quarta-feira, 3 de maio de 2023

CAPITALISMO, DEMOCRACIA E (NOVA) TECNOLOGIA: A NECESSIDADE DE UM (RE)EQUILÍBRIO

Tive conhecimento de Michael Sandel há pouco tempo, através do seu muito divulgado livro "A tirania do mérito: O que aconteceu ao bem comum?", publicado em 2020. Li-o com o maior interesse e a partir dele escrevi um texto focado na educação (aqui).

No final do mês passado, a convite da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o filósofo americano, professor em Harvard, fez uma conferência na Fundação Calouste Gulbenkian. Deu entrevistas à televisão e a jornais. Destaco a que saiu no Expresso na qual apresenta ideias que vão além das que apresenta na obra, sendo, porém, compatível com ela.
Reafirma que uma sociedade baseada no mérito é injusta e está condenada ao fracasso. A esta ideia pouco comum junta outra da mesma ordem: imputa aos partidos do centro-esquerda e centro-direita terem "abraçado" a "versão neoliberal da globalização do mercado que gerou ganhos para quem está no topo. Em vez de contestarem tal versão, consolidaram a "era do fundamentalismo de mercado"; "moderaram e suavizaram, até certo ponto, as arestas duras da fé do mercado".

Dessa estratégia faz parte o conselho aos trabalhadores: “'Se querem competir e vencer na economia global, vão para a universidade. O que ganharem vai depender daquilo que aprenderem'. (...) Na verdade, o que lhes estavam a oferecer era mobilidade individual ascendente através do ensino superior. 'Se não tem um diploma universitário e se está a lutar na nova economia, o seu fracasso é culpa sua'. Essa é a conclusão do argumento". 

"A instigação ao individualismo é, como se percebe, uma ameaça à democracia. Se queremos preservar a democracia não podemos deixar, como sociedade, que o poder económico a domine. "Isso está a tornar-se cada vez mais importante numa era de tecnologia, quando empresas tecnológicas muito grandes e poderosas não só estão a dominar a economia, como cada vez mais dominam os modos de comunicação e de troca de informações. E estão, portanto, a dominar os termos do discurso público. 

Então, hoje um dos desafios na regulação ou reintegração do capitalismo e dos mercados é descobrir e debater democraticamente como regular a indústria da tecnologia. Especialmente as vastas e poderosas empresas de media que fornecem as plataformas, para o bem e para o mal (muitas vezes para o pior), do discurso público (...) temos de conceber instituições e regulamentação política para evitar, neste caso, que as poderosas empresas tecnológicas violem a nossa privacidade, mas também distorçam o debate público no discurso público."

"Capitalismo e democracia há muito que convivem numa certa tensão. E nas últimas quatro ou cinco décadas o equilíbrio entre os dois mudou, a favor do capitalismo e do poder económico em larga escala. Especialmente nas finanças e na tecnologia (...) precisamos de reequilibrar os termos, de repensar a relação entre capitalismo e democracia." 

"Eu distinguiria entre otimismo e esperança. É difícil ser otimista (...) Mas ao mesmo tempo tenho esperança. E a base dessa esperança está no facto de que, quando viajo e falo com os jovens, encontro uma fome de um melhor tipo de discurso público. O tipo de discurso público que não consiste em acender fósforos ou na polarização partidária, que cultiva a arte de ouvir, pensando juntos sobre as grandes questões públicas que importam. Isso dá-me esperança".

2 comentários:

Anónimo disse...

Ora deificamos a ascensão social, ora diabolizamos o darwinismo social: uma no cravo e outra na ferradura. (Não retruquem que é por alguém não estar quieto com o pé.)

Carlos Ricardo Soares disse...

Não reconheço qualquer vantagem nesse tipo de discurso, alarmista, vago, pistoleiro, a disparar para todos os lados, pessimista, sem esperança, apesar de afirmar o contrário, de impotência e catastrofista, apesar de se acomodar e de se prevenir com as cautelas e caldos de galinha do bom senso pedagógico e pacificador, que é sempre recomendável e, se bem não faz, mal também não.
A maior parte dos problemas de cariz político, económico e social, não são problemas para toda a gente e esse começa logo por ser talvez o maior problema, porque dificulta imenso, quer a abordagem e o reconhecimento dos problemas, quer as tentativas de os resolver. Do ponto de vista de um comentador, de um filósofo, de um sociólogo, o reconhecimento desses problemas como problemas objetivos, pouco ou nada adianta se ficar por generalidades, ou ideias ainda mais gerais sobre essas generalidades.
As coisas funcionam do modo como funcionam, porque as condições para isso estão criadas. Enquanto essas condições se mantiverem continuarão a funcionar. E não é por não gostarmos, ou não estarmos de acordo com essas realidades que elas passarão a ser outras, embora os descontentamentos, as manifestações, as oposições, as revoltas, as lutas, sejam germe e efeito de mudanças, que poderão ser de ruptura.
Normalmente as sociedades realizam algum equilíbrio entre "predadores" e "presas", como acontece na selva desintervencionada pelo homem. A nossa cultura é um desenvolvimento e aprofundamento desta relação "comercial" relativamente a mercadorias, sendo que o outro também entra nesta categoria de valores mercantis. Tudo estaria bem, em meu entender, como na selva, se todos pudessem ser predadores, tirar proveito, vigarizar, extorquir, ganhar, como o fazem as empresas que, nitidamente, nos sacam o dinheiro através dos mais sofisticados esquemas. Eu concordaria com esta alta e refinada cultura, em que as maiores inteligências investem desde sempre, se estivesse em situação ou posição de lhes fazer o mesmo. Isso seria a selva e seria bom. Mas estamos nos antípodas da selva e do mérito. O problema não é a sociedade baseada no mérito, é a sociedade não ter interesse no mérito, porque só interessa o resultado. Para se alcançar este também é preciso mérito, mas é um tipo de mérito de que ninguém tem coragem de se vangloriar, apesar de quase todos nós invejarem quem o tem: não é fazer batota, é fazer batota por algo que valha a pena sem ser apanhado. Existe uma ética clara em toda esta situação, só que imensa gente é doutrinada e educada para aqueles méritos que, na realidade, não lhes interessam, embora sejam preciosos para sustentarem o mérito dos que atingem os resultados. Posso ter o mérito de me preocupar com as questões éticas, de justiça social, de democracia, igualdade, mas não tenho o mérito de ser banqueiro que arrecada vantagens das suas habilidades, e muito trabalho, de estar em situação de deixar as questões éticas para o poder político e judicial, porque a ele talvez importe apenas gerir a realidade como ela se lhe apresenta: o dinheiro permite obter (não confundir com fazer) mais coisas do que qualquer outra coisa. Talvez um dia o dinheiro acabe e acabe a economia baseada no dinheiro. Admito que muitas das distorções da sociedade desapareceriam como por magia.

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...