Li uns posts há uns dias no blog do Ludwig sobre certezas absolutas e talvez valha a pena esclarecer algumas coisas. O conceito de certeza diz respeito apenas ao grau de convicção que um agente tem perante uma crença ou proposição qualquer. Na melhor das hipóteses, a certeza que damos a uma dada crença ou proposição estará correlacionada com a verdade se, e só se, o agente for epistemicamente virtuoso. Mas mesmo assim, será apenas uma correlação.
Trocando por miúdos: por mais que um agente tenha a certeza em algo, isso na melhor das hipóteses é provavelmente verdade, se ele estudou as coisas cuidadosamente e de modo não tendencioso. Ditto para a certeza absoluta: o “absoluto” nesta expressão marca apenas a casmurrice do agente, nada mais. A certeza, absoluta ou não, nada diz de definido sobre a verdade do que o agente acredita porque infelizmente os agentes podem acreditar nas mais estafadas tolices, e têm até tendência para acreditar nelas com tanta mais força quanto mais tolas são.
O que as pessoas intuitivamente querem dizer quando pergunta se há certezas de algo é o seguinte: haverá algumas crenças tão cuidadosamente fundamentadas que a mais casmurra das dúvidas seja incapaz de pôr em causa?
E a resposta talvez surpreendente a esta pergunta é que não há tal coisa. É possível duvidar seja do que for porque é possível duvidar até da coerência, da lógica, da matemática, dos dados dos sentidos e da minha própria existência de há cinco minutos (a memória que me diz que eu realmente já existia nessa altura pode ser ilusória). Uma posição mais elaborada sobre este tema encontra-se no livro de Russell, Os Problemas da Filosofia, e na minha introdução, que publiquei há pouco em Portugal.
Trocando por miúdos: por mais que um agente tenha a certeza em algo, isso na melhor das hipóteses é provavelmente verdade, se ele estudou as coisas cuidadosamente e de modo não tendencioso. Ditto para a certeza absoluta: o “absoluto” nesta expressão marca apenas a casmurrice do agente, nada mais. A certeza, absoluta ou não, nada diz de definido sobre a verdade do que o agente acredita porque infelizmente os agentes podem acreditar nas mais estafadas tolices, e têm até tendência para acreditar nelas com tanta mais força quanto mais tolas são.
O que as pessoas intuitivamente querem dizer quando pergunta se há certezas de algo é o seguinte: haverá algumas crenças tão cuidadosamente fundamentadas que a mais casmurra das dúvidas seja incapaz de pôr em causa?
E a resposta talvez surpreendente a esta pergunta é que não há tal coisa. É possível duvidar seja do que for porque é possível duvidar até da coerência, da lógica, da matemática, dos dados dos sentidos e da minha própria existência de há cinco minutos (a memória que me diz que eu realmente já existia nessa altura pode ser ilusória). Uma posição mais elaborada sobre este tema encontra-se no livro de Russell, Os Problemas da Filosofia, e na minha introdução, que publiquei há pouco em Portugal.
19 comentários:
Desidério, você disse que não há crenças impossíveis de pôr em causa. Mas essa afirmação valerá também para todas as crenças proferidas com enunciados negativos? Por exemplo: se afirmo "Eu não sou a sombra de uma bateria de relógio", parece-me que posso ter certeza da minha afirmação. Você poderia dizer que estou pressupondo que sou assim ou assado, ou que estou usando um princípio de coerência ou da lógica. Contudo, não me parece que um enunciado como o que proferi dependa de qualquer consideração positiva sobre o que sou, e somente pressuponho a coerência e a validade da lógica no nível necessário para manter a comunicação. Eu gostaria muito que você esclarecesse este caso.
Cordialmente,
Gustavo
Acho que o que o Desidério disse é que não há fuga possível à dúvida quando quem dúvida está empenhado nisso (basta lembrar o célebre cavaleiro negro dos Monty Python).
Acontece que para que eu me empenhe na dúvida a respeito de um enunciado negativo do tipo "Eu não sou a sombra de uma bateria de relógio" é necessário que eu me empenhe para admitir a possibilidade de que eu seja a sombra de uma bateria de relógio.
Minha afirmação de que não se pode duvidar de uma proposição negativa como aquela deve-se ao fato de que é absurdo duvidar. Realmente, ainda aqui estou utilizando a lógica e o princípio da coerência, pois estou partindo da noção de que uma sombra de bateria não pode criar enunciado algum e que, portanto, não posso ser uma sombra de bateria.
Novamente, o problema é que não me parece que, da impossibilidade de ter certeza positiva sobre qualquer coisa, siga-se a impossibilidade de ter certeza negativa sobre qualquer coisa. É isso que eu queria ver esclarecido.
Gustavo
Se bem compreendo o Desidério quando diz :
“o conceito de certeza diz respeito apenas ao grau de convicção que um agente tem perante uma crença ou proposição qualquer. Na melhor das hipóteses, a certeza que damos a uma dada crença ou proposição estará correlacionada com a verdade se, e só se, o agente for epistemicamente virtuoso. Mas mesmo assim, será apenas uma correlação.”
Então posso concluir o seguinte:
Aquela frase em russo foi-me dada por um agente epistemicamente virtuoso como sendo uma proposição verdadeira. Assim, como acredito que o agente russo é de confiança, também acredito que aquela frase em russo é verdadeira. O mesmo é dizer que tenho a certeza que é verdadeira mesmo sem saber o que ela significa. Esta é uma certeza ‘deferida’ na medida em que deleguei no agente virtuoso a decisão da verdade.
Mas a minha dúvida é a seguinte: será que a certeza deste exemplo, uma frase que acredito ser verdadeira mesmo sem lhe conhecer o significado, é idêntica à certeza que os físicos têm em certas proposições básicas da física só porque confiam uns nos outros? Aqui eles podem não compreender tudo mas pelo menos tentam conhecer o significado das proposições físicas. A minha certeza na verdade daquela frase em russo, em bom rigor, para mim, nada me diz de concreto acerca da verdade que contém.
Já agora outra dúvida: conhecimento deferido e derivado não serão a mesma coisa? Estes conhecimentos são igualmente derivados ou deferidos – o conhecimento que depositei no meu agente virtuoso, e aquele que depositamos nos historiadores quando sabemos que houve primeira guerra mundial pela consulta dos livros de história – ou não?
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A questão do Gustavo remete para o exemplo dos crentes no Comunismo ou dos crentes em Deus.
Uma coisa é não crer na ideologia comunista, outra coisa é ‘crer na crença’ na ideologia comunista. Muitas pessoas já não acreditam na ideologia comunista mas, mesmo assim, pensam que acreditar no comunismo é uma coisa boa. Um crente no comunismo pode já não acreditar no comunismo mas acreditar que vale a pena lutar pelo conceito de comunismo. Não acreditam no comunismo no sentido forte do termo, mas apenas como objecto intencional. É o mesmo truque que se passa com os teístas confessos que já não acreditam em Deus como a existência de alguma espécie de entidade mas, ainda assim, lutam por uma ética teísta. Assim, com esse truque os ateístas podem ver-se atrapalhados, porque, sendo o ateísmo pouco mais do que a negação do teísmo, deixa de fazer sentido a argumentação da inexistência de Deus por parte dos ateístas, na medida em que certos teístas já não estão nessa. O mesmo se passa com o debate entre anti-comunistas e certos comunistas.
Muitos comunistas assumidos exteriormente acreditam interiormente que o comunismo como ideia faliu, mas lamentam essa sua crença por acharem que é um sacrilégio. Como se sentem embaraçados continuam a fazer de conta que acreditam que o comunismo não faliu, contentando-se em confiar apenas derivadamente na verdade de certos líderes. A crença no comunismo para a maior parte dos militantes do PCP é uma espécie de ‘summum bonum’. É isto que nos faz compreender por que é que o PCP ainda tem a força política que tem, e mostrou o XVIII Congresso que termina hoje em apoteose.
Então como acreditam no comunismo da mesma maneira como eu acredito no agente epistemicamente virtuoso acerca da verdade daquela proposição em língua russa, também acreditam que quem não acredita no comunismo está enganado.
Caro Gustavo: “não me parece que, da impossibilidade de ter certeza positiva sobre qualquer coisa, siga-se a impossibilidade de ter certeza negativa sobre qualquer coisa.” Isto pressupõe que há uma diferença real entre “certeza positiva” e “certeza negativa”. Mas isto pode ser posto em causa: ter a certeza positiva de que sou feliz implica ter a certeza negativa de que não sou infeliz; ter a certeza negativa de que não sou uma mulher implica ter a certeza positiva de que sou um homem.
Em qualquer caso, o que me parece desinteressante é o próprio conceito de certeza, que marca meramente a casmurrice do agente cognitivo — a menos que estejamos a coordenar a certeza dele com a justificação de que ele dispõe para a crença em causa, mas então o que realmente conta é a justificação, e não a certeza.
Mas imagine agora que usa o termo “certeza” querendo dizer “crença muitíssimo bem justificada”. O que eu afirmei é que todas as crenças, por mais bem justificadas que estejam, podem ser postas em causa pelo céptico. A sua questão é: segue-se daqui que ele pode também pôr em causa certezas negativas? Sim. O céptico pode pôr em causa que ele mesmo não seja uma sombra de um piolho. É apenas menos plausível fazer isso, mas o céptico ultrapassou há muito a razoabilidade e o plausível, e habita na mera fantasia.
Talvez o que aconteceu com o filósofo Pirro seja um bom exemplo para demonstrar a fragilidade da certeza, de que aqui se fala. A certeza é frágil porque não há (a menos que se seja crente) alicerces fixos que a determinem, tal como não há o que determine a Existência.
Bem, mas podemos constatar que há certezas sobre factos que observamos ou sabemos.
A Terra gira à volta do Sol. É uma verdade ou o que é que lhe podemos chamar?
José Matos
Matos, as nossas crenças são verdadeiras ou falsas em função de mundo ser de uma maneira ou de outra -- nada tem a ver com o grau de convicção com que aceitamos tais crenças. Por mais convicto que você esteja de que a Terra gira à volta do Sol, não é a sua convicção que torna a sua crença verdadeira, mas sim a Terra girar ou não à volta do Sol.
Desidério fala, os criacionistas respondem:
"Li uns posts há uns dias no blog do Ludwig sobre certezas absolutas e talvez valha a pena esclarecer algumas coisas."
Realmente convém esclarecer o Ludwig.
O mesmo que diz que todo o conhecimento válido é científico, embora não corrobore essa afirmação com qualquer experiência científica; o mesmo que diz que no DNA não existe nenhum código apesar de os cientístas reconhecerem que existe múltiplos códigos paralelos.
"O conceito de certeza diz respeito apenas ao grau de convicção que um agente tem perante uma crença ou proposição qualquer."
Parece ter a certeza disso... qual é o grau de convicção que tem da certeza do que está a dizer?
"Na melhor das hipóteses, a certeza que damos a uma dada crença ou proposição estará correlacionada com a verdade se, e só se, o agente for epistemicamente virtuoso."
Deus será, certamente, epistemicamente virtuoso. Deus é o único que tem toda a informação.
"Mas mesmo assim, será apenas uma correlação."
Humanamente, sim.
"Trocando por miúdos: por mais que um agente tenha a certeza em algo, isso na melhor das hipóteses é provavelmente verdade, se ele estudou as coisas cuidadosamente e de modo não tendencioso."
O que mostra que temos razão para desconfiar o Darwinismo, já que os seus maiores expositores eram assumidamente naturalistas, rejeitando a crença em Deus a priori.
"Ditto para a certeza absoluta: o “absoluto” nesta expressão marca apenas a casmurrice do agente, nada mais."
Neste caso, estamos a falar da casmurrice do Desidério, a menos que ele não tenha a certeza absoluta da verdade do que está a afirmar.
"A certeza, absoluta ou não, nada diz de definido sobre a verdade do que o agente acredita porque infelizmente os agentes podem acreditar nas mais estafadas tolices"
É o caso do Desidério. O facto de não acreditar na Palavra de Deus, validada pela sua consistência interna, pela sua congruência com os factos e pela ressurreição física de Jesus Cristo, torna-o vulnerável às mais estafadas tolices.
"...e têm até tendência para acreditar nelas com tanta mais força quanto mais tolas são."
Realmente, só um tolo é que pode acreditar que o DNA não codifica nada, quando toda a evidência observável vai no sentido contrário.
"O que as pessoas intuitivamente querem dizer quando pergunta se há certezas de algo é o seguinte: haverá algumas crenças tão cuidadosamente fundamentadas que a mais casmurra das dúvidas seja incapaz de pôr em causa?"
Claro que há. A verdade do Cristianismo pode ser cuidadosamente fundamentada. Assim queiram as pessoas dar ouvidos a essa fundamentação. O problema não é falta de fundamentação. O problema é, essencialmente, espiritual.
"E a resposta talvez surpreendente a esta pergunta é que não há tal coisa."
Agora temos o Desidério a funcionar em modo omnisciente...
"É possível duvidar seja do que for porque é possível duvidar até da coerência, da lógica, da matemática, dos dados dos sentidos e da minha própria existência de há cinco minutos (a memória que me diz que eu realmente já existia nessa altura pode ser ilusória)."
Que lindo...
"Uma posição mais elaborada sobre este tema encontra-se no livro de Russell, Os Problemas da Filosofia, e na minha introdução, que publiquei há pouco em Portugal."
Não acredito que o Desidério tenha muita coisa de verdadeiramente útil a acrescentar, a avaliar pelas falácias que se encontram nos escritos do próprio Bertrand Russell.
Desidério,
«Em qualquer caso, o que me parece desinteressante é o próprio conceito de certeza, que marca meramente a casmurrice do agente cognitivo»
Interpretado nesse sentido, de fezada ou mera teimosia, é pouco interessante.
Mas penso que o interesse vem da conotação que não é só uma mera casmurrice mas uma casmurrice que se justifica. E aí a questão torna-se mais interessante: que casmurrices podemos justificar (e não se reduz apenas à justificação, mas inclui a casmurrice supostamente justificável).
Pelo dicionário:
certeza, s. f.,
qualidade do que é certo;
conhecimento exacto;
coisa certa;
convicção;
firmeza;
os primeiros três têm interesse...
Pois. Mas se falares directamente da justificação, tudo fica mais claro. Enquanto se fala de certeza as pessoas confundem sistematicamente a questão da justificação de crenças com a mera convicção forte, a mera adesão emocional.
Na verdade, é esta confusão que explica em parte a estranha apetência dos crentes primários, como os anónimos criacionistas que vêm a este blog, de “acreditar com muita força”, ter “muita fé”. Esta atitude revela a incompreensão fundamental das coisas: não é a força da convicção que faz o objecto da convicção ser como desejamos que seja, mas só se percebe isso se em vez de falar de certeza se falar de justificação. Se falares de certeza, isso dá a ilusão de se tiveres muita certeza em algo, então isso de que tens certeza será verdade. Daí que os crentes primários sejam incapazes de levar a sério a hipótese de não há deuses: têm medo de perder a sua forte convicção ao considerarem seriamente essa hipótese, de modo distanciado e honesto.
Posso, no entanto, dizer agora: "existo", sendo absurdo dizer: "existo, mas não acredito". Será que posso duvidar da crença subjacente à primeira afirmação? Até a afirmação "está a chover, mas não acredito" é absurda.
E lá voltamos a Descartes (& Moore)
Eu não defendo que nada se sabe. Defendo apenas que se aceitarmos a postura céptica de só aceitar o que podemos demonstrar para lá de toda e qualquer possibilidade de dúvida, perdemos a batalha. Encontraremos migalhas apenas.
O que conta não é saber se x é indubitável, mas antes se é plausível.
Eu sei que tu sabes que eu sei que tu acreditas no valor do saber... :) Apenas estava interessado no argumento em que dizes "É possível duvidar seja do que for (...) (até) da minha própria existência de há cinco minutos (a memória que me diz que eu realmente já existia nessa altura pode ser ilusória)." Se a memória não me falha, esse argumento é utilizado por Kant na Crítica da Razão Pura (julgo que não utiliza o pormenor dos cinco minutos, mas anda lá perto). Mas estava a tentar encontrar, neste contexto, algo que fosse, na verdade, indubitável (mesmo que seja o que menos conta...). Os "cinco minutos" parecem-me excessivos... mas como não faz grande diferença substitui-los por "cinco segundos", tentei elaborar, à maneira cartesiana, uma proposição efectivamente indubitável. E daí a minha hipótese: "seria absurdo alguém dizer 'existo, mas não acredito' ". O que me parece interessante é que o absurdo da afirmação não deriva de qualquer infracção a alguma regra da lógica, mas da contradição entre duas crenças enunciadas na primeira pessoa no presente (como no paradoxo de Moore - embora aqui seja, por exemplo, a diferença entre 'está a chover, mas não acredito" e o "estava a chover, mas não acreditei" (frase perfeitamente razoável) - cf. o prefácio do António Marques aos Últimos Escritos de Filosofia da Psicologia de Wittgenstein na Gulbenkian).
Parece-me que o céptico ganha sempre. Porque até pode duvidar da lógica dos indexicais e da lógica dos operadores de crença. Onde o céptico perde é quando admitimos que logicamente é possível que seja falso tudo o que pensamos que é verdade, mas que isso é irrelevante porque é improvável que seja falso tudo o que pensamos que é verdade.
Ao dia de ontem, estive em duas livrarias (conceituadas). Local distante de minha cidade natal. Após verificar o preço (caríssimo) nestes moldes, brasilianos. Em sendo obra por editada a universidade (paulista) inclusive, per querê-la adquirir, buscar-lhe-ía em outro posto. Eis, para surpresa o título estava esgotado; nem estivera disponível noutra livraria, conceituada para além, casa editora. Certa per donde estive a consultar e na esperança do mais ascesível, producto; embora lamente que nesta outra livraria, naquele dado momento se disponível respondera ao mesmo valor este dito livro, e, nem o compraria. De facto me era caro. Já por título recomendaría-vos; mas, em sendo indelicada performace sugerí-lo ou revestí-lo de critério em espectativa própria ou, quiça do mau gosto a atitude; eis que já anunciei da modesta condição e creio que nem permitiria por conseguinte o autor ao vosso agrado, e, reservo-me.
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