quinta-feira, 23 de junho de 2022

AMOR CÃO

 


Meu texto no último As Artes entre as Letras:

Amor Cão e outras palavras que não adestram é o último livro de poesia de Rosa Alice Branco (n. 1950, em Aveiro), vindo juntar-se a cerca de uma dúzia de outros livros do mesmo género literário. Já o primeiro (Animais da Terra, Limiar, 1988) falava de animais. Mas outros se seguiram na mesma linha: Da Alma e dos Espíritos Animais (Campo das Letras, 2001) – «espíritos animais» é a expressão de John Maynard Keynes para designar as emoções que influenciam as nossas decisões espontâneas –,  Animal Volátil (Afrontamento, 2005, com Casimiro de Brito), e, o título mais original, o Gado do Senhor (&etc), que foi não só traduzido para inglês como recomendado pela Chicago Review of Books em Dezembro de 2016 como «um dos dez melhores livros desse mês». A poesia de Rosa Branco, que entrou no excelente catálogo da Assírio & Alvim com Traçar um Nome no Coração do Branco (2018), encontra-se, em parte,  reunida na obra Soletrar do Dia: Obra poética (Quási, 2002).

De onde vem o interesse da autora não só pelos animais, mas também por aquilo – e tanto é! – que há de animal em nós? Tem a ver, julgo eu, com a sua formação científica e o seu interesse pelo tema da percepção na Filosofia. Rosa Branco fez o curso de Farmácia na Universidade do Porto, para satisfazer a vontade do pai, o artista plástico e cineasta Vasco Branco, activo nos círculos de oposição ao Estado Novo no centro do país, que se tinha também formado em farmácia. Depois doutorou-se em Filosofia Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa, precisamente sobre o problema da percepção, orientada pelo saudoso Fernando Gil. A perceção humana  está carregada de herança biológica. A autora fala dos animais para falar do humano, a parte do mundo que afinal mais nos interessa. A poeta, que ensina teoria da percepção na Escola Superior de Artes e Design do Porto, fala-nos em Amor Cão, com invulgar capacidade lírica, das percepções canina e humana. Somos, em muitos aspectos, semelhantes aos nossos «melhores amigos».

O livro é composto por 44 poemas todos eles iniciados por uma epigrafe do médico e etologista austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), Prémio Nobel da Medicina em 1973,  autor, entre outros livros traduzidos entre nós,  de E o Homem Encontrou o Cão (Relógio de Agua 1987). O cão (Canis lupus familiaris) é o mais antigo animal domesticado pelo homem, a partir do lobo (Canis lupus), ainda antes da Revolução Neolítica, há 10 000 anos, quando o homem se sedentarizou, iniciou a agricultura e começou a domesticar outros animais. O cão é, para muitos zoólogos, uma subespécie do lobo e não uma espécie distinta. Foi longo e complexo o processo de cruzamento de espécies e de adaptação ao meio que tornou possível a presença de um lobo em nossa casa.  

Todos os poemas são glosas de frases seleccionadas do referido Nobel, que remetem para a nossa história natural e para a nossa relação com os canídeos. O poema 44 explica: «(…) Se Lorenz dá sentido aos sons/ que imitam o verso, é porque o sigo como cão lupino, / predador e animal vagabundo a uivar à sua porta/ o acolhimento feroz da escrita (…)» Sobre o comportamento canino já muito antes de Lorenz o povo exprimia em provérbios a sua sabedoria (por exemplo, «Cão que ladra, não morde») e aplicava-a aos humanos. Boa observadora do comportamento de canídeos e humanos, Rosa Branco discorre em tom filosófico sobre as alegrias e as tristezas de uns e de outros. De vez em quando deparamos com vocabulário científico: «decifrar as leis que regem ao astros e os seres/ é o mesmo astronómico desafio (…)» (poema 3) ou «Talvez ela [a mãe] suspeite que o ADN da criança/ tenha os dentes sujos do animal/ cravados no escuro do coração» (poema 7). As metáforas animais para descrever a vida humana estão omnipresentes, por exemplo: «(…) A verdade é que a fome/ dos lobos é igual a da tribo que caminha sem termo, pequena alcateia de homens uivando por carne» (poema 8). Sabemos hoje que o nosso paralelismo com o mundo animal é mais do que metafórico. Já Antero de Quental no seu soneto «Evolução» tinha percebido a teoria darwiniana ao escrever: «Rugi, fera talvez, buscando abrigo/ Na caverna que ensombra urze e giesta.» Temos dentro de nós toda a nossa história animal.

É assaz interessante, como nota Lorentz na epígrafe do poema 26, que a palavra «cadela» tenha uma conotação tão negativa na língua portuguesa. Mas cães e cadelas dão-nos muitas recompensas, designadamente o ladrar intenso quando vêem os donos. Aposto que a autora também tem um ou mais cães em casa, pois só essa circunstância  lhe permite falar da percepção canina com tanta fidelidade (para usar uma palavra normalmente associada a cães) como o faz. Como ilustração, o poema 18 mostra como um cão sabe esperar pelos donos até que eles regressem: «(…) O cão espera/ como se espera a vida, ensaia coreografia da chegada,/ colado à porta em passos elegantes para nada.» O livro fala das violências canina e humana: por exemplo, no poema 11, no qual um homem primitivo seduz um chacal dando-lhe carne  fresca (o poema  conclui: «um marido irado é só doméstico na violência.») ou no poema 22, que fala de um ataque de um pitbull, mortal para vítima e para o cão, que foi abatido por «instância dos vizinhos (comenta o dono, no fim: «Devia era ter abatido os vizinhos»), ou, ainda, no poema 26,  que retrata um crime doméstico em que a mulher é assistida pelo seu cão («A Lady/ arrebita as orelhas e lambe a mulher, cheia de solidariedade/ cúmplice. Afinal a dona é canina camo ela»).

Encerro com um excerto do  poema 15, sobre a coreografia do reencontro entre donos e cães, que espero convide a ler o livro: «Depois de um tempo fora,/ o dono regressa como pura luz no horizonte,/ exaltação do big-bang na alegria esfusiante da cadela/ em loucas correrias e carinhos. Antes da viagem/ já lhe farejava a partida espiava as malas,/ não saía do dono nem comia, e a respiração arquejante/ deixava adivinhar a neurose que a consumia./ Quando por fim chegou/ um uivo desmedido atingiu-o no peito/ e logo a cadela saltava de alegria em torno das pernas,/ aconchegada nos braços estendidos.» Raramente a relação entre cães e homens foi, entre nós, tão bem tratada na arte poética. Eu tenho duas cadelas (mãe e filha, esta de pai incógnito). Sempre me tendo dado bem com a mãe, mas fiquei um dia muito zangado com a filha por ela, em pequena, me ter roído alguns livros valiosos. Cresceu, deixando de me destruir livros,  e já lhe perdoei.  Depois de ler Amor Cão fiz-lhe umas festas e ela gostou tanto como eu.

 

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...