Minha recensão no I de quinta-feira:
Nadir Afonso (Chaves, 1920 –
Cascais, 2013) foi um dos mais notáveis artistas portugueses do século XX. Já formado
em Arquitectura pela Escola Superior de Belas Artes da Universidade do Porto,
foi para Paris em 1946 estudar pintura, tendo nessa altura colaborado com o
famoso arquitecto suíço-francês Le Corbusier. Em 1951 haveria de ir para o
Brasil para trabalhar com outro arquitecto, igualmente famoso, o brasileiro
Óscar Niemeyer. Contactou também, no estrangeiro, com nomes destacados da arte
contemporânea como o francês Fernand Léger, cubista, e o húngaro-francês Victor
Vasarely, o “pai” da op art. Regressado a Portugal, o arquitecto já
tinha dado lugar ao pintor.
A sua arte, sempre com características
geométricas bem vincadas, desdobrou-se ao longo das décadas da sua longa vida
artística em períodos com estilos diferenciados. Começou com obras tradicionais
e evoluiu para o surrealismo. Mas, no período de abstraccionismo geométrico,
deu cor a círculos, losangos, quadrados e triângulos, em padrões muito
harmónicos. No período barroco, soube transpor para a tela, de modo estilizado,
formas barrocas da arquitectura do Porto. Depois inovou com composições ditas
de espacillimité, onde era nítida a inspiração da arte cinética. Seguiram-se
os períodos ditos ogival, devido à presença de arcos, perspéctico, devido à
explosão de elementos geométricos, organicista, onde ganham lugar as curvas
sobre skylines urbanos, e, finalmente, já no século actual, o período fractal,
no qual as cidades continuam a ser o leitmotiv, mas agora com um maior
emaranhado. Como mostra essa sucessão de períodos, Nadir embrenhou-se
continuamente numa procura estética. Mas ressalta uma evidente unidade: os traços
geométricos são muito seus e as cores são muito vivas. Neste século,
sucederam-se as exposições antológicas e o reconhecimento do artista. Destaco
em 2010, porque a vi, a exposição “Sem Limites” no Museu Nacional Soares dos
Reis, no Porto, e no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, em
Lisboa. E em 2012 as suas exposições em Roma e Veneza.
Quem quiser deleitar-se com a
obra de Nadir o melhor é o Museu de Arte Contemporânea que tem o seu nome num
edifício desenhado pelo arquitecto, seu amigo, Álvaro Siza, em Chaves, e
inaugurado em 2016. Já o fiz várias vezes, numa delas amavelmente guiado pela
sua mulher, Laura Afonso, que tem peleado pela manutenção da memória do artista
e da sua obra através da Fundação Nadir Afonso.
Uma marca distintiva de Nadir é a
sua actividade como teórico da arte. Mais do
que qualquer outro artista português, ele procurou sempre uma definição
do belo. O seu primeiro ensaio sobre este tema foi publicado em Neuchâtel, na
Suíça (La Sensibilité Plastique, Presses du Temp Present, 1959) e a última,
já póstuma, em Lisboa, A Invenção do Tempo (Universidade Lusíada, 2014).
Entre uma e outra obra encontra-se nas bibliotecas toda uma bibliografia, cerca
de duas dezenas de títulos, que dão conta da sua procura do que é – ou deve ser
– a arte. Mas a maioria desses títulos são difíceis de encontrar nas livrarias
(pode-se tentar a loja do Museu Nadir Afonso).
A Universidade do Porto, alma
mater do artista e escola que lhe conferiu o grau de Doutor honoris
causa em 2012, acaba de publicar quatro belos volumes contendo obras
escolhidas da sua vasta produção ensaística em torno da estética. São volumes
muito bem produzidos pela Universidade do Porto Press (o design é de Eugénia
Rocha e Jorge Moreira, muitos parabéns!), que se distinguem pela forma
geométrica escolhida para a capa, o círculo vermelho, o losango azul turquesa,
o rectângulo azul eléctrico e o triângulo amarelo.
A publicação dos volumes, que integram
a colecção “Arte e Pensamento”, teve o apoio da Fundação Nadir Afonso e integrou-se
na comemoração, que decorreu em 2020, do centenário do artista. Também não são
fáceis de encontrar, mas, no Porto, o sítio indicado é a Loja da Universidade
do Porto, na Praça dos Leões (há sempre a possibilidade de comprar on-line,
muito conveniente nestes tempos de confinamento, mas a Wook não tem nem esta
nem outras obras de editoras académicas). Na mesma loja encontra-se o livro 100
Anos Nadir, Inéditos, da Universidade do Porto Press, de novo com o apoio
da Fundação Nadir Afonso, que é o catálogo da exposição com a qual, em 2020, a
Universidade do Porto homenageou o seu ex-aluno.
Vejamos como foram arrumados os títulos
principais da bibliografia nadiriana:
I - O Sentido da Arte e Outros
Textos. Este volume inclui três livros: A Sensibilidade Plástica (tradução
do original saído na Suíça), Os Mecanismos da Criação Artística
(publicado originalmente em francês em 1970 pelas Éditions du Griffon, de Neuchâtel,
em francês, inglês e alemão) e O Sentido da Arte, publicado em francês
em 1983, pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda e republicado em português pela
Livros Horizonte em 1999. O prefácio foi de Celina Silva, professora da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto e especialista em teoria da
literatura e teoria da arte. Entre o prefácio e o corpo dos livros surge uma curta
biobibliografia de Nadir que se repete nos volumes seguintes (embora com uma fotografia
diferente do artista)
II - Da Intuição Artística ao Raciocínio
Estético e As Artes: Erradas Crenças e Falsas Críticas. Reúne os dois
livros com esse nome, publicados pela Chaves Ferreira Publicações respectivamente
em 2003 e 2017 (esta última edição bilingue em português e inglês). Na versão
original eram edições de luxo, revalorizadas por reproduções de obras do autor,
e que não estavam ao alcance de todas as bolsas (este volume custa só 14,40
euros). O prefácio é de Adelaide Ginga, historiadora de arte e curadora do
Museu do Chiado, em Lisboa.
III - Universo e Pensamento e Outros
Textos. O editor (deve ser referido o nome de Isabel Pacheco, coordenadora
editorial) juntou aqui os três livros de Nadir mais relacionados com a ciência:
Universo e Pensamento, Nadir Face a face com Einstein e O Tempo Não Existe:
Manifesto. Tive a honra de escrever o prefácio. Universo e Pensamentos
tinha saído em 2000 nos Livros Horizonte, e em 2020 na Afrontamento. Nadir
Face a face com Einstein foi mais uma edição de luxo da Chaves Ferreira (2008),
com ilustrações de quadros do autor representando cidades. Por último, O Tempo
Não Existe: Manifesto saiu em 2010 na Dinalivro. Todos estes livros discutem
a relação da arte com a ciência. O autor coloca em causa a teoria da relatividade
de Einstein e até a existência do tempo como grandeza física independente. Mas
é óbvio que ele não procurava fazer ciência, antes filosofia da arte iluminado por aquilo que ele entendia vir da ciência. Nadir, sabendo que a sua foice não era para a seara
da ciência, nunca reclamou ter realizado descobertas que mudassem a ciência
vigente. Sorvendo a física moderna a partir de livros de divulgação científica,
tentou apenas pensar a ciência de fora, com todos os naturais condicionalismos
das suas formação e experiência.
IV - Reflexões Estéticas e Sobre
a Vida e Sobre a Obra de Van Gogh. Este livro abre com o volume Sobre a
Vida e Obra de Van Gogh, 2002, que é acompanhada por algumas reproduções de
quadros do pintor holandês e, sob o título Reflexões Estéticas alinham-se
a seguir um conjunto de 22 textos, curtos, cuja data de publicação
alarga um vasto intervalo temporal, de 1959 (“Objectividade e Inobjectividade”)
até 2013 (“Síntese estética”). O prefácio é de António Quadros Ferreira,
professor emérito da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e ele
próprio artista (publicou há meses, na Universidade do Porto Press, o ensaio Nadir
mestre de si mesmo).
Permito-me transcrever aqui um
excerto do meu prefácio, esperando o que possa servir como apetite à leitura do
livro:
“Tal
como Le Corbusier e Niemeyer, Nadir vê pontes entre arte e ciência, mas a uma
profundidade maior. Cultivador da filosofia da arte, como aliás está bem patente
em O Sentido da Arte, ele tenta entender a ciência, a partir da sua
experiência estética. A sua atitude é filosófica, de inquietação, de indagação.
O seu interesse pelos fundamentos da ciência e da arte ressalta da seguinte
citação: ‘A solução do problema cósmico, na mesma via perceptiva do fenómeno
artístico, requer, à partida, um acto de reflexão fundado sobre o conceito de
elementaridade e de simplicidade.’ Só vejo, entre os artistas plásticos
portugueses, um interesse pela ciência de dimensão semelhante em Fernando
Lanhas (1923-2012), que foi arquitecto e pintor tal como Nadir Afonso. Os dois
artistas, ambos do Norte, estudaram quase ao mesmo tempo na Escola Superior de
Belas Artes do Porto. E os dois foram pioneiros da arte abstracta em Portugal.”
Termino, com um excerto do último
texto de Nadir, escrito no ano da sua morte, em “Síntese estética”. Pergunta
ele:
“Porque é que o verdadeiro
artista é universal? Porque atinge a exactidão. Exactidão da natureza,
desconhecida dos estetas inteligentes e cultos; exactidão que os seres
sensíveis, após longos anos de percepção, acabam, por sentir; exactidão de leis
matemáticas, impossíveis de compreender e incapazes de definir.”
A ciência tenta penetrar no mistério do Universo. A arte ensaia também entrar no mistério do belo. Um outro? Para Nadir, estes dois mistérios são, no fundo, um só.
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