sábado, 10 de maio de 2014

Uma pedra que se dissolve na água

Sal-gema levemente impregnado de óxido de ferro (hematite)
A palavra sal foi-nos deixada pelos latinos (sal, salis), que tanto a empregavam para designar o produto extraído por evaporação da água do mar ou o minerado nas entranhas da terra, como para aludir, em sentido figurado, à vivacidade, à finura cáustica, ao espírito picante, ao bom gosto, à inteligência, mas também à esterilidade e ao infortúnio. E foi assim, com estes diversos sentidos, que o sal entrou na nossa linguagem quotidiana, da menos à mais erudita.

Plasticidade do sal-gema evidenciada pelas dobras dos leitos argilosos, mais escuros
Tal não aconteceu com o termo equivalente, usado pelos gregos, halós, cuja passagem na Península, muito anterior à ocupação romana, não teve nem a duração nem a importância desta outra importante civilização. Apenas no jargão científico e tecnológico dispomos de vocábulos construídos com base no grego. Diz-se que um solo é halomórfico quando salgado, que um organismo é halofílico quando suporta bem a presença de sal e chama-se halogenetos ou halóides ao conjunto dos minerais salinos, entre os quais a halite, o mineral essencial do sal-gema. Também chamado sal-pedra ou sal-da-mina, a expressão sal-gema surgiu entre os romanos com base no nome latino gemma, que alude ao que é mais puro.

No século XI, o médico e alquimista persa, Ibn Sina, mais conhecido por Avicena, estabeleceu a primeira classificação dos produtos minerais com base nas suas características directamente observáveis (cor, forma, brilho, fragilidade, etc.) e de outras determináveis, entre as quais a fusibilidade. Assim, separou “pedras e terras”, “minerais fusíveis e sulfurosos”, “metais” e “sais”. O grupo dos sais persistiu separado dos restantes, quer nas diversas classificações ou sistemas dos alquimistas, quer nas dos suecos Valério e de Bergman, nos finais do século XVIII, numa época em que a química e a mineralogia se confundiam e completavam.

Em química, sal é um composto resultante da interacção de um ácido com uma base, ou da acção de um ácido sobre um metal. Cloretos, sulfatos, brometos, iodetos, fosfatos, etc. são sais. Porém, todos eles necessitam de um qualificativo que os distinga dos restantes. É o caso do sal de Vichy (bicarbonato de sódio), do sal de Glauber (sulfato de sódio), do sal de Bertholet (clorato de potássio), do sal de Epson ou sal amargo (cloreto de magnésio), e de muitos outros. Só o cloreto de sódio dispensa esse cuidado. Basta-lhe a palavra sal dita ou escrita isoladamente. É este o constituinte essencial quer do sal marinho (explorado em salinas ou marinhas de sal, à beira-mar), que usamos na cozinha, quer do mineral halite extraído das entranhas da Terra.
Cristais de halite

Cloreto de sódio natural, a halite é o principal constituinte do sal-gema, a rocha sedimentar resultante da precipitação deste e de outros sais na natureza.
Tal precipitação, resultante do excesso de concentração salina por evaporação de água, tem geralmente lugar no fundo de bacias lagunares ou lacustres, constituindo acumulações de minerais a que foi dado o nome de evaporitos. São conhecidas ocorrências de sal-gema em todos os continentes e em todos os tempos, dos mais antigos aos mais modernos. Os catiões e aniões constituintes dos evaporitos têm origem na alteração das rochas, de onde passam às águas fluviais com destino ao mar e, nalguns casos, aos lagos.

Nos rios, a salinidade média é muitíssimo baixa, da ordem de 0,121 g/L mas, no mar, esse valor sobe imenso, atingindo, em média 35 g/L, todavia pequeno quando comparado com os 203 g/L do Grande Lago Salgado, no estado norte-americano de Utah, e os cerca de 230 g/L no Mar Morto, na fronteira de Israel com a Jordânia.
Nas margens do Mar Morto, o sal cristaliza por evaporação de água
A seguir à água, o cloreto de sódio é o composto mais abundante à superfície da Terra. Na maior parte dissolvido na água dos oceanos, acumulou-se aí, primeiro, na sequência da diferenciação planetária que deu origem à crosta, à atmosfera e à hidrosfera e, depois, em resultado da meteorização das rochas e transporte para o mar dos respectivos produtos de alteração. O cloreto de sódio contido nos oceanos actuais envolveria o planeta com uma camada de sal com cerca de 50 m de espessura.

Certamente porque a vida surgiu no mar, a água e também o sal são partes integrantes e vitais dos organismos. E nós não fugimos a esta regra. Temos sal em todos os líquidos orgânicos: nas lágrimas, na saliva, na urina e no sangue. O sal é-nos, assim, a nós e aos animais, absolutamente indispensável, nas quantidades higienicamente recomendáveis.

Considerado um dos recursos minerais de mais longo e variado uso pela humanidade, o sal-gema determinou a localização de núcleos populacionais no interior dos continentes, onde dificilmente chegava o sal marinho. Salzburgo (Áustria), por exemplo, significa à letra, Cidade do Sal. Apresenta-se como uma rocha, no geral, maciça, equigranular, branca quando pura e em massas (os cristais de halite, quando puros, são hialinos). Por vezes cinzento, devido à presença de matéria orgânica, o sal-gema pode, ainda, apresentar-se corado por óxidos de ferro, de tonalidades amareladas (limonite) ou e/ou avermelhadas (hematite).

Halite com leve impregnação de hematite
Este evaporito alimenta uma indústria química de base, com vista à produção de algumas dezenas de produtos, que, por sua vez, são o suporte de outras tantas indústrias especializadas. Entre os primeiros produtos obtidos a partir desta matéria-prima destacam-se o cloro, o sódio, o ácido clorídrico, o hipoclorito de sódio, a soda cáustica, o carbonato de sódio e o sulfato de sódio, produtos que estão na origem do fabrico de medicamentos, borrachas, plásticos, sabões, detergentes, papel, têxteis e outros. Para além da sua reconhecida importância como fonte de cloreto de sódio para uso culinário doméstico e para as indústrias alimentar e conserveira, é largamente usado, nos países frios, na fusão da neve e do gelo das rodovias. Presente nas trocas comerciais dos nossos antepassados pré-históricos e históricos e importante na conservação de alimentos, o sal-gema passou a ter a importância industrial que o caracteriza a partir do século XIX, sendo actualmente, ao lado do enxofre, do calcário, do carvão e do petróleo, uma das cinco matérias-primas que asseguram a indústria química de base.

Na mina austríaca de Hallstatt (Permo-triásico) a exploração do sal-gema é conhecida desde a Idade do Bronze. No SW da China, no século I, já se explorava este evaporito na Bacia de Sichuan. São históricas e dignas de registo as minas de Wieliczka, do Badeniano (Miocénico médio) de Cracóvia, na Polónia, localizadas numa jazida de sal-gema com mais de 3500 m de espessura e conhecidas há mais de um milénio. Estas minas foram exploradas regularmente a partir do século XIII e nelas se abriram mais de 250 Km de galerias, bem como uma capela escavada no sal. Com uma temperatura praticamente constante de 14.º C e sem humidade, o interior destas galerias proporciona um ambiente minimizador do mal-estar provocado por problemas de asma e de tuberculose.

A exploração do sal-gema, em Portugal, começou tarde e continua a fazer-se numa escala muito inferior às potencialidades do território. Esta situação resulta, por um lado, da sua grande riqueza em sal marinho, de boa qualidade e com uma tradição que remonta aos primórdios da sua história e, por outro, porque a importação de sal ainda é uma realidade ditada pelas regras do mercado internacional.

No âmbito da produção mineral nacional são particularmente importantes as explorações de Torres Vedras e de Loulé, ambas da base do Jurássico, em ocorrências que testemunham a existência de um cordão de lagunas litorais formadas há cerca de 200 milhões de anos. A primeira, mais precisamente, em Matacães, iniciada em 1957, realiza-se por dissolução controlada do sal, por injecção de água no corpo salino, em câmaras de dissolução, sendo a salmoura bombeada e enviada por pipe line até às instalações fabris na Póvoa de Santa Iria, através de um percurso de cerca de 52 Km.

Galerias na mina de sal-gema de Loulé
Em Loulé, o sal é explorado a seco, em mina subterrânea, tradicional, num domo salino, e varia desde sal-gema, quimicamente puro, a um outro cheio de impurezas. De grande beleza, os vários quilómetros de galerias, a mais de 230 m de profundidade, amplas (10 m de largura por 4 m de altura) e desprovidas de humidade, oferecem, aos asmáticos, óptimas condições ambientais.

A mina concessionada à Clona, Sais Alcalinos, tem reservas para milhares de anos de exploração. O sal que se extrai é dirigido, sobretudo, à indústria química, em Estarreja.

Na Fonte da Bica (Rio Maior) há poços de água salgada abertos em terrenos formados por rochas salinas, contemporâneas da de Loulé e Torres Vedras. Esta água é lançada em tanques (talhos), em número de 470, e aí evaporada, em cerca de seis dias (no Verão), precipitando o sal.
Exploração de sal em talhos na Fonte da Bica, Rio Maior
Este processo de exploração vem desde tempos imemoriais. A repartição desta salmoura pelos salineiros obedece a um regime tradicional conhecido desde o século XII, escrupulosamente respeitado. Em 1777, os Templários adquiriram aos seus proprietários, Pero de Aragão e Sancha Soares, 1/5 da água retirada do poço. Mais tarde, D. Afonso V foi proprietário de cinco talhos, além de que lhe pertencia ¼ da produção dos restantes salineiros.

Um litro de água do poço comum que abastece as salinas da Fonte da Bica contém, em média, 220 g de sal (com 96% da NaCl), isto é, 6,3 vezes mais salgada do que a água do mar. Existe aqui, hoje em dia, uma forte componente industrial na produção e armazenagem, estando as antigas “casinhas” de madeira a funcionar num tipo de comércio artesanal, muito virado ao turismo. A produção nacional de sal-gema foi de 585 mil toneladas, em 2000, o que está aquém das nossas necessidades de consumo, pelo que, nesse ano, a importação foi de 125 mil toneladas, com proveniências diversas (Espanha, França, Israel, etc.).

A importância do sal no nosso quotidiano é notória, evidenciando-se através de um conjunto de vocábulos, dos mais vulgares aos mais eruditos:

Salada, no feminino é um prato de vegetais em cujo tempero entra o sal, mas no masculino, salado, significa salgado, do mesmo modo que salão é terreno salgadiço, salgadio ou salino.

Salário, foi ração de sal usada com forma de pagamento aos soldados romanos e tem hoje o significado de remuneração.

Saleiro tanto é o recipiente onde se guarda o sal, com o qual salpresamos ou salpicamos os alimentos no prato, como é o homem que vende sal ou o que o produz, isto é, o salineiro ou marnoto.

Mas saleira é o barco de fundo chato, do Vouga, que transporta o produto do seu trabalho.

Salero, no dizer de espanhóis e também de portugueses, é graça, vivacidade, e salmurdo é sinónimo de sonso ou matreiro.

Salga é o acto de salgar, que o que os nossos pais e avós faziam aos toucinhos e outras carnes, após a matança do porco, e às sardinhas que acomodavam em barricas para abastecer as populações do interior. 

Salgadinhos, comemo-los como aperitivos ou fazem o almoço frugal de muitos e salganhada ou salmonada é a falta de arrumo, é confusão.

Salgados são as terras baixas, alagadiças, invadidas por águas cuja salinidade ou salugem as torna salgadiças, sendo nestas baixas que, preferencialmente, se instala a salicultura.

Salicáceas são as plantas de uma família botânica e salinómetro é o aparelho que mede o teor de sal.

Salícula ou salífero é o terreno que produz sal.

Salmoura é água mais ou menos saturada de sal, como a que conserva o atum e salmoeira, a vasilha.

Salmoura é, ainda, a água salgada que percorre o “pipeline” de Matacães até à fábrica, na Póvoa de Santa Iria, e salobra ou salmaça é a água mais ou menos contaminada com sal.

Salsa, como adjectivo, é o mesmo que salgada; como substantivo é sinónimo de molho e é a erva que usamos como tempero de muitas confecções culinárias.

E, para terminar, salsicha e salpicão são nomes de enchidos temperados com sal.

A. Galopim de Carvalho

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