quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

"Voo livre sobre a escola"

Amigo, licenciado e mestre em Física, com cinquenta anos feitos, concorreu pela primeira vez ao sistema educativo público. Ficou colocado numa escola a muitos quilómetros de casa, mas encarou isso como um compreensível "osso do ofício". Vindo de um Centro Ciência Viva, com larga experiência no acompanhamento de grupos de variadíssima natureza e dimensão, pensou estar preparado para fazer acontecer nas suas aulas o normal: criar entusiasmo, ensinar e os alunos (enfim, a maioria deles) aprenderem com gosto. Enganou-se! 

O seu relato, em conversa informal, é ipsis verbis o que Carlos Grosso, professor de Matemática faz numa crónica com o título Voo livre sobre a escola, saída no Observador de dia 27 de Dezembro. Com a devida vénia, transcrevemo-la para aqui com pequenos cortes. Atente o leitor em cada frase e no todo: encontrará explicitadas múltiplas vertentes de um dos mais graves e sufocantes problemas que nos toca como sociedade global. Por razões insondáveis, ainda não o percebemos como tal e, na inconsciência, vamos andando...
Maria Helena Damião e Isaltina Martins

"... Relato-vos algumas partes interessantes e inesperadas do que vi nestes últimos anos.
Vi montanhas de despachos burocratas a submergir os professores em papeladas inúteis. 
Vi professores desesperados a trabalhar dez horas por dia para preencherem todos os requisitos de papeladas inúteis. 
Vi alunos que todos os dias chegam à escola quinze minutos depois da hora, o que a tolerância extremamente flexível continua a permitir. 
Vi alunos no recreio, sentados de livre vontade, agarrados a um aparelhómetro vagamente paralelepipédico, sem interagirem, sem brincarem. Não era castigo imposto por outrem, mas sim moléstia infligida por gigantes tecnológicos. 
Vi professores com idades obscenas, de rastos, de cabelos brancos, de muletas, a sofrerem com uma paciência esgotada e uma incapacidade agonizante em compreender o adiamento da reforma e a indisciplina. 
Vi professores aflitos por não conseguirem dar uma ajuda no acompanhamento dos filhos dos filhos, sofrendo pelos filhos e pelos netos que raramente têm a possibilidade de passar uns dias com a sabedoria longa dos avós. 
Vi alunos que, em todas as aulas, conversam uns com os outros, mais até do que fazem no recreio, onde não há restrições ao uso do aparelhómetro vagamente paralelepipédico, que falam nas aulas sem autorização e ao mesmo tempo que o professor. 
Vi alunos extremamente interessados nos estudos e na aprendizagem dos conhecimentos escolares a serem constantemente incomodados pelo ruído de colegas e a exigirem ordem na sala de aula. 
E diz o Parol.edu.conça: esses alunos são retrógrados, são alunos da escola do antigamente, da escola dos avós e dos bisavós. Os professores têm de prepará-los para a escola do século XXI. O Parol.edu.conça é uma personagem que vive fora da escola, mas que tem uma enorme influência nela. O Parol.edu.conça gosta de ler livros sobre Teoria da Educação, gosta de escrever sobre teoria do ensino, mas não gosta de ter sete turmas, não gosta de aturar diariamente duzentos alunos, não gosta de ter centenas de fichas de trabalho para corrigir, centenas de testes para avaliar e catadupas de sínteses descritivas para encher dossiers que não passam de uma praga ecológica. 
Vi professores sem tempo para refletir, sem tempo para passar um fim de semana descansado sem trabalho escolar, sem tempo para ler um livro, assistir a uma exposição, brincar com os filhos, como se Ser Professor fosse embalar pacotes de farinha ou construir tijolos ou vender gelados. Quem se dedica a esta tarefa sabe que tem hora de abrir e hora de fechar a loja bem definidas, sem preocupação com os gelados sobrantes que hão de ser vendidos no dia seguinte, sem necessidade de levar gelados para vender em casa, depois do jantar. 
O professor não é uma marioneta industrializada. O professor é um condutor de crianças e jovens, é um pedagogo. Precisa de tempo e de espaço para refletir sobre os melhores percursos educativos, sobre a arte de ensinar. O professor não está formado quando termina o respetivo curso. Grandiosa parte da formação docente é conseguida no desempenho da profissão. O professor precisa de continuar a formar-se durante muitos anos. Para isso, o professor tem de ter tempo, tempo para além das muitas aulas, para além das muitas atividades não letivas, para além dos muitos trabalhos de casa. O professor precisa de tempo para a sua vida e para se orgulhar de ser professor. Os professores precisam de tempo para partilharem algumas boas práticas pedagógicas. As reuniões para que são convocados versam esmagadoramente sobre “eduquices” e não sobre partilha de conhecimentos científicos. 
Vi professores empenhados em longas reuniões a discutir os parâmetros mais adequados para avaliar as atitudes e qual o “peso”, qual o coeficiente que devem ter na média ponderada da avaliação escolar. Contendo afincadamente o mal-estar que me provoca estar a relatar-vos alguns pormenores destas discussões, aqui vai: É a assiduidade? (2%) É a pontualidade? (2%) É o respeito pelas orientações do professor? (3%) É o respeito pelas intervenções dos colegas? (2%) É a autonomia na realização das tarefas? (2%) É a participação de forma crítica, reflexiva e com profundidade? (4%) É demonstrar vontade em melhorar as suas competências (emocionais, cognitivas, motoras e sociais)? (4%) É o respeito pelas regras da sala de aula? (2%) É a capacidade para trabalhar em grupo? (1%) É trazer os materiais escolares limpos e organizados? (1%) É aspirar ao trabalho bem feito, ao rigor e à superação? (4%) É respeitar a diversidade e agir de acordo com os princípios dos direitos humanos? (4%) É revelar autonomia pessoal centrada nos direitos humanos, democracia, cidadania, equidade, respeito mútuo, livre escolha e bem comum? (6%) É realizar as tarefas no tempo estipulado? (1%) É cumprir com as regras de interação social e de civismo? (2%) É respeitar as regras institucionais que permitem atuar em segurança, adotando comportamentos que promovem a saúde e o bem-estar, nas suas relações na sala/escola (cumprimento do regulamento interno e uso de máscaras, higienização das mãos e distanciamento social)? (4%) É tudo isto e mais alguma coisa? (100%) 
E diz o Parol.edu.conça: É primordial discutir e definir o peso de cada indicador. Só após essa definição será possível inserir nas folhas de cálculo Excel a fórmula de cálculo das médias, para a avaliação final. 
Como já se disse, por regra o Parol.edu.conça não trabalha na escola. Quando, raramente, isso acontece, o Parol.edu.conça não percebe bem o que é isso de inserir fórmulas em folhas de cálculo, mas di-lo com tanta eloquência que é capaz de convencer alguns dos mais novos ou alguns dos mais distraídos, mas poucos. Porém, todos estão sujeitos às ordens de Parol.edu.conça. 
– Caros colegas, a reunião já dura há três horas, estamos todos muito cansados e o meu filho está na escola à minha espera, pelo que proponho que a reunião continue na próxima quarta-feira – diz o professor Miguel. 
A ninguém convinha mais uma reunião na próxima quarta-feira, mas também percebem que já não há disposição nem capacidade para continuar a discussão. Aceitam. A professora Carolina já tem uma consulta marcada para a próxima quarta-feira, mas vai tentar desmarcar para poder estar presente. O professor Francisco abomina estas discussões (discretamente chama-lhes “palhaçadas”) e está mais interessado em gastar tempo na organização das suas aulas, mas não gosta de faltar a reuniões para as quais foi superiormente convocado. 
Vi alunos que, nos testes de avaliação de conhecimentos, obtiveram média de 15 valores a Economia, mas cuja avaliação final foi de 14 valores, por baixa avaliação nas atitudes. Ou seja, o aluno que revelou conhecer certas partes dos conteúdos, deixou imediatamente de os saber por atitudes que não foram apreciadas pelo professor. 
Vi alunos que, nos testes de avaliação e aplicação de conhecimentos, obtiveram média de 13 valores a História, mas cuja avaliação final foi de 15 valores, por altíssima avaliação nas atitudes. Ou seja, terão existido alguns conhecimentos que não estavam adquiridos, mas que foram magicamente incorporados pela excelente atitude. 
A escola ajuda a formar atitudes? Obviamente. A escola ajuda a melhorar algumas atitudes? Certamente. A alteração das atitudes tem, frequentemente, reflexo nas aprendizagens? Seguramente. Mas, para além do reflexo nas aprendizagens que foi sendo demonstrado nos diversos instrumentos de avaliação escolar, o conhecimento do aluno sobre determinadas matérias não aumenta nem diminui porque o professor avalia as suas atitudes. As atitudes formam-se, valorizam-se, adequam-se, mas não se medem numericamente! 
Vi alunos que querem aprender o máximo possível. 
Vi professores que não querem saber das aprendizagens essenciais e que querem ensinar o máximo aos seus alunos. 
Vi alunos que não têm qualquer interesse nas aprendizagens escolares. 
Diz o Parol.edu.conça: se não querem saber, a responsabilidade é do professor, que não soube motivar o aluno, que não fez o pino na aula, que não trouxe para a aula fogo de artificio. 
Vi professores que não se preocupam em ensinar, nem se os alunos aprendem ou não, e que os deixam fazer o que lhes apetecer. 
Vi alunos a chamarem “filho da p**a” ao professor ou a acariciá-lo com um “vai pró ca**lho” e cuja reação dos pais, ao receberem a notificação, foi: «Se ele fez isso, é porque o professor lhe fez alguma!» 
Vi professores a fingirem que não viram o aluno levantar-lhe o dedo do meio, para não se sujeitarem ao infindo processo de averiguações sobre a veracidade dos factos relatados na eventual participação de ocorrência. 
Vi professores a ficarem doentes e arrastarem-se até à baixa médica por exaustão. 
Vi salas de professores quase sempre vazias e sem convívio. 
Vi o Ministério da Educação a desvalorizar as avaliações externas. 
Vi demasiados alunos a serem sujeitos a RTP. Não, não se trata da estação televisiva, mas dos espetaculares Relatórios Técnico-Pedagógicos. 
Vi professores a terem de pedir silêncio na sala de aula, diariamente. 
– Isso são professores que não acompanham os tempos. São professores que não compreendem os jovens, que não estimulam uma geração tecnológica que está altamente preparada para multitasking, diz o Parol.edu.conça. Como se a disponibilidade de equipamentos tecnológicos fosse capaz de alterar o cérebro humano e as sinapses produzidas. As características do cérebro humano são as mesmas dos avós e dos bisavós. 
Vi professores a serem apanhados pela pandemia e a revelarem altíssima capacidade de adaptação no ensino a distância. 
Vi alunos durante meses em casa, sem computador e sem comunicação com a escola. 
Vi alunos de pijama, deitados no sofá, esticados à beira da piscina, a assistirem às aulas no respetivo aparelhómetro vagamente paralelepipédico. 
Vi professores que passaram um ano letivo completo sem conhecerem a cara dos respetivos alunos e alunos que passaram um ano letivo completo sem conhecerem a cara dos respetivos professores. 
Vi professores que lecionavam a distância sem ligar a câmara de vídeo, escudando-se na proteção de dados. 
Vi alunos sem alguns professores durante meses. 
Vi concursos de recrutamento de professores sem nenhum concorrente. 
Vi professores a chamar «burros» aos alunos. 
Vi professores obrigados a uma deslocação de centenas de quilómetros da sua habitação, a alugarem uma casa mais próxima da escola onde foram colocados e a sujeitarem-se a um rendimento líquido inferior ao salário mínimo, apenas para ganhar tempo de serviço e mais algumas décimas na graduação. 
Vi professores com onze turmas. 
Vi professores que deixaram a profissão e muitos outros que andam ansiosos por encontrar alternativa para o fazerem. 
Vi alunos a apreciarem extremamente as aulas, a aprenderem imenso com os seus professores e a atingirem quadros de mérito e de excelência. 
Vi encarregados de educação a atribuírem enorme valor à capacidade dos professores dos seus educandos em ensinar conhecimentos escolares e em adequar comportamentos. 
Vi professores ainda entusiasmados com a profissão. 
Custa-me revelar-vos que é com pouca esperança e com um doce-amargo de fel que vos relato o que vi."

1 comentário:

Anónimo disse...

A leitura da rigorosa descrição de Carlos Grosso do colapso do sistema educativo português que, enquanto professor do ensino secundário, testemunho e sofro diariamente também não ficaria mal intitulada com "VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS", do título do filme de Milos Forman.
Para trazer aqui um cheirinho da atualidade noticiosa, diria que esvaziadas que estão de sentido, tanto na forma quanto no conteúdo, as chamadas disciplinas de ensino/ aprendizagem retrógrados, e assumindo como verdade absoluta que as escolas EB 1,2,3+S, com uma população de professores e alunos altamente disciplinados e cumpridores exímios de regras sanitárias, são os lugares mais seguros do mundo para evitar a propagação de doenças altamente contagiosas, junto a minha voz aqueles que defendem uma solução radical para acabar de vez com a COVID:
TESTAR! TESTAR! TESTAR!

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