Minha homenagem a João Paulo Cotrim, hoje no I:
Sabia desde há poucos dias que estava muito doente, mas custa-me a acreditar: o meu querido amigo João Paulo Cotrim (1965-2021), o editor da Abysmo, já não está entre nós. Foi jornalista, director da Bedeteca de Lisboa (que fundou, tendo-a dirigido de 1996 a 2002), especialista em banda desenhada e em ilustração, curador de exposições, poeta, prosador para várias idades, guionista de filmes de animação, etc. Era um faz-tudo e tudo fazia sempre com grande entusiasmo.
O editor gostava sobretudo de promover talentos,
juntando como ninguém, bons textos com boas imagens. Julgo que foi nessa
actividade que ele se realizou mais. A Abysmo (com y, como Teixeira de Pascoaes
gostava, pois Abismo não dá a devida ideia de profundidade) era uma das mais
originais chancelas nacionais, como há pouco referi no programa Original é a
Cultura, que partilho na SIC com a Cristina Ovídio, a Dulce Maria Cardoso e
o Rui Vieira Nery. Quando eu ia ao Chiado, gostava sempre de passar pela
Abysmo, um pequeno mas simpático espaço na Rua da Horta Seca, em frente ao
Ministério da Economia, onde de vez em quando havia exposições de artes
plásticas ou banda desenhada. Comprava lá sempre uma meia dúzia de livros, com o
desconto que ele sempre fazia. Os livros da sua autoria eram-me oferecidos com
dedicatória, julgo que o mais recente me foi entregue na última feira do Livro
de Lisboa, onde ele atendia na barraca da Abysmo.
Os últimos tempos de pandemia dificultavam o
reencontro, mas antes de o vírus nos obrigar a confinar era costume irmos
almoçar no restaurante ao lado da editora apenas para, diante de um prato e de um
copo, pôr a conversa em dia. Foi ele que me apresentou alguns autores da Abysmo
com os quais colaborei como o Luís Carmelo, o autor e professor de escrita criativa,
e o Gonçalo Waddington, o actor, dramaturgo e realizador. Outros autores que
ele editou ao longo dos dez anos da editora foram, por ordem alfabética do
primeiro nome, Fernanda Botelho, Filipa Leal, Hélder Macedo, Inês Fonseca
Santos, Luís Cardoso (o escritor timorense que foi o mais recente premiado com
o Prémio Oceanos, pela sua obra O Plantador de Abóboras, Abysmo, 2021), Paulo
Miranda, Sérgio Godinho, Valério Romão, etc. (os outros que me desculpem!). A
estes nomes acrescem os desenhadores André Carrilho, António Jorge Gonçalves, Jorge
Silva, Luís Afonso, Nuno Saraiva, Tóssan (o grande gráfico, autor do original Cão
pêndio, Portugália, 1959), etc. Editou também alguns clássicos como, por
ordem cronológica, Aristóteles, Píndaro, Antero de Quental e George Trakl. As
capas primam pela surpresa, variando muito de título para título. O editor
adverte numa mensagem antes do seu abismal catálogo na Internet, que «mesmo os
esgotados não se esgotaram», lembrando-nos que, quando os livros são bem
escolhidos e produzidos, ficam intemporais.
Mas, para além de editor, o João Paulo era autor. Em
lugar especial na minha estante tenho a magnífica série de biografias de
grandes desenhadores portugueses, com excelente design, que escreveu para a
Assírio & Alvim: Rafael Bordalo Pinheiro
(2005), Stuart: a rua e o riso (2006), André
Carrilho: o rosto do alpinista (2007), João Abel Manta: caprichos e
desastres (2008) e Cid (2010). Espero que ninguém se sinta
desconsiderado se eu disser que, destes todos, o meu desenhador preferido é o
João Abel Manta.
Escreveu
argumentos de banda desenhadas, um género que sempre apreciei. Destaco: Salazar:
agora, na hora da sua morte, com ilustrações de Miguel Rocha (Parceria António
Maria Pereira, 2006). Escreveu poesia como Má Raça. 22 canções, com
ilustrações de Alex Gozblau (Abysmo, 2012). Escreveu histórias para crianças
como A História Secreta de Pedro e o Lobo, com ilustrações de João
Fazenda (Assírio & Alvim, 2007).
O
seu último projeto, em coautoria com o fotógrafo João Francisco Vilhena (n.
1965). intitula-se Diário das Nuvens (Abysmo, 2021). Serviu de tema para
uma exposição no mais recente festival literário Folio, em Óbidos, e foi
apresentado em 20 de Novembro no Castelo de São Jorge (um dos melhores sítios
de Lisboa para ver nuvens). Julgo que nada fazia antever, nessa altura, que o João
Paulo não chegaria até ao fim do ano. O Diário das Nuvens, que a Cristina
Ovídio recomendou num dos últimos «Original é a Cultura» (ela sabe muito de
livros, tendo sido editora da Clube de Autor durante anos), reúne a prosa
poética de João Paulo, escrita na sucessão dos dias, com magníficas imagens de
nuvens feitas por um fotógrafo consagrado. Vilhena é autor de excelentes álbuns
fotográficos, como Faróis de Portugal
(Gradiva, 1997), com textos de Maria Regina Louro, e Lanzarote - A Janela
de José Saramago (Porto Editora, 2014), com texto dos diários de Saramago,
para além de autor e editor de fotojornalismo em vários jornais e revistas
nacionais e internacionais.
Dou
como exemplo um extracto, logo do início, podendo o leitor olhar para nuvens na
sua vertical enquanto lê (se não as houver, encontrará no sítio da Abysmo
alguns pequenos filmes de nuvens associados ao projecto):
«DECLARAÇÃO
DE ATENÇÕES: Dois amigos que há muito se não viam reencontraram-se. E logo
ergueram planos, vários, que foram pondo em movimento, invariavelmente na busca
do cruzamento entre imagem e palavra. Nisto regressam os dias que parecem um
só, estendido até perder de vista. Suspenderam-se os encontros e os abraços
congelaram no ar. Diz um: as nuvens olham por nós, envolvem-nos em silêncio.
Podem absorver maus pensamentos, só por lhe devolvermos um olhar paciente, diz
o outro. O primeiro escolhe a imagem que se faz desafio, que trava a passagem
das massas fascinantes nisso fazendo horizonte para o verbo. O segundo procura
com absoluta liberdade nos ecos do mundo e no espírito das palavras
prolongamentos. O parágrafo só fica fechado, entre o delírio e a trova, a
observação e o pensamento, com o espelho da fotografia. No recolhimento imposto
pela catástrofe estes dois amigos, impedidos de o fazer de copo na mão,
insistem no jogo dos vasos comunicantes. E mais surpresas se preparam, de puro
gozo. De pouco servirão, mas quem fala de servidões? Que sejam então partículas
de poeira atiradas ao éter. O mais limpo dos céus contém a promessa de nuvens.
Mas o enevoamento não tem que significar obscuridade. Sigamos o sopro e os
ventos.»
O
João Paulo tinha uma especial atracção por nuvens. Era, no bom sentido, um
nefelibata, alguém que gosta de construir castelos nas nuvens. Pude verificá-lo
quando ele, em 2019, antes da pandemia, me desafiou para uma conversa sobre
nuvens que decorreu on-line com o pintor João Queiroz e com ele. A
conversa foi publicada num número especial sobre nuvens do suplemento «H» do jornal
Hoje Macau, publicado em Macau sob a direcção de Carlos Morais José, que
foi distribuído na Feira do Livro de Lisboa (o leitor conseguirá encontrar uma
cópia digital na Internet se procurar bem). Nessa conversa pude falar da
atracção por nuvens que tinha Johann Wolfgang von Goethe, o escritor romântico alemão
que achava que elas escapavam à descrição da ciência, enquanto o artista meu
interlocutor me lembrava as nuvens do pintor inglês John William Turner, não
por acaso um admirador de Goethe.
Quando
o João Paulo me pedia qualquer coisa, eu fazia. Conhecia-o há mais de 30 anos: publicou na sua revista Omnia,
uma revista que misturava ciência e ficção científica, com a qual colaborei assiduamente
no início dos anos 1990, alguns excertos do meu livro Física Divertida
(Gradiva, 1991), que foram ilustrados pelo José Bandeira, um cartoonista que
muito admiro. E publicou, mais de duas décadas volvidas, a História da
Ciência em Portugal (Arranha-Céus, 2013), o livro de capa dura que resultou
dos cursos que dei repetidamente no «Âmbito Cultural» do El Corte Inglês, a
simpático convite da Susana Santos, e que é a primeira e até à data única obra
com esse título em Portugal. O João Paulo era um homem das artes e das letras,
mas sempre com atenção à ciência.
Ficamos todos mais pobres, eu sem um amigo com quem
gostava de falar, beneficiando do seu génio bem humorado, e o país, que perde
precocemente um editor e autor que percebeu como poucos que texto e ilustrações
são naturais aliados. O João Paulo ainda tinha muito a dar-nos. Formulo votos de
que a Abysmo, à qual a marca Arranha-Céus está associada, possa continuar como alfobre
de cultura, apesar de saber que isso não é nada fácil nestes tempos que
atravessamos, em que os livros não encontram suficientes leitores. Como um
livro bonito é sempre um objecto de estimação, só posso agradecer ao João Paulo
os muitos livros bonitos que nos deixou.
Os meus pêsames à família enlutada, em especial à
sua mulher, Isabel. E tu, João Paulo, aceita um abraço, estejas lá onde
estiveres, porque um abraço era uma coisa que gostavas sempre de dar e receber.
E descansa em paz, enquanto nós por cá continuamos, inspirados por tudo aquilo
que nos deixaste!
PS) Para me dedicar a outros desafios, encerro aqui
a minha colaboração no Impertinente. Devo agradecer ao José Cabrita Saraiva
e Diogo Vaz Pinto, pela sua permanente simpatia e atenção. Agradeço também aos leitores
que tiveram a bondade de me ler. Espero ter contribuído, ainda que
modestamente, para chamar a atenção para alguns dos livros que se publicaram entre
nós. Como comecei no início de Junho de 2020 e nunca falhei uma só semana, foram
cerca de 80 recensões, isto é, 80 livro. Tive o maior gosto em primeiro lê-los
e depois comunicar o prazer da leitura.
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