segunda-feira, 4 de março de 2019

“Filantropismo empresarial”: para uma leitura do discurso e da acção das empresas nos sistemas educativos

A palavra filantropia tem origem etimológica no grego. É composta por dois elementos: antropos que significa homem, no sentido de ser humano e philos (filos) que significa amigo. Assim, philanthropia, quer dizer, basicamente, "amor à humanidade", um filantropo é o amigo do homem, do ser humano, da humanidade. No fundo, filantropia remete para a atitude de altruísmo que é marca da educação e da formação. Será este o sentido com que a palavra é usada no presente, no âmbito da educação escolar e da formação profissional? Vejamos… 

A ideia de envolvimento da sociedade, e dos seus diversos agentes, na educação escolar (sobretudo na educação básica) e na formação profissional não é nova, ainda que no presente denote características muito próprias.

Situando-me no presente, começo por assinalar que são em número crescente os actores que reivindicam a sua co-responsabilidade social e cultural nessa dupla matéria, sendo ela reconhecida (incluindo em letra de lei e no espaço de trabalho académico) a muitos deles que. Entre tais actores estão empresas, fundações, associações e think-tanks, mas também organizações não governamentais e grupos de intervenção cívica.

Fiquemo-nos pelos primeiros. A declaração de intenções que fazem é substancialmente focalizada na necessidade e urgência de debelar a pobreza e de qualificar e requalificar profissionais. Objectivos que afirmam, tendo custos elevados, não estão a ser atingidos pelos sistemas públicos devido à ineficácia e instabilidade das suas políticas e medidas. Assim, disponibilizam-se a "apoiar" esses sistemas. Expressões como “caridade mediática” e “caridade sentimental” (Lipovestsky, 1998), “filantropismo económico” (Seguro Romero, 2017), “filantropia empresarial” (Krawczyk, 2018) traduzem isso mesmo.

Uma análise destes conceitos, faz ressaltar, três aspectos:
1. A educação e a formação dependem da “boa vontade” dos mencionados actores, sendo conceptualizadas e concretizadas segundo a sua “vontade”. Isto significa que o modelo de base é o empresarial, sobretudo de índole técnica e funcional, mesmo que além dos comportamentos competências se prevejam atitudes/valores;
2. As relações pessoais são, por natureza, de dependência, tendo por referência os meios económicos e as oportunidades de acesso aos mesmos: quem tem, dá; quem não tem, recebe. Mas quem recebe fica vinculado à obrigação de contribuir para quem lhe deu, vinculação tanto mais forte quanto mais fragilizada for a sua situação;
3. A difusão (e o reforço) das iniciativas dos actores em questão nos média é bem visível, com destaque para a internet. A mediatização, estrategicamente delineada, associada ao apoio explícito de políticos, de investigadores, de estrelas do espectáculo e de outras personalidades influentes, contribui para a sua aceitação generalizada junto das mais diversas populações. 
Estes três aspectos são bastantes para retirar valor educativo e formativo à educação e à formação a que aludimos. Na verdade, para que a educação e a formação o sejam realmente, têm de ter um carácter altruísta (Maia, 2006), manifestando-se na acção desinteressada, focalizada no Bem para o outro. Mais, têm de ser guiadas por princípios como a “justiça distributiva”, a “igualdade de oportunidades”, e a “liberdade de escolha”. Em suma, têm de resultar, de facto, da filantropia, tal como acima definida. É que a pessoa a educar e a formar, seguindo Kant, tem de ser encarada e tratada sempre como um fim e nunca como um simples meio, caso contrário é a “dignidade”, que fica comprometida.

Reproduzo abaixo extractos de trabalhos em que me baseei para escrever este apontamento, reportados à realidade muito uniforme da Europa, da América do Norte e do Sul e de África.
“(…) por toda a parte, sob o reinado da caridade mediática, a acção moral depende menos de princípios éticos interiorizados que de golpes mediáticos (…). Com a caridade mediática, a moral não desaparece, torna-se sentimental, à la carte, intermitente e, ao mesmo tempo, espectacular, melhor dito, epidémica, última forma de consumo.” Gilles Lipovestsky, 1998, 35-36.
“(…) a educação pública nos EUA foi e continua sendo uma importante estratégia de política social e de ação filantrópica empresarial (…). Em meados do século XIX, podíamos encontrar, de alguma forma estabelecida, a escola primária pública em alguns estados do país, como consequência da forte pressão dos liberais e dos trabalhadores, em contraposição a conservadores e eclesiásticos. E, com a abolição da escravidão, houve um incremento importante da escolaridade, entre outros motivos, pela influência exercida pelas primeiras fundações filantrópicas educativas, criadas por capitalistas do Norte para a erradicação do atraso educacional do Sul (…). É parte do ethos americano o orgulho de ajudar os outros e de uma cultura filantrópica como escopo da moral de uma sociedade democrática liberal. Grandes fundações empresariais foram criadas no século XIX, tais como Carnegie, Rockfeller ou Ford, que atuam até hoje em diferentes âmbitos, prioritariamente na educação. Andrew Carnegie é uma figura emblemática da filantropia empresarial norte-americana. Fez sua fortuna na produção de aço. Era chamado ‘o rei do aço’. Embora muitas vezes apresentado como um dos ‘barões ladrões’ (personagens inescrupulosos da História do capitalismo nos Estados Unidos), é citado como o primeiro empresário a declarar publicamente que os ricos têm a obrigação moral de repartir suas fortunas acumuladas. Fundou em 1905 a Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching. A influência dos empresários tem sido intensa na educação pública desde o século XIX. A lógica filantrópica e a atividade das grandes corporações estão enraizadas em todos os espaços da produção educacional americana: na produção de políticas, de programas educacionais, nas escolas. Ela surgiu como atividade filantrópica, com os empresários moralmente obrigados a ‘compartilhar’ parte de sua riqueza. Cresceu exponencialmente a partir da década de 1980, conferindo-lhes poder e prestígio que, além das vantagens fiscais, resultaram na criação de um gigantesco mercado educacional.” Nora Krawczyk, 2018, pp. 60-63. 
“Nota-se que dos anos 90 em diante surgem áreas mais atraentes de atuação para as ONGs: a educação básica, a pobreza e suas distintas manifestações, talvez pela facilidade de captação de recursos e pelo interesse do Estado e mercado em redirecionar o gasto social com estas políticas. Uma das teses recorrentes trata das novas exigências educacionais para a formação do trabalhador (…). O fenômeno da responsabilidade social do empresariado e as parcerias com as ONGs ganham destaque na mídia, porém, apresentam-se ao senso comum de duas formas: na primeira situação, o sujeito fracassou em virtude de sua própria incompetência, não tinha os elementos necessários em sua formação para que pudesse garantir a empregabilidade; e, na segunda, a maneira de se apresentar o fenômeno é mostrá-lo como natural, banal, inevitável, porque esse é um problema da virada do século ou da reestruturação produtiva e da falta de educação do cidadão para o trabalho, colocando o pobre dependente da ajuda dos empresários e das ONGs. O mundo do mercado é cada vez mais competitivo e o Estado cada vez mais gerenciador desses interesses. Educação e pobreza, portanto, criam ou ampliam os espaços para as ONGs, diversificando-as de acordo com o cidadão-beneficiário que interessa ao mercado. Em escala mundial se anuncia a formação de uma rede de parcerias e diálogos que expressa, ao mesmo tempo, uma preocupação com a pobreza e com a educação. Anunciam-se as vantagens da revolução tecnológica em curso, as vantagens do mercado concorrencial fora do controle estatal e se difunde uma filosofia individualista em que predomina o desempenho de cada sujeito em total independência com o coletivo, mesmo estando nele.” Adelaide Ferreira Coutinho, 2009, sp. 
“A filantropia diz respeito à demissão do Estado em consonância com a ideia do Estado mínimo, o que se traduz na tendência a considerar que a educação é um problema de toda a sociedade e não propriamente do Estado, isto é, dos governos. A impressão é que, em lugar do princípio que figura nas constituições, segundo o qual a educação é direito de todos e dever do Estado, adota-se a diretriz contrária: a educação passa a ser dever de todos e direito do Estado. Com efeito, o Estado se mantém como regulador, como aquele que controla, pela avaliação, a educação, mas transfere para a sociedade as responsabilidades pela sua manutenção e pela garantia de sua qualidade. Veja-se como exemplo, no governo FHC, o mote Acorda Brasil. Está na hora da escola e, no governo Lula, o Compromisso Todos pela Educação (…). Na divulgação da Campanha Acorda Brasil, o MEC distribuiu um folheto publicitário que continha frases como: «Os professores precisam ter condições para se atualizar; entre outras coisas, você pode: patrocinar a realização de palestras, seminários e cursos de atualização nas escolas, doar livros e assinaturas de jornais e revistas para uso dos professores (…). E vai em frente (…) pedindo para «ajudar as crianças com dificuldade, ministrando aulas de reforço». Fica claro, aí, que o princípio constitucional que define a educação como dever do Estado cede lugar à boa vontade da população, num regresso à época em que a educação ainda não era considerada um assunto de responsabilidade pública, permanecendo na alçada da filantropia. Quanto ao Todos pela Educação, trata-se de um movimento criado pelos empresários, sugerindo que a educação é um problema não restrito ao Estado e aos governos, mas de toda a sociedade (…). Conforme reportagem do The Intercept-Brasil, a filantropia pode ter várias utilidades: «o honesto desejo por um mundo melhor, a lavagem de consciência, o tráfico de influência e até a lavagem de dinheiro» (Borges, 2016), além, obviamente, das isenções fiscais e da promoção da imagem das empresas que criam os respectivos institutos ou fundações. O resultado observável empiricamente é a precarização geral da educação em todo o país, visível na rede física, nos equipamentos, nas condições de trabalho e salários dos profissionais da educação, nas teorias pedagógicas de ensino e aprendizagem, nos currículos e na avaliação dos resultados.” Dermeval Saviani, 2018, pp. 24 e 25. 
“A pobreza no País vem sendo orientada por uma lógica, de um lado, representada pela adoção de um conjunto desarticulado, insuficiente e descontínuo de programas sociais compensatórios, que na década de 1990 passam a se orientar pelos princípios da ‘focalização’, da ‘descentralização’ e da ‘parceria’ assentados no ideário neoliberal, tudo movido pela ideologia da ‘solidariedade’ e da reedição da ‘filantropia’ e da ‘caridade’, agora estendida ao âmbito empresarial. De outro lado, é mantido o modelo econômico baseado na sobre-exploração do trabalho e na concentração de riqueza socialmente produzida, cuja expressão é o aumento do desemprego, o incremento do trabalho instável e precariza-do; a diminuição da renda do trabalho e a conseqüente expansão da pobreza.” Maria Ozanira da Silva e Silva, 2003, p.238. 
“Há já muito tempo, décadas, que a mercantilização chegou aos sistemas educa-tivos africanos com a intenção de ir conquistando nichos de actuação e de expansão. Processo de marcada índole neoliberal que atribui à educação (…) um papel excessivamente reducionista e alienante se considera-da uma perspectiva social ampla (…). Pretendemos, com cautela e prudência académica, reflectir sobre os aspectos que devem alar-mar toda e qualquer sociedade que se tem por humanista e emancipada [justifica-se, pois, interrogar] os processos de mercantilização da educação que a entendem como produto e bem de mercado (…). Quando a ajuda humanitária provém de instituições sociais vinculadas e sustentadas por empresas que participam no Mercado Livre é necessário que a análise seja cautelosa (…). A educação (…) será utilizada como fenómeno poderoso de alienação cidadã a interesses concretos dos mercados produtivos. Dito isto, o caso de África subsaariana e concretamente o liberiano, com um passado histórico adverso, constitui um excelente terreno para instaurar e experimentar reformas educativas pela mão de agentes externos. Instituições internacionais tais como a Rockeffeler, MacArthur, Ford, Kellogg e a Carnegie Corporation de Nueva York têm grande relevância no financiamento da educação superior na África subsaariana, enquanto outras como a Microsoft de Bill Gates, a Facebook de Mark Zuckerberg financiam projectos como a Bridge International Academics dirigidos à educação básica (…). Quando se chega a este ponto, a educação e a formação têm de passar a um outro debate em defesa do público (…) [Não existe melhor estratégia de conquista neoliberal do que seduzir para uma cidadania em vias de desenvolvimento com «cantos de sereia em forma de materialismo simbólico», que projectam as necessidades e vícios deste mundo globalizado, falácias que se apresentam como ícones do progresso].” Seguro Romero, 2007, pp. 661, 663, 664, 675. 
Referências bibliográficas: 
- Ferreira Coutinho, A. (2009) responsabilidade social do empresariado ou filantropia empresarial a serviço do capital? Comunicação apresentada nas IV Jornada Internacional de Políticas Públicas.
- Krawczyk, N. (2018). Brasil - Estados Unidos. A trama de relações ocultas na destruição da escola pública. N. Krawczyk (Org) (2018). Escola pública. Tempos difíceis mas não impossíveis (pp.59-72). Campinas: Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
- Lipovetsky, G. (1998). A era do após-dever. In E. Morin & I. Prigogine. (Org.). A sociedade em busca de valores: para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo (pp. 29-37). Lisboa: Instituto Piaget.
Maia, C. F. (2006). Altruísmo e educação: condição consciência e dignidade. Revista Portuguesa de Educação, vol. 19, n.º 2, pp.185-215.
- Saviani, D. (2018). A defesa da escola pública no Brasil: difícil, mas necessária. N. Krawczyk (Org) (2018). Escola pública. Tempos difíceis mas não impossíveis (pp.23-32). Campinas: Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
- Seguro Romero, P. (2017). Filantropía educativa como coarta tácita en la neoleberalizavión de los sistemas educativos del África Sub-sahariana. In J. M. Hernández Díaz & E. Eyeang. Los valores en la educación de África. De ayer a hoy (pp. 661-675). Salamanca: Ediciones Universidad.
- Silva, M.O.S da (2003). A política pública de transferência de renda enquanto estratégia de enfrentamento à pobreza no Brasil. Revista de Políticas Públicas, vol. 7, nº 2.

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