Sabemos perfeitamente que o uso continuado de ecrãs e teclados em fases precoces de escolaridade prejudica a aprendizagem prevista para essas fases e para fases futuras. As próprias entidades que recomendam tal uso reconhecem (em paralelo e de modo paradoxal) os prejuízos. Mesmo assim, insiste-se na substituição do "papel e do lápis", não apenas no processo pedagógico-didáctico mas também na avaliação. Francisco Louçã, num texto publicado ontem no Expresso com o sugestivo título: "Prendam as crianças dentro do computador", diz o seguinte:
A tendência para que as provas de avaliação nos diversos graus de ensino passem a ser feitas digitalmente está inscrita tanto no deslumbramento com o computador quanto na facilidade que os ministérios, as escolas e não poucos professores disso esperam obter. Nas faculdades, este entusiasmo relançou os testes por cruzes, que são corrigidos automaticamente, o que evita aos estudantes a maçada de elaborarem um pensamento e aos professores a arrelia de lerem tais prestações.
A cultura do imediatismo parece, assim, convir a toda a gente, mesmo que alguns recalcitrantes ainda sugiram que as universidades foram criadas precisamente para contrariar tais banalizações.
Desse modo, o ensino universitário desprepara os estudantes seja para a vida profissional, seja para a investigação científica, pois nem numa nem noutra jamais voltarão a encontrar o divertimento das cruzes (...).
Não fica por aqui a vertigem transformista da mudança do Ensino. Como seria de esperar, os adaptadores querem tudo ao mesmo tempo. Por isso, hoje iniciam uma experiência mais ambiciosa (...) as provas de aferição para o 2.º ano de escolaridade, ou seja, para crianças de sete anos, que deverão responder a questões de Português, Matemática e Estudo do Meio num teclado de computador (...) [É] colocar crianças que estão a aprender a escrever, que estão a formar a sua caligrafia e a começar a ler e a ampliar o seu vocabulário, perante um teclado (...) para se desembrulharem de tarefas complexas na resposta a perguntas do ecrã.
(...) É uma escolha abominável do ponto de vista da educação. Sabendo que os computadores (...) constituem um mundo (...) que absorve as crianças (e os adultos), que a captação da sua atenção é hoje o princípio mercantil do mundo, fazer mergulhar as aprendizagens nesse ambiente sem lhes permitir o menor esboço de uma alternativa é desproteger os mais jovens (...).
Que o computador seja a sua divindade, o lugar misterioso que olha para uma criança e sete anos e classifica o seu conhecimento, torna-se uma praxe social cuja violência é somente mal disfarçada pela boa vontade e proteção que as professoras e professores conseguem imprimir no ambiente escolar. O que o Ministério está desta forma a impor, porventura sob a presunção de modernidade, é (...): desde a tua primeira letra, habitua-te a que a máquina seja a tua aprendizagem e a tua sociabilidade, a tua vida depende dela. Big Brother, Big Teacher, Big Friend, tu és nada.
Como sociedade precisamos de tomar consciência do mal que estamos a fazer aos mais jovens, mal que Francisco Louçã aqui bem refere. Isto quando deveríamos protegê-los, ensiná-los e, de modo mais abrangente, educá-los. São eles, os agora jovens, que vão ficar no mundo quando partirmos. Por isso, temos de pensar no mundo que deixamos para o futuro.
O leitor que frequenta este blogue dirá que me repito. É verdade. Mas é preciso repetir, repetir, repetir...
4 comentários:
Caríssima Professora Helena Damião, não receie repetir-se. O grande Goethe dizia que as pessoas estão sempre a repetir os erros que cometem, por isso temos de estar sempre a repetir as correcções que lhes fazemos. Em ciência, procura aprender-se com os erros do passado (ninguém voltou a dizer que a natureza tem horror ao vazio), mas, noutras áreas, não tem sido assim. É preciso estar sempre a insistir. Conto uma história, faceiramente ilustrativa. Havia, no tempo do Estado Novo, um padre esclarecido e com pouca pachorra para beatas. Um dia, uma dessas beatas, veio queixar-se de que tinha imensas dores e que, como o Senhor Padre tinha recomendado, rezara a Nossa Senhora, pedindo-lhe que lhe aliviasse as dores. No entanto, queixou-se ela, as rezas não tinham valido de nada. Respondeu-lhe o padre, já enfastiado: "Continue a rezar, mulherzinha! Reze mais, insista, chateie Nossa Senhora!"
É o conselho amigo e desinteressado que dou à Professora Helena Damião: "Repita-se, insista, chateie o Ministro!"
Eugénio Lisboa
Há crianças e jovens que são protegidos, que se sentem protegidos, que são ensinados e aprendem, que são educados e que não sabem o que é isso de "tu és nada", expressão horripilante, cujo peso, significado e ingredientes, demasiadas pessoas já experimentaram e aprenderam, muito antes do advento mirabolante da magia dos oráculos digitais. Para estas, o mais trágico é, sem agravo nem apelo, num cinismo desesperado de si mesmas, verem que isso é verdade, a única verdade (que é a que conta). Nem precisam de religiões ou filosofias, ou de saber ler, para conhecerem a verdade, a única.
Se queremos proteger, ensinar, educar as crianças, temos de saber fazê-las perceber e sentir que têm quem lute por elas e que podem lutar (e não apenas dizer-lhes que devem) contra quem ou o que tenta impedi-las de ser, aniquilá-las, anulá-las, seja pelo artifício que for, de pressão ou de linguagem, numa desigualdade brutal de argumentos, de meios e de armas. Fazê-las compreender e sentir que os castelos e as fortalezas não foram construídos apenas como meios de defesa, incutir-lhes um pouco de espírito guerreiro e militar. Mas tudo isto só é possível se efectivamente experimentarem o poder de lutar, ou a esperança de fugir das ameaças. Ainda que esse poder e essa esperança não passem disso. É o mínimo que se pode fazer pelos jovens, em particular, e pelos humanos, em geral. É fundamental que nunca se sintam encurralados, ou que, sentindo-o, tenham a esperança de que o seu sistema de defesa vai funcionar, ou que, por exemplo, não estão sós.
O senhor ministro da educação justifica estas "modernidades" digitais, introduzidas no processo de realização e avaliação das provas de aferição, com o argumento principal de que ficam muito mais baratas do que do que quando se usam métodos arcaicos na preparação e concretização das mesmas. Dantes, só para as transportar fisicamente de um lado para outro, sempre rodeadas das das mais apertadas medidas de segurança, já implicava um trabalho intenso de muitas pessoas e o dispêndio financeiro de montantes não despiciendos. Acresce que, na minha opinião, que não é a do anónimo implicativo que anda por aí, as provas de aferição, analógicas ou digitais, não são mais do que um sucedâneo, saturado de açúcar patogénico por vários agentes da deseducação, dos verdadeiros exames nacionais que serviam para classificar, avaliar e aferir os examinandos: quem sabia, progredia; quem não sabia, repetia, e assim tinha de aprender.
Agora, com o comunismo instalado, de pedra e cal, no sistema educativo em Portugal, acabaram as repetições!
Eu para fazer o exame da quarta classe do ensino primário tive de me deslocar, a expensas de meus pais, a uma escola da sede do concelho, para o que tive de atravessar um rio, onde um júri composto por especialistas em monodocência, na terminologia dos cientistas da educação atuais, aferiu muito positivamente as minhas provas, conforme a classificação do diploma que me abriu os portões do palacete adaptado a escola do ciclo preparatório. Agora, leio as palavras do anónimo anterior e só me apetece gritar que as provas de aferição são uma grande palhaçada. Quem me quer acompanhar?
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