razões que o Matheus muito bem soube apontar. mas estou sempre na esperança que os estudiosos de Derrida possam escrever textos simples que me economizem tempo para entender um pouquinho mais do filósofo francês. acontece que por regra não o fazem, mas incomodam-se como o raio que outros o façam em relação a outros filósofos e incomodam-se sobretudo que algum filósofo possa defender a falência de determinadas correntes filosóficas.
abraços

Vitor Guerreiro disse...

Eu estou cada vez mais convencido de que a irritabilidade cresce na razão directa de as pessoas, no fundo, até perceberem que foram psicofodidas de lés a lés, pelo pedantismo universitário, pelos professores que dizem banalidades em alemão para não se perceber que são banalidades e para não ter de as defender. E é por perceberem que se trata de uma psicofoda que ficam terrivelmente ofendidas. O problema disto é porquê. Acho que é simplesmente falta de coragem, vergonha, de assumir as próprias fraquezas. Pá, raios, sei que tenho imensas lacunas filosóficas e outras, falta-me ler imensa coisa, sobretudo discutir essas coisas com destreza, erro muuito, digo disparates... mas qual é a merda do problema?! Temos de andar a fingir que não cagamos como os outros de manhã? Que somos feitos de matéria diferente? Eu sei como são estes tiques por dentro porque já estive na dentro da psicofoda e sei bem que tudo parece diferente quando se lá está. Estamos em guerra com o mundo das alminhas ignorantes "lá fora". Agarrados ao nosso rochedo virtuoso, contra as "filosofias do estado" e contra uma data de palermices que não lembra ao menino jasus. Mas eu até compreendo a motivação de algumas destas coisas e que nem tudo será mal-intencionado. O problema é que nada disso serve para outra coisa senão para perder tempo e humilhar os outros ou demarcar territórios, como diz o Desiderio. E as pessoas não querem perceber isto porque não querem encarar o facto de terem andado uma licenciatura a... brincar com bolinhas de sabão. Como eu também andei e não tenho problema em admitir.

Merda pá, alguém consegue fechar os olhos, em boa consciência, quando chumbou 2 vezes seguidas a uma cadeira por tentar escrever algo com começo meio e fim, e finalmente passa com um 16 por ter feito um exercício de escrita automática, misturado com coisas que já sabíamos que ia dar tesão ao professor, que gosta de "ontologias rebeldes" e "devir-nabos"?

Basta, caraças! Ninguém está a dizer para banir autores ou textos ou "tradições". Está-se a denunciar o disparate que é o "identificar-se" numa tradição, sendo que "tradição" é apenas um escudo, um manto de névoa para que os outros não percebam a nossa tremenda e embaraçosa ignorância de coisas fundamentais, elementares.

susskind disse...

Aqui vai a "boca 'a taxista" de um tipo de ciencia que nunca teve qualquer contacto pessoal com o meio da filosofia. Voces proprios ja' apontaram a solucao: o estudo da filosofia serve para aprender a filosofar. Em geral, aprende-se fazendo; logo aprende-se a filosofar filosofando. Uma consequencia disto podera' ser: leia-se, estude-se e discuta-se os conceitos filosoficos de autor a) ou b) na medida em que sejam pertinentes para as questoes filosoficas que se querem tratar. Andar a estudar as ideias de um filosofo por atacado talvez nao seja a melhor ideia. A questao de base nao sera' simplesmente que nao faz sentido andar a filosofar senao for para tentar resolver problemas concretos? Por concretos quero dizer: enunciados de forma explicita e com o detalhe necessario (podem ser extremamente abstractos e nao ter qualquer aplicacao pratica directa - afinal de contas, e' de filosofia que se fala). E, ao mesmo tempo, nao estar 'a espera de ter todo o background necessario para comecar a tentar pensar problemas filosoficos. Ninguem em ciencia esta' 'a espera de saber tudo para comecar um proojecto de investigacao. Tem de haver boa vontade e entreajuda para que as minhas lacunas possam ser preenchidas pelos meus colaboradores e vice-versa.

Desidério Murcho disse...

Acabaste de descrever, Miguel, o que realmente se faz quando as universidades são de qualidade. Isso é o que eu sempre fiz, mas para o fazer tive de o fazer contra a minha própria instituição em Portugal. Quando entrei no mestrado os colegas perguntavam-me: "vais fazer a tese em quem?" Nem lhes ocorria que se eu fizesse uma tese sobre alguém, não seria uma tese de filosofia, mas de história da filosofia. Tenho muito interesse na história da filosofia, mas exactamente como um pintor ou um cientista pode ter interesse na história da sua área: é um interesse lateral. O que me interessa realmente é fazer filosofia, e não a história do que se fez.

Agora a questão importante é esta: claro, cada qual faz o que lhe apetecer. Se alguém quer passar vinte anos a decifrar pergaminhos gregos, tudo bem. Isso até pode ser bem feito. Mas não é filosofia. Ora, o problema é só este: quando se impede os alunos que querem realmente fazer filosofia de fazer realmente filosofia, em vez de fazerem apenas a sua história. Este é que é o problema. Portanto quando as pessoas vêm protestar porque eu quero queimar obras ou excluir autores, estão em puro delírio. Tudo o que eu quero é que os alunos que querem fazer filosofia o possam fazer, ao invés de serem desencorajados desde logo.

Se pensares no que acontecia com a ciência, as coisas não eram muito diferentes há uns 30 anos. Nessa altura, não havia realmente cientistas portugueses; havia apenas professores de ciência. Dizer-se cientista era visto logo como arrogante. Isso mudou, felizmente, e hoje qualquer jovem que queira ser cientista pode ser cientista, apesar de haver ainda muito para fazer no sentido de melhorar as coisas. Mas em filosofia, ainda estamos como há 30 anos nas ciências. E eu quero mudar isso, não porque queira queimar livros ou proibir as pessoas de andar 20 anos a fazer exegese de texto, mas porque penso que quem não quer fazer isso mas sim filosofia tem o direito de o fazer e a sociedade tem o dever de criar estruturas escolares que o permitam. É isso que está em causa. Nada mais. No mais, eu seria o primeiro a protestar se quem quer fazer hermenêutica do texto filosófico tivesse tantas dificuldades quanto têm os alunos que querem fazer filosofia.

susskind disse...

"Tudo o que eu quero é que os alunos que querem fazer filosofia o possam fazer, ao invés de serem desencorajados desde logo. "

Totalmente de acordo. E muito mais importante do que definir qual e' a "escola de pensamento" correcta e' que existam grupos de pessoas a fazer filosofia. E' uma questao de menor importancia saber em que compartimento cabem; se for dada 'as pessoas a possibilidade de desenvolver seriamente os seus interesses filosoficos em colaboracao uns com os outros nas universidades portuguesas e abertas aquilo que se passa na Europa, nos EUA, etc. vao ser elas proprias a encontrar um estilo proprio. O caminho faz-se caminhando.

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