[Está a chegar ao fim o ano do centenário de Carlos de Oliveira (1921-1981) e há algum tempo que me interesso pelas relações dos seus livros com a química. Sobre os centenários já foi feita aqui a reflexão por Eugénio Lisboa. Eu vou debruçar-me sobre um aspecto curioso de um livro de Carlos Oliveira. No dia 17 de dezembro irei fazer uma palestra mais geral sobre Carlos de Oliveira e a Química na Escola Secundária de Cantanhede. Curiosamente, ao escrever lembrei-me de que o patrono da escola, o professor Lima de Faria, tem muitos trabalhos sobre a teoria da evolução, numa perspetiva diferente - sem seleção ao acaso - da que refiro abaixo. Isto está tudo ligado, mas aproveito para referir mais uma vez que a ciência avança mais com os desacordos do que com os dogmatismos.]
Como é bem sabido, Carlos de Oliveira viveu bastantes anos na gândara, a qual serviu de inspiração a grande parte dos seus trabalhos. Com as suas imagens e textos deu uma forma especial a toda uma região, ao mesmo tempo que ele próprio se dizia “tatuado” por ela. Por outro lado, todo um conjunto de autores, especialmente locais, reclamam seguir os seus passos e foram claramente inspirados por ele.
Para um natural da gândara – e eu sou-o e acho que também fui tatuado por ela – é muito apelativo as várias referências a coisas que conhecemos ou que imaginamos e que vão variando com o tempo, muitas vezes por as vermos de formas diferente.
Não acho que haja domínios em que não se possa tocar. Claro que os domínios especializadas têm o seu lugar, e ainda bem pois há muitas coisas que só avançam ou têm lugar dessa forma, e há conhecimento técnico que não se adquire a ler de forma diletante e ocasional, mas há coisas que são e devem ser de todos. Da mesma forma que devo aceitar que uma pessoa refira os “químicos” de forma muitas vezes ignorante em todos os sítios, por vezes fora do contexto, tenho de aceitar que um não-filósofo profissional filosofe ou um não-crítico critique, entre outras possibilidades. Acontece que, muitas vezes, não falamos sequer a mesma linguagem. Por exemplo, para uma pessoa da área das ciências “catalise” tem a ver com a aceleração de reações químicas, mas para uma pessoa das letras, com a forma como se constroem certas palavras.
Assim, tem de haver alguma tolerância aos não profissionais, ao mesmo tempo que se sabe quem é o quê. Uma pessoa pode opinar, saber coisas, contribuir para um ramo do conhecimento, sem o poder exercer. Por exemplo a medicina. Outra pessoa pode dizer coisas, saber outras e até contribuir muito sem ser, por exemplo, engenheiro. E aí por diante. Algumas vezes as contribuições mais ricas e úteis até vêm de pessoas de fora do ramo, mas as rotinas são realizadas por quem está todos as dias a trabalhar nesse assunto, muitas vezes em profissões que são reguladas e só podem ser exercidas por quem tem as qualificações.
Carlos de Oliveira refazia muito. Por exemplo, embora a história e as personagens sejam as mesmas, a versão de 1948 dos “Pequenos Burgueses” é muito diferente da versão de 1987 que eu tenho. A obra original faz um conjunto com “Alcateia”, publicada em 1944, que ficou pelo caminho, mas foi recentemente reeditada (o que era imprevisível), mas não sei se na atual se nota tanto.
Chamou-me a atenção da utilização da expressão “trigo-roxo” para combater uma praga de ratos. Julgo que a expressão terá começado a ser usada por as sementes com o veneno serem pintadas com um corante dessa cor. Generalizou-se para os venenos, que são dessa cor, ou têm esse nome na marca. O curioso é que só em 1948 (imprevisível coincidência) foi introduzida a varfarina para matar ratos. Trata-se de um anti-coagulante a que os roedores são muito sensíveis, mas também a nós e aos outros animais pode fazer mal, que tem como antídoto a vitamina-K1. Antes usava-se a estricnina e o fosforeto de alumínio. E anteriormente, o arsénio. Isto causava um grande número de acidentes e facilitava o suicídio e o crime e esses produtos deixaram de ser usados. De qualquer forma, fui ver a edição de 1948. Não tinha qualquer referência a “veneno” para os ratos. Notei outras coisas. Era uma versão muito diferente. Mas o aspeto do raticida que antes não existia e agora existe parece-me fundamental. A literatura mostra-nos o mundo e o pensamento do tempo em que foi escrita.
É curioso que a imagem dos ratos seja também usada por Albert Camus na “Peste”, romance de 1947, agora muito lido devido às semelhanças que encontramos com os tempos que estamos a viver. Também ainda não estava disponível a varfarina, mas como disse Camus (cito de cor), a peste, e os ratos, não desaparecem totalmente, ficam escondidos.
Entretanto, começou a notar-se uma maior resistência à varfarina por parte dos ratos. Este fenómeno é comum e tem a ver com a seleção que é feita. Se o veneno mata os ratos mais sensíveis e se sobrevivem os mais resistentes, são estes que se vão reproduzir e passar as suas características aos descendentes. Este efeito é muitas vezes temido de forma exagerada e outras vezes esquecido, mas é sempre de tomar em conta. Em 1980 foi introduzida uma “super-vafarina”, a bromadiolona. Ora esta molécula é muito eficaz para os ratos, mas muito mais perigosa para os humanos. Acabou assim banida para o uso profissional, mas continua legal para os usos domésticos! Não sei há alguma moral nisto, mas Carlos de Oliveira, muito atento e curioso, talvez achasse graça.
segunda-feira, 6 de dezembro de 2021
Carlos de Oliveira e a evolução sem seleção ao acaso embora acabe por ser pelo imprevisível que vamos
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2 comentários:
Não só na Peste de Albert Camus surgem os ratos. Num pequeno livro do escritor checo, Bohumil Hrabal, que tem por título "Uma solidão demasiado ruidosa", os ratos são presença assídua. No entanto, aí fazem companhia à personagem que os adora. Também no livro, A Ratazana, de Gunter Grass, ela aparece com dons de premonição. Já em Ratos e Homens, de John Steinbeck, os ratos surgem como o espelho dos miseráveis homens apanhados pela Grande Depressão.
Por falar em gândara, há um petisco muito apreciado e colhido, nesta altura, nessa região: os míscaros.
Cumprimentos.
Obrigado. Recordou-me um poema de Fernando Pessoa que tem três ratos que morrem e eu fiz uma "análise forense" do poema, julgo que foi aqui. O consumo continuado e excessivo de míscaros está relacionados com a rabdomiólise, mas que são bons são :)
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