MEU PREFÁCIO À OBRA "UNIVERSO E PENSAMENTO E OUTROS TEXTOS" DE NADIR AFONSO QUE ACABA DE SER EDITADO PELA UNIVERSIDADE DO PORTO:
Conheci pessoalmente o arquitecto, pintor e teórico da arte Nadir Afonso
(1920-2013) em Novembro de 2005, quando se comemoravam os cem anos da Teoria da
Relatividade Restrita de Albert Einstein, no Colóquio na Universidade do Porto
intitulado “Einstein e a Teoria da Relatividade em Portugal: Simultaneidade
e Perspectivas” em que ambos participámos. Mas eu já era, há muito,
admirador da sua singular obra artística e ensaística.
Mais recentemente, ao participar no Encontro de Ciências Maria Paiva em
Chaves, sua terra natal (não muito longe da terra da minha mãe), prestei
homenagem à sua visão integradora entre as chamadas “duas culturas,” ao falar
sobre “Ligar a Arte à Ciência: o projecto de Nadir Afonso.” Na altura, e já não sendo possível a sua
companhia, Laura Afonso, sua mulher, teve a amabilidade de me guiar numa visita
ao Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, que contém uma bela colecção de
obras suas num edifício desenhado pelo seu colega e amigo Álvaro Siza Vieira.
É um privilégio prefaciar uma reedição, no quadro do projecto das suas Obras
Completas, dos livros que o artista
flaviense escreveu em torno de temas científicos. São eles, por ordem
cronológica da primeira edição:
1- Universo e Pensamento (título que abreviarei para UP),
Lisboa: Livros Horizonte, 2000 (houve uma reediçãopassada uma década: Porto:
Edições Afrontamento, 2010).
2- Nadir face a face com Einstein (NffE), Lisboa: Chaves Ferreira
Publicações, Lisboa, 2008 (bela edição bilingue, encadernada e ilustrada com
quadros do autor representando cidades, que o autor me ofereceu com simpática dedicatória).
3- O Tempo não Existe. Manifesto (TnE), Lisboa: Dinalivro, 2010 (também
edição bilingue, com prefácio de João Pedro Fróis).
Os três livros estão encadeados, sendo, a meu ver, UP a obra
essencial. O segundp, contendo mais fórmulas, é uma explicitação e extensão dos
argumentos contra Einstein já antes enunciados. E o terceiro pretende ampliar de
um modo mais expressivo a mensagem, já presente em UP, e que está enfatizada no
título. Há algumas compreensíveis repetições. Por exemplo, o primeiro capítulo
de TnE está no final de UP.
A primeira marca de Nadir Afonso que desejo sublinhar– e que está bem
patente nestes livros – é o seu prolongado interesse, diria mesmo fascínio,
pela ciência e, portanto, a sua notável originalidade entre os artistas na
procura de cruzamentos entre a arte e a ciência. Atrás de todas essas obras
está o ensaio de teoria estética O Sentido da Arte (SA), Lisboa: Livros
Horizonte, 1999 (havia uma edição em francês, Le Sens de l’Art, Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983), cujo conteúdo é retomado em UP e em
TnE. De modo que as três obras à volta da ciência se destinam, ainda que
isso possa não transparecer logo, a esclarecer o sentido da arte, a grande questão
do arquitecto que se tornou pintor.
No nosso século XX brilhou nas artes Almada Negreiros (1893-1970), que
se interessou pelo antigo tema da “razão dourada” e seus derivados, uma
tentativa, com as limitações conhecidas, de matematizar a arte, isto é, de
procurar um cânone de base matemática que possa descrever o belo. Mas Nadir
Afonso, no seu anseio individual de aproximação entre arte e ciência, não trilhou
esse caminho, sobre o qual comenta em SA. Escreveu Nadir: “convém denunciar
o lado falso das propriedades atribuídas a esta secção de ouro”(…) se o
conceito de secção de ouro degenerou nessa absurda abstracção estética, isso
deveu-se à acção conjugada das ciências aritméticas e das crenças místicas
desenvolvidas em torno dos números.” (pp. 91-92 de SA)
A este respeito, lembro o curioso diálogo entre Le Corbusier, o famoso arquiteto
suíço com quem Nadir Afonso trabalhou em França, e que era como Almada obcecado
pela “razão dourada” (ver o seu livro O Modulor. Ensaio sobre uma medida
harmónica…, Lisboa: Orfeu Negro, 2010), e Albert Einstein, em
Princeton, nos Estados Unidos, quando o
primeiro, em 1946, trabalhou na equipa que projectou a sede das Nações Unidas, em
Nova Iorque. Tendo-lhe exposto as suas ideias baseadas na razão dourada, a expressão
da harmonia perfeita, o físico, sábio não apenas na física, retorquiu: “O
senhor procura um conjunto de proporções que torne o belo fácil e o feio
difícil.” Subentendia-se que era uma tarefa difícil…
Nadir Afonso não escolhe os caminhos mais fáceis e, por isso, mais
percorridos. Na arte seguiu sempre o seu próprio caminho, tendo sempre por base
a geometria. Artista polifacetado que percorreu vários estilos, é nítida a sua
preferência pelas linhas curvas, tão do gosto do arquitecto brasileiro Oscar
Niemeyer, outro gigante com quem trabalhou. Niemeyer é o autor do “Poema da
Curva”, que termina invocando Einstein: "Não é o ângulo recto que me
atrai,/ Nem a linha recta. Dura, inflexível/, criada pelo homem./ O que me
atrai/ é a curva livre e sensual./ A curva que encontro nas montanhas/ do meu
país, no curso sinuoso dos/ seus rios, nas nuvens do céu, no/ corpo da mulher preferida./
De curvas é feito todo o Universo./ O Universo curvo de Einstein."
Tal como Le
Corbusier e Niemeyer, Nadir vê pontes entre arte e ciência, mas a uma profundidade
maior. Cultivador da filosofia da arte, como aliás está bem patente em SA, ele
tenta entender a ciência, a partir da sua experiência estética. A sua atitude é
filosófica, de inquietação, de indagação. O seu interesse pelos fundamentos da
ciência e da arte ressalta da seguinte citação: "A solução do problema cósmico, na mesma via perceptiva do fenómeno
artístico, requer, à partida, um acto de reflexão fundado sobre o conceito de
elementaridade e de simplicidade."
(p. 105 de UP e p. 10 de NffE). Só vejo, entre os artista plásticos
portugueses, um interesse pela ciência de dimensão semelhante em Fernando
Lanhas (1923-2012), que foi arquitecto e pintor tal como Nadir Afonso. Os dois
artistas, ambos do Norte, estudaram quase ao mesmo tempo na Escola Superior de
Belas Artes do Porto. E os dois foram
pioneiros da arte abstracta em Portugal.
O que têm de comum arte e ciência? O cientista busca o que é elementar e
simples, tentando descobrir, como tão bem apontou o matemático e ensaísta
britânico Jacob Bronowski, e muito antes dele o escritor romântico inglês Samuel
Coleridge, elementos de unidade na espantosa variedade do mundo. Bronowski conclui
que a ciência busca os princípios simples em que assenta a imensa complexidade
que observamos na Natureza… e a arte também: “A ciência não é mais do que a
busca da unidade na variedade desordenada da Natureza ou, mais exactamente, na
variedade da nossa experiência. A
poesia, a pintura, as artes em geral, são o mesmo” (1956).
Nadir Afonso ficou em jovem, tal como eu, perturbado pela obra de Einstein.
Tentou compreendê-lo, apesar de lhe faltarem as bases matemáticas e físicas
para alcançar uma perspectiva fiel. Convém acentuar que Nadir está do lado de
dentro da arte- a sua actividade - e não do lado de dentro da ciência. Não compreendendo
a ciência de Einstein não hesita em criticá-la.: “Tantos ensaios dedicados à
Relatividade e nem sequer um só, pelo menos daqueles que entre nós se encontram
e lá fora se procuram, se propõe ou se mostra capaz de censurá-la? Desinteresse
em publicar ou temor de criticar? (…) Deveria eu calar a minha voz que clama no
deserto e deixar passar tão surpreendente reverência ainda que se me afigure
assente sobre uma inexactidão científica?” (p. 50 de UP)
“Inexactidão científica” talvez não seja a melhor expressão. A sua crítica
baseia-se numa alegada falta de ligação entre a física teórica e a percepção
humana: “Não nos deixemos ofuscar pelo brilho das grandes teorias da
ciência: os teóricos da cosmologia erram, e erram pelas pequenas sensações. Nunca
a conceituada razão alcançou o controlo das nossas perceções nem poderá, por
conseguinte, facilmente amestrá-las: esta apenas se corrigem mediante uma
prática pessoal adequada ao objecto, numa criação elaborada.” (p. 80 de UP)
Parece-me haver aqui uma falta de demarcação entre ciência e arte, as
quais, convergindo na busca de sentido, o sentido ´diferente e a busca assume
metodologias diferentes. Einstein, que era um modesto violinista amador, sabia distinguir
ciência e arte: “Fazemos ciência quando reconstruímos na linguagem da lógica
o que vimos e experimentámos; fazemos arte quando comunicamos por formas cujas
ligações não são acessíveis à mente consciente mas, no entanto, reconhecemos
intuitivamente nelas algum sentido” (1921). Mas o sábio de origem alemã estava
ciente de que havia pontes entre as duas, uma vez que ambas procuram penetrar
no mistério: “A coisa mais maravilhosa que podemos experimentar é o
mistério. Ele é a raiz da verdadeira arte e da verdadeira ciência” (1931). Noutra ocasião,
Einstein revelou que a imaginação, a capacidade que o público normalmente associa
aos artistas e não aos cientistas, é um meio de que estes também se servem com
liberalidade: “A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O
conhecimento é limitado. A imaginação dá a volta ao mundo” (1929).
Na trilogia em apreço dos livros de Nadir Afonso que se debruçam sobre a
ciência, cujo conteúdo é da ordem da filosofia e não da ciência, o problema
principal do autor é o conceito de tempo, um conceito sobre o qual Santo
Agostinho nos legou, no Livro XI das suas Confissões, uma frase lapidar:
“Que é o tempo (…) Se ninguém me perguntar, eu
sei; porém, se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.“ Nadir pergunta a si próprio o que é o tempo e
responde, de uma maneira franca e directa (em TnE é logo no
título), que ele não existe. O artista, talvez por não estar familiarizado com
o cálculo infinitesimal, esbarra logo de início com o conceito de velocidade,
que exige os conceitos prévios de espaço e de tempo, uma vez que a velocidade instantânea
é a razão entre o espaço e o tempo infinitesimais. Mas, para Nadir, os
conceitos básicos deverão ser espaço e movimento (portanto, velocidade), tendo
o tempo de derivar daí de alguma maneira. Vejamos, em três curtos trechos, o
modo como ele coloca o problema: “O espaço sente-se e mede-se. O movimento
sente-se apenas: a velocidade dos corpos é irredutível a uma avaliação
mensurável; e o tempo não se sente nem se mede.” (p. 40 de UP, uma ideia
repetida na p. 28 de TnE); “Não há tempo. Há lei. Há espaço, há movimento” (p.
115 de UP e p. 21 de TnE); “Julgamos estar lidando com três factores -
espaço movimento e tempo – quando na verdade apenas existe espaço e movimento,
e urgência de refazer o estudo das leis da gravidade” (p. 117 de UP e p. 27
de TnE).
Apesar de propor uma fórmula, onde entra a velocidade da luz, Nadir não
consegue precisar de modo satisfatório o que é o tempo, negando por isso a sua
realidade. Eu, que sou físico, julgo que o tempo existe, embora possa
ser difícil de compreender. Nadir, na sua busca do elementar e do simples, assume
na sua obra ensaística o seu problema com o tempo, defendendo que este não
passaria de uma ilusão. Uma tal tese não deixa de ser uma interpelação à física.
Vejamos como a física trata o tempo, no seu capítulo da mecânica. A teoria
da relatividade restrita de Einstein (de 1905) junta o espaço e o tempo numa só
entidade (o espaço-tempo a quatro dimensões) e junta a energia e a massa numa
relação íntima (traduzida por uma fórmula, que se transformou num ícone da
física). A teoria da relatividade geral (de 1915) explica a força da gravidade
juntando espaço, tempo, energia e matéria: a matéria-energia altera a geometria
do espaço-tempo e a força da gravidade consiste precisamente nessa alteração.
Este hipótese foi corroborada, entre muitas outras observações, por aquela que
foi feita por cientistas britânicos de um eclipse solar total em 1919 na ilha
do Príncipe, então uma colónia portuguesa, e em Sobral, no Nordeste do Brasil. Hoje,
passados mais de cem anos, com as observações recentes de ondas gravitacionais
e de buracos negros, somam-se os êxitos de Einstein. Ele não foi ainda
ultrapassado, embora seja lícito pensar que um dia o venha a ser, tal como ele
próprio ultrapassou Newton.
O que é o espaço para um físico? A extensão medida por uma régua. E o
tempo? A duração medida por um relógio. Para Newton, autor maior da mecânica
clássica, o espaço e o tempo estavam separados: Eram panos de fundo imóveis e
universais. Pelo contrário, para Einstein, autor praticamente único da mecânica
relativista, cada observador efectua as suas medidas de espaço e de tempo,
podendo compará-las com as de outros observadores (a velocidade da luz é
invariante, a mesma para todos eles). A concordância de todos os observadores a
respeito das mesmas leis da física constitui a essência da teoria da
relatividade. Sem esta invariância, que pode ser tratada como uma simetria, nem
poderia haver uma física igual para todos.
Julgo que Nadir Afonso nunca pretendeu, metendo foice em seara que não era
a sua, fazer descobertas científicas que destronassem a ciência vigente. O
artista e ensaísta, absorvendo a física a partir de livros de divulgação
científica (não é demais sublinhar a relevância destes livros para a disseminação
da cultura científica), tentou apenas pensar a ciência de fora, com os naturais
condicionalismos das suas formação e experiência.
Nadir não aceita a constância da velocidade da luz (que é um pilar das
duas teorias da relatividade), não aceita a explicação relativista da dilatação
do tempo em relógios em movimento (que faz com que um gémeo que empreenda uma
viagem interestelar seja, ao regressar à Terra, mais novo do que o seu irmão), e
não aceita a teoria do Big Bang descrita pela teoria da relatividade
geral (que supõe uma curvatura extrema do espaço e do tempo). No seu quadro conceptual
que é o percepção e da estética, Nadir coloca-se numa posição de desafio filosófico
à ciência. Os resultados para a ciência são, como tinham de ser, limitados: ele
não propõe, porque não pode propor, uma física alternativa. Mas é estimulante
lê-lo, mesmo quando não faz mais do que expor as suas dúvidas. Fá-lo aliás numa
prosa impressiva que dá gosto ler. É natural que ele tenha dúvidas. Assim como
é natural que um físico experimente dificuldades em perceber os seus textos, uma
vez que ele têm de ser entendidos de fora da física.
A verdade é que alguns físicos contemporâneos também têm muitas dúvidas
sobre o tempo. Tentam pensá-lo de uma maneira não convencional, confrontando-se
nesse processo com dificuldades várias, que por vezes parecem colossais. Refiro
a este propósito as ideias do físico italiano Carlo Rovelli (autor de A Ordem
do Tempo, Lisboa: Objectiva, 2015), que, na sua recente tentativa de juntar
a teoria da relatividade geral com a teoria quântica, um grande sonho dos
físicos de hoje na esteira das tentativas de Einstein unificar o
electromagnetismo com a gravidade, acabou por encontrar um tempo caótico à
escala quântica do qual emerge à escala macroscópica o tempo linear que vivenciamos.
A posição de Nadir é algo semelhante à do filósofo francês Henry
Bergson, que nunca aceitou a teoria da relatividade de Einstein, defendendo o
tempo como uma experiência psicológica. Na polémica que se estabeleceu
extremaram-se posições. Mas é curioso que, em Portugal, o fílósofo que
introduziu entre nós as ideias da relatividade, Leonardo Coimbra, tenha estado
do lado de Einstein. O certo é que, fluindo o tempo para todos, a nossa
compreensão dele ganhará com diversas aproximações, umas vindas da filosofia e
outras vindas da ciência. A ciência está longe de ser a única dimensão humana. O
mundo é misterioso e o mistério pode ser acedido de várias maneiras.
No final de UP fica mais claro o que o autor, guiado pela sua
intuição, pretende afirmar. Para ele não há dúvida de que a arte está próxima
da ciência, muito mais do que a busca da razão dourada sugere. As leis
científicas têm reflexos inescapáveis na arte, designadamente as leis geométricas
que subjazem a todas as artes visuais, existindo uma curva que se salienta às
demais: “Quer os elementos quer as substâncias físicas fundem-se em normas geométricas.
O que poderá existir de auto-suficiente senão a singularidade, a extrema simplicidade,
a exactidão do círculo? Todo o o espaço cósmico se reduz, na sua essência, a essa lei espacial absoluta; e qualquer outro
principio, seja físico, seja geométrico, é uma sua proveniente complexidade. Síntese
de todos os elementos da Natureza, o círculo exprime a forma elevada à sua
redução última; ele encerra essa intuição demiúrgica hoje perdida” (p. 105
de UP e p. 10 de NffE).
Pouco mais adiante, Nadir traça, através de perguntas retóricas, um
paralelismo entre arte e ciência: “E haverá assim tanta disparidade entre o
conceito que funda a criação artística e o conceito paralelo que determina a criação
universal? Não se manifesta, aqui, a mesma Natureza? Não existirá entre as diferentes
leis um elo de ligação natural? O artista plástico tece as suas leis - o seu Universo - como a Natureza tece a sua microestrutura
geométrica e, depois, os seus sistemas cristalinos, até às formas mais complexificadas,
onde as leis geratrizes se dispersam… e o artista, mediante a sua obra, de novo
as reinstala” (p. 110 de UP).
O autor, num passo mais difícil de perceber porque a sua linguagem se
aproxima da poesia, atribui “energias” às leis do universo: “Foi uma negligência
fatal da ciência não ter percebido que a lei possui energias. Ela não só rege
como também age: as energias das leis exigem um triângulo naquele canto do
quadro. Há transmissão de energia por parte da lei e há recepção da energia por
parte do sujeito (…) As leis geométricas são constantes, mas a sua percepção sensível
evolui” (p. 120 de UP).
No seu Manifesto (TnE), Nadir está certamente a fazer filosofia
da arte, quando procura fundamentar a arte em leis científicas, ou melhor
matemáticas (mais do que uma ciência, a matemática é a linguagem da ciência): “Ora,
eu creio que o artista procura intuitivamente, isto é, sem disso ter
consciência, as leis matemáticas, as leis geométricas universais (…) A essência
da obra de arte é de fonte matemática” (pp. 39 e 40 de UP e pp. 34-35 de
TnE).
Para Nadir Afonso ciência e arte têm que dizer uma à outra. Na mente
humana há espaço e tempo para as duas.
3 comentários:
A questão de saber o que é arte, quais são as artes, a que poderemos chamar obra de arte, o que é ciência, quais são as ciências, a que poderemos chamar produção científica, o que é a filosofia, quais são as filosofias, a que poderemos chamar obra filosófica, o que as distingue e o que têm em comum, é um problema muito produtivo e vasto e tentar obter respostas satisfatórias pode ser um enorme desafio.
Neste momento, por exemplo, podemos perguntar se estas minhas considerações são arte, e qual, ciência, e qual, filosofia, etc..
Responder a uma questão destas exige que disponhamos de critérios, sem os quais, as próprias questões carecem de sentido. Depois de estabelecidos esses critérios, e pode não ser fácil consegui-lo, estaremos em melhores condições para tentar responder às questões.
O problema só existe quando o colocamos. Se não perguntarmos, não precisamos de responder e diante de um quadro diremos, sem dificuldade que se trata de uma obra, mas duvidaremos se é uma obra de arte. E não a confundiremos com as Críticas da Razão, de Kant, que diremos tratar-se de obras filosóficas e não duvidaremos de que não são a Física de Newton, a Teoria da Relatividade, de Einstein, ou o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, nem os Lusíadas, de Camões, nem estes com a Bíblia, ainda que a esta tenha sido outorgado, por uma comunidade religiosa, o carácter absoluto de livro de todo o conhecimento...
Estamos habituados, pelo uso comum das palavras e das próprias obras, a identificar obras de arte como sendo pinturas ou esculturas, ciência como sendo conhecimento de aplicação técnica e prática, filosofia como sendo uma espécie de supremo tribunal da verdade, que problematiza e discute a realidade e todos os tipos de discurso, julgando-os, desde os dogmáticos até aos discursos do senso comum.(continua)
O que é que a actividade de um pintor, quando pinta o quadro, e o quadro, têm a ver com a actividade do filósofo, quando reflecte sobre o quadro, a sua natureza, estética, valor? São actividades diferentes, com objectivos e intencionalidades diferentes.
A pessoa pode ser a mesma e assumir a dupla função de pintor e de filósofo. Podemos supor que o Einstein, produzindo um quadro, ou um romance, ou um poema, ou uma tese filosófica sobre o alcance e valor do seu trabalho, aproveitasse esse suporte para apresentar e dar a conhecer as suas Teorias científicas. Não diríamos que o quadro, o romance, o poema, a tese filosófica, eram ciência, embora contivessem, por ex., as fórmulas.
Em todas as produções de artefactos, para não falar das artes cénicas e coreográficas e nos espectáculos gimnodesportivos e outras artes, independentemente de estarem incorporados em algum registo, código, linguagem, som, imagem, há o elemento físico e intelectual da comunicação.
Esta comunicação não depende daquilo que o autor, artista, cientista, filósofo, músico... quis comunicar, ou quer comunicar, mas do que a obra comunica. Se o Einstein tivesse intitulado os seus livros de “Meus Poemas Científicos”, não seria por isso que ganharia o prémio nobel da literatura. Se o Cristiano Ronaldo ao falar dos seus golos declarasse que eles eram a explicação da origem do universo, ninguém iria dizer que ele fazia ciência. E se, depois de tocarem uma peça nova, desconhecida, o maestro perguntasse ao público pelo significado da música, a pergunta seria irrespondível. Existem imensas produções artísticas que não têm, nem podem ter, um significado, porque não funcionam ou, pelo menos, se não funcionarem, como uma linguagem.
Quem estabelece o significado das obras, nem são as obras, nem são os autores. Se um pintor, um poeta, um futebolista, um músico, um filósofo, quiserem refutar, ou comprovar, por exemplo, as teorias da relatividade, terão de o fazer com ciência, e não com um quadro, um poema, uma jogada de bola, uma música, uma conjectura, ou teoria não científica, a menos que usem as obras como linguagem ou discurso científico, porque a actividade de refutar, ou comprovar, é uma actividade argumentativa e, se for sobre teorias científicas, além de argumentação abstracta, há-de lograr demonstração empírica que sirva de fundamento a uma conclusão e a uma sentença do foro científico.
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