quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

JOÃO PAULO COTRIM (1965-2021): IN MEMORIAM

 


Minha homenagem a João Paulo Cotrim, hoje no I:

Sabia desde há poucos dias que estava muito doente, mas custa-me a acreditar: o meu querido amigo João Paulo Cotrim (1965-2021), o editor da Abysmo, já não está entre nós. Foi jornalista, director da Bedeteca de Lisboa (que fundou, tendo-a dirigido de 1996 a 2002), especialista em banda desenhada e em ilustração, curador de exposições, poeta, prosador para várias idades, guionista  de filmes de animação, etc. Era um faz-tudo e tudo fazia sempre com grande entusiasmo.

O editor gostava sobretudo de promover talentos, juntando como ninguém, bons textos com boas imagens. Julgo que foi nessa actividade que ele se realizou mais. A Abysmo (com y, como Teixeira de Pascoaes gostava, pois Abismo não dá a devida ideia de profundidade) era uma das mais originais chancelas nacionais, como há pouco referi no programa Original é a Cultura, que partilho na SIC com a Cristina Ovídio, a Dulce Maria Cardoso e o Rui Vieira Nery. Quando eu ia ao Chiado, gostava sempre de passar pela Abysmo, um pequeno mas simpático espaço na Rua da Horta Seca, em frente ao Ministério da Economia, onde de vez em quando havia exposições de artes plásticas ou banda desenhada. Comprava lá sempre uma meia dúzia de livros, com o desconto que ele sempre fazia. Os livros da sua autoria eram-me oferecidos com dedicatória, julgo que o mais recente me foi entregue na última feira do Livro de Lisboa, onde ele atendia na barraca da Abysmo.

Os últimos tempos de pandemia dificultavam o reencontro, mas antes de o vírus nos obrigar a confinar era costume irmos almoçar no restaurante ao lado da editora apenas para, diante de um prato e de um copo, pôr a conversa em dia. Foi ele que me apresentou alguns autores da Abysmo com os quais colaborei como o Luís Carmelo, o autor e professor de escrita criativa, e o Gonçalo Waddington, o actor, dramaturgo e realizador. Outros autores que ele editou ao longo dos dez anos da editora foram, por ordem alfabética do primeiro nome, Fernanda Botelho, Filipa Leal, Hélder Macedo, Inês Fonseca Santos, Luís Cardoso (o escritor timorense que foi o mais recente premiado com o Prémio Oceanos, pela sua obra O Plantador de Abóboras, Abysmo, 2021), Paulo Miranda, Sérgio Godinho, Valério Romão, etc. (os outros que me desculpem!). A estes nomes acrescem os desenhadores André Carrilho, António Jorge Gonçalves, Jorge Silva, Luís Afonso, Nuno Saraiva, Tóssan (o grande gráfico, autor do original Cão pêndio, Portugália, 1959), etc. Editou também alguns clássicos como, por ordem cronológica, Aristóteles, Píndaro, Antero de Quental e George Trakl. As capas primam pela surpresa, variando muito de título para título. O editor adverte numa mensagem antes do seu abismal catálogo na Internet, que «mesmo os esgotados não se esgotaram», lembrando-nos que, quando os livros são bem escolhidos e produzidos, ficam intemporais.

Mas, para além de editor, o João Paulo era autor. Em lugar especial na minha estante tenho a magnífica série de biografias de grandes desenhadores portugueses, com excelente design, que escreveu para a Assírio & Alvim: Rafael Bordalo Pinheiro (2005), Stuart: a rua e o riso (2006), André Carrilho: o rosto do alpinista (2007), João Abel Manta: caprichos e desastres (2008) e Cid (2010). Espero que ninguém se sinta desconsiderado se eu disser que, destes todos, o meu desenhador preferido é o João Abel Manta.

Escreveu argumentos de banda desenhadas, um género que sempre apreciei. Destaco: Salazar: agora, na hora da sua morte, com ilustrações de Miguel Rocha (Parceria António Maria Pereira, 2006). Escreveu poesia como Má Raça. 22 canções, com ilustrações de Alex Gozblau (Abysmo, 2012). Escreveu histórias para crianças como A História Secreta de Pedro e o Lobo, com ilustrações de João Fazenda (Assírio & Alvim, 2007).

O seu último projeto, em coautoria com o fotógrafo João Francisco Vilhena (n. 1965). intitula-se Diário das Nuvens (Abysmo, 2021). Serviu de tema para uma exposição no mais recente festival literário Folio, em Óbidos, e foi apresentado em 20 de Novembro no Castelo de São Jorge (um dos melhores sítios de Lisboa para ver nuvens). Julgo que nada fazia antever, nessa altura, que o João Paulo não chegaria até ao fim do ano. O Diário das Nuvens, que a Cristina Ovídio recomendou num dos últimos «Original é a Cultura» (ela sabe muito de livros, tendo sido editora da Clube de Autor durante anos), reúne a prosa poética de João Paulo, escrita na sucessão dos dias, com magníficas imagens de nuvens feitas por um fotógrafo consagrado. Vilhena é autor de excelentes álbuns fotográficos, como Faróis de Portugal (Gradiva, 1997), com textos de Maria Regina Louro, e Lanzarote - A Janela de José Saramago (Porto Editora, 2014), com texto dos diários de Saramago, para além de autor e editor de fotojornalismo em vários jornais e revistas nacionais e internacionais.

Dou como exemplo um extracto, logo do início, podendo o leitor olhar para nuvens na sua vertical enquanto lê (se não as houver, encontrará no sítio da Abysmo alguns pequenos filmes de nuvens associados ao projecto):  

«DECLARAÇÃO DE ATENÇÕES: Dois amigos que há muito se não viam reencontraram-se. E logo ergueram planos, vários, que foram pondo em movimento, invariavelmente na busca do cruzamento entre imagem e palavra. Nisto regressam os dias que parecem um só, estendido até perder de vista. Suspenderam-se os encontros e os abraços congelaram no ar. Diz um: as nuvens olham por nós, envolvem-nos em silêncio. Podem absorver maus pensamentos, só por lhe devolvermos um olhar paciente, diz o outro. O primeiro escolhe a imagem que se faz desafio, que trava a passagem das massas fascinantes nisso fazendo horizonte para o verbo. O segundo procura com absoluta liberdade nos ecos do mundo e no espírito das palavras prolongamentos. O parágrafo só fica fechado, entre o delírio e a trova, a observação e o pensamento, com o espelho da fotografia. No recolhimento imposto pela catástrofe estes dois amigos, impedidos de o fazer de copo na mão, insistem no jogo dos vasos comunicantes. E mais surpresas se preparam, de puro gozo. De pouco servirão, mas quem fala de servidões? Que sejam então partículas de poeira atiradas ao éter. O mais limpo dos céus contém a promessa de nuvens. Mas o enevoamento não tem que significar obscuridade. Sigamos o sopro e os ventos.»

O João Paulo tinha uma especial atracção por nuvens. Era, no bom sentido, um nefelibata, alguém que gosta de construir castelos nas nuvens. Pude verificá-lo quando ele, em 2019, antes da pandemia, me desafiou para uma conversa sobre nuvens que decorreu on-line com o pintor João Queiroz e com ele. A conversa foi publicada num número especial sobre nuvens do suplemento «H» do jornal Hoje Macau, publicado em Macau sob a direcção de Carlos Morais José, que foi distribuído na Feira do Livro de Lisboa (o leitor conseguirá encontrar uma cópia digital na Internet se procurar bem). Nessa conversa pude falar da atracção por nuvens que tinha Johann Wolfgang von Goethe, o escritor romântico alemão que achava que elas escapavam à descrição da ciência, enquanto o artista meu interlocutor me lembrava as nuvens do pintor inglês John William Turner, não por acaso um admirador de Goethe.

Quando o João Paulo me pedia qualquer coisa, eu fazia. Conhecia-o há mais de 30 anos: publicou na sua revista Omnia, uma revista que misturava ciência e ficção científica, com a qual colaborei assiduamente no início dos anos 1990, alguns excertos do meu livro Física Divertida (Gradiva, 1991), que foram ilustrados pelo José Bandeira, um cartoonista que muito admiro. E publicou, mais de duas décadas volvidas, a História da Ciência em Portugal (Arranha-Céus, 2013), o livro de capa dura que resultou dos cursos que dei repetidamente no «Âmbito Cultural» do El Corte Inglês, a simpático convite da Susana Santos, e que é a primeira e até à data única obra com esse título em Portugal. O João Paulo era um homem das artes e das letras, mas sempre com atenção à ciência.

Ficamos todos mais pobres, eu sem um amigo com quem gostava de falar, beneficiando do seu génio bem humorado, e o país, que perde precocemente um editor e autor que percebeu como poucos que texto e ilustrações são naturais aliados. O João Paulo ainda tinha muito a dar-nos. Formulo votos de que a Abysmo, à qual a marca Arranha-Céus está associada, possa continuar como alfobre de cultura, apesar de saber que isso não é nada fácil nestes tempos que atravessamos, em que os livros não encontram suficientes leitores. Como um livro bonito é sempre um objecto de estimação, só posso agradecer ao João Paulo os muitos livros bonitos que nos deixou.

Os meus pêsames à família enlutada, em especial à sua mulher, Isabel. E tu, João Paulo, aceita um abraço, estejas lá onde estiveres, porque um abraço era uma coisa que gostavas sempre de dar e receber. E descansa em paz, enquanto nós por cá continuamos, inspirados por tudo aquilo que nos deixaste!

PS) Para me dedicar a outros desafios, encerro aqui a minha colaboração no Impertinente. Devo agradecer ao José Cabrita Saraiva e Diogo Vaz Pinto, pela sua permanente simpatia e atenção. Agradeço também aos leitores que tiveram a bondade de me ler. Espero ter contribuído, ainda que modestamente, para chamar a atenção para alguns dos livros que se publicaram entre nós. Como comecei no início de Junho de 2020 e nunca falhei uma só semana, foram cerca de 80 recensões, isto é, 80 livro. Tive o maior gosto em primeiro lê-los e depois comunicar o prazer da leitura.

 


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