quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Saudades de Antunes da Silva

Novo texto de João Boavida. 

Há algum tempo, um artigo de Eugénio Lisboa, publicado aqui, no De Rerum Natura, lembrou-nos, entre vários nascidos em 1921, Antunes da Silva. Foi a propósito dos trabalhos que já terão começado para uma homenagem nacional, em 2022, a José Saramago – o nosso único escritor laureado com o Prémio Nobel. Eugénio Lisboa disse que era muito provinciano este afã para o qual o país já se preparava.

Estou de acordo. Não que Saramago não tenha uma obra digna do Prémio Nobel, que a tem, mas não exageremos, porque nem todos os laureados com este prémio o mereciam, enquanto muitos outros, que de facto tinham obra para isso, nunca o receberam. 

Também não digo que não seja motivo de orgulho nacional, mas o facto de termos só um – mais até, de a língua portuguesa ter só um laureado com o Nobel – mostra a pouca importância que nos dão e a pouca consideração em que nos têm. Mas também isso não nos devia incomodar muito, vivemos demasiado dependentes das opiniões dos estrangeiros, o que é um pouco deprimente, e há coisas que nos deviam preocupar mais. Agora, temo que atravesse o país aquela febre muito nossa de querermos todos, e em todo o lado, homenagear Saramago.

Além de provinciano parece-me sobretudo o efeito de uma cultura de aparências e de superficialidades, que os meios de comunicação social propagam e que levam atrás os que temem sempre ficar de fora, engrossando assim uma espécie de bola de neve que vai aumentando, arrastando tudo atrás e deixando um rasto de lama onde todos os outros desaparecem, como se nunca tivessem existido.

Por isso acho que Eugénio Lisboa, como já disse aqui num comentário, é “refrescante”, porque desanuvia o ambiente que, em Portugal, tende sempre a ficar carregado pelo excesso que a psicologia de rebanho provoca numa maioria que não tem consciência do ridículo em que cai mas que, sobretudo na comunicação social, e agora nas redes, é especialista a fazer opiniões e a desgastar palavras.

Ora, ninguém, que eu visse ou ouvisse, falou nos vários nomes que fariam cem anos em 2021, o que soa a injusto. É claro que nenhum ganhou o Nobel, mas convém não colocar todas as fichas no mesmo número, porque temos muito mais que um Nobel e, apesar de importante, não é garantia segura. 

Ninguém os assinalou porque já poucos se lembram deles, e ninguém os recorda, porque, lá está, vive-se numa cultura de aparências e badalações em cadeia com tendência a crescer num só sentido visto ninguém querer ficar de fora do bruaá. 

Entre esses escritores Eugénio Lisboa referiu Antunes da Silva, o que me deu saudades e me obrigou a ir busca-lo à prateleira. Lutador antifascista e com alguma atividade política depois do 25 de Abril, é como escritor alentejano que merece ser lembrado. Podemos chamar-lhe um neorrealista da 2ª fase e escreveu sobretudo contos (Gaimirra, 1946, Vila Adormecida,1948, Sam Jacinto, 1950, O aprendiz de ladrão, 1954, O Amigo das tempestades, 1958, Terra do nosso pão, 1964, Exilado e outros contos, 1973), mas também dois romances: Suão, 1960, e A fábrica 1976, poesia e ainda crónicas, memórias, artigos em jornais e revistas (Sol Nascente, Diabo, Vértice, etc.). 

Reler agora algumas das suas páginas foi para mim um prazer. Antunes da Silva tem uma prosa muito espontânea, algo repentista, ou dá essa ideia, pois parece correr atrás das emoções, dos diálogos e das memórias atropelado pelas palavras e enredando-se nelas.

É uma prosa rica, colorida e indomável, mas domada, inebriada pela paisagem alentejana, pela doçura da natureza, pela infinidade de cambiantes nas cores, nos cheiros, nos ruídos, nas aragens e nas canículas dos plainos alentejanos. E, claro, não podia deixar de ser, do vento suão (o tal que «enche o sono de pavores / faz febre, esfarela os ossos / e atira aos desesperados / a corda com que se enforcam / na trave de algum desvão», com diz José Régio na sua “Toada de Portalegre”). É uma prosa rápida, mas cuja rapidez, de algum modo, ele parece acompanhar com certa dificuldade porque quer dar conta de tudo, com cambiantes, modulações, imagens e metáforas por vezes violentes, sobretudo inesperadas, mas quase sempre bem apanhadas e expressivas. É uma prosa que vai ao fundo do falar alentejano, mas sem excessos nem exibicionismos. Com grande naturalidade os diálogos entram e saem da narrativa na medida certa, com o regionalismo adequado e o léxico específico. E sempre ágil, envolvente, só travada por um certo barroquismo que parece ser o reflexo do seu espírito truculento, inspirado, sensível e observador.

As descrições têm quase sempre uma sonoridade telúrica, se posso assim dizer, e certas sínteses descritivas (passe a contradição) sugerem algo de bíblico porque a palavra às vezes encontrada remata com chave de oiro toda a construção frásica que dir-se-ia a vem preparando. Ilustra muitas vezes as descrições com coloquialidades e interjeições, onomatopeias muito a propósito, e que dão colorido e velocidade às frases. Afeiçoa, por vezes, a ortografia aos falares do Alentejo, dando graça às descrições e melhor as inserindo num modo de ser e de estar alentejano, que cativa e apraz ler.

Apesar de sempre ao lado dos trabalhadores braçais do Alentejo, sensível à sua condição de explorados e “humilhados e ofendidos” Antunes da Silva não fazia das suas obras catecismos revolucionários. Os sinais, os casos, os episódios vinham naturalmente trazidos pelos enredos e subordinados à dinâmica do que estava contando.

Ora isto só reforça a sua qualidade. Apesar de um pouco datadas – o Alentejo dos anos 50 do século passado não é o de hoje – a sua obra é estimulante, frequentemente entusiasmada e entusiasmante, alimentada por e alimentando um Portugal do sul, profundo, vasto, e cheio de densidade humana.

Nos tempos que correm ser regionalista não será muito bem visto, desconfio eu, mas lembrem-se que Aquilino era um escritor regionalista, e o mesmo se pode dizer de Camilo e de Tomaz de Figueiredo, e portanto, deixem-se de coisas muito in mas de pouca substância. Se puderem, leiam ou releiam Antunes da Silva porque vale a pena. Faria em 2021 cem anos.

João Boavida

1 comentário:

Ildefonso Dias disse...

Este “post” do Professor João Boavida trouxe-me à memória as palavras de um outro grande Escritor que foi Manuel Mendes, nascido em 1906.
No Documentário Manuel Mendes: O melhor de Todos Nos, que está nos Arquivos RTP, transcrevo as palavras que Manuel Mendes escreveu no seu Diário pouco antes da morte o alcançar.

«Temos vivido os mais espantosos anos de humilhação e desprezo, de arrogância e arbítrio, de presumida bazofiante, ignara petulância que imaginar se pode, sinto que, do meu bando, da casta a que pertenço, nada ou muito pouco temos a ver com os destinos da terra que nos viu nascer, pertencemos ao povo, aqueles a quem não cabe um lugar ao sol, persistimos na mesma miséria, - a do pão e a do espírito.»

José Saramago é um dos mais destacados escritores combatentes dessa miséria.

Aquilo que o Professor João Boavida mostra neste texto, - ao homenagear um escritor que aprecia - é ainda, creio bem, a miséria do pão e do espírito em que vivemos e nos condena.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...