Meu artigo no I de hoje:
Toda a gente sabe que o céu é
azul. A expressão «céu branco» que surge em Sob um Céu Branco. A Natureza do
Futuro, o mais recente título da norte-americana Elizabeth Kolbert (n.
1961), jornalista dos quadros da revista The New Yorker, é estranha, mas
explica-se facilmente. Num planeta ameaçado pelo aquecimento global foram
propostas algumas soluções de geoengenharia global que parecem ficção
científica. Uma delas, desistindo de limitar as emissões de dióxido de carbono,
que são em larga medida responsáveis pelo agravamento do efeito de estufa, consiste
em espalhar pela atmosfera quantidades consideráveis de aerossóis, que, ao
diminuírem a radiação solar que chega à Terra, baixariam a temperatura desta.
Um problema lateral seria que o céu, em vez de azul, passaria a ser branco. As últimas
palavras do livro são precisamente as do título: «Seria um clima sem
precedentes, onde a carpa-prateada tremeluz sob um céu branco».
Kolbert, que é hoje uma das
vedetas do jornalismo mundial, tem, desde há vários anos, centrado as suas
atenções em questões ambientais. Ela gosta de usar o termo «Antropoceno», ainda
não consagrado cientificamente, mas que já se generalizou para designar a nova
era geológica, dominada pelo impacto das marcas humanas.
Sob um Céu Branco, saído
em Portugal na Elsinore, é o seu quarto livro. Os primeiros dois, não
traduzidos entre nós, foram: The Prophet of Love and Other Tales of Power
and Deceit (Bloomsbury, 2004), sobre alguns políticos de Nova Iorque, e Field
Notes from a Catastrophe: Man, Nature, and Climate Change (idem, 2006),
sobre as alterações climáticas. Mas o grande sucesso veio com o terceiro livro,
A Sexta Extinção (Elsinore, 2019), que recebeu o prémio Pulitzer para a
melhor obra de não-ficção de 2015. O Pulitzer é um dos maiores prémios atribuídos
anualmente nos Estados Unidos a obras de jornalismo, literatura, não-ficção e música.
Para ver em que galeria entrou o livro de Kolbert, enuncio os títulos
relacionados com ciência que foram galardoados e publicados entre nós: Os
Dragões do Éden, de Carl Sagan (Gradiva, 1991); Gödel, Escher, Bach,
de Douglas Hofstadter (idem, 2000); Armas, Germes e Aço, de Jared
Diamond (Relógio d’Água, 2002); O Bico do Tentilhão, de Jonathan Weiner
(Caminho, 2006); O Imperador de Todos os Males, de Siddhartta Mukherjee (Bertrand,
2012); e A Grande Mudança, de Stephen Greenblatt (Clube do Autor, 2012).
É pena que o naturalista Edward O. Wilson, o único cientista que ganhou dois
Pulitzers, não tenha publicadas em português nenhuma das obras pelas quais foi
premiado, embora tenha várias outras.
Eram, portanto, elevadas as
expectativas em torno do novo título de Kolbert. E ela soube estar à altura
delas. Se o livro anterior era sobre a dramática perda da biodiversidade a que
estamos a assistir (a autora estima que antes do final deste século arriscamos
perder entre 20 e 50 por cento das espécies vivas) depois de terem ocorrido, antes
do aparecimento dos humanos, cinco extinções em massa, o livro mais recente é
sobre a continuada acção humana sobre a Natureza. A questão é: até que ponto
será o mundo natural ainda natural? Para lhe responder, a autora, uma grande
repórter que, para escrever esta obra, visitou alguns dos sítios mais extraordinários
do planeta, começa por notar que a Natureza tem estado sujeita à intervenção
humana desde há muito.
No primeiro («Rio abaixo») dos
três capítulos que constituem o livro (o resto é agradecimentos, notas e
créditos), Kolbert começa por descrever a sua descida de barco ao longo de um
canal que foi construído no final do século XIX para desviar o trajecto do Rio
Chicago para que ele não entrasse no Lago Michigan. Ao completarem-se esses
trabalhos estabeleceu-se uma ligação entre a bacia hidrográfica dos Grandes Lagos
e a outra grande bacia, a do rio Mississipi, alterando seriamente vários
ecossistemas. Apesar de bem intencionado, o controlo da Natureza por vezes
correu mal: por exemplo, introduziram-se espécies invasoras, como carpas oriundas
da China, que rapidamente proliferaram, com impacto no ambiente. Uma marca do
controlo humano que a autora descreve é a das barreiras eléctricas que foram
construídas pelo Corpo de Engenheiros dos Estados Unidos para impedir as carpas,
matando-as, de passar num certo sítio do canal artificial. Indo mais para Sul, a
autora voou sobre a foz do Mississipi, não muito longe de Nova Orleães (cidade que
conheço bem, pois vivi lá um ano, antes do furacão Katrina), para confirmar in
loco o que já sabia: boa parte do estado da Louisiana está abaixo do nível
do mar, só sendo habitável graças a um complexo sistema de diques e bombagens.
No litoral do Golfo do México são permanentemente perdidas terras para o mar. O
delta do rio é tudo menos um sistema natural, pois resulta da permanente luta
entre a Natureza e o homem, uma luta que tem originado enormes alterações dos
ecossistemas.
Eis como Kolbert vê a Natureza alterada:
«É costume dizer-se que a Natureza – ou, pelo menos, o conhecimento de Natureza
– está emaranhado na cultura. Até ter existido qualquer coisa que lhe pudesse
ser contraposta (a tecnologia, a arte, a consciência), havia apenas a "Natureza", e, por isso, a categoria não tinha grande utilidade. Talvez seja
também verdade que, quando a "Natureza" foi inventada, a cultura estava já nela
intrincada. Há 20 mil anos, os lobos foram domesticados. O resultado foi uma
nova espécie (ou, segundo alguns, uma subespécie), bem como duas novas
categorias: o ‘domesticado’ e o "selvagem". Com a domesticação do trigo, há
cerca de 10 mil anos, o mundo vegetal dividiu-se. Algumas plantas tornaram-se "colheitas" e outras "daninhas". No admirável mundo novo do Antropoceno, as
divisões não param de se multiplicar.»
No Génesis 1.26 está
escrito que o Criador atribuiu ao homem o domínio da Terra: «Deus disse: ’Façamos
o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os
peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos
os répteis que rastejam pela terra’». De certo modo temos cumprido esse
desígnio, mudando radicalmente a paisagem, destruindo espécies e criando novas.
A Natureza deixou, há muito, de ser natural. Kolbert cita Edward O. Wilson:
«Não somos como deuses. Não somos ainda sencientes ou inteligentes o suficiente
para sermos o que quer que seja.»
No segundo capítulo, «Rumo à Natureza»,
Kolbert descreve uma caverna no deserto do Nevada, não muito longe de Las
Vegas, onde vive uma colónia de pequenos peixes azuis que só existem aí. São
muito poucos – não mais que poucas centenas - estando ameaçados de extinção.
Têm corrido vários perigos, como quando baixou o nível da água (que está à
temperatura de 33 ºC) devido à irrigação de uma propriedade próxima. Houve um litígio,
que foi a tribunal, entre os destruidores e os salvadores dos peixinhos. As
autoridades têm feito tudo para preservar a colónia, desde o reforço da
alimentação no seu habitat natural até à sua deposição noutros habitats, incluindo
uma caverna artificial que é uma réplica fiel da verdadeira e cuja construção
custou cerca de cinco milhões de dólares. No mesmo capítulo, a autora vai
primeiro ao Havai e depois à Austrália para ver o que está a ser feito para defender
a Grande Barreira de Coral das múltiplas ameaças que pairam sobre ela. Não é só
a barreira que é frágil, também os humanos o são: A cientista que ajudava a
autora morre rapidamente quando lhe aparece um tumor no cérebro. Kolbert
procura outros cientistas, visitando, na Austrália, um laboratório biológico de
alta segurança e inteirando-se sobre o CRISPR, uma nova técnica de edição
genética, que poderá ajudar a salvar os corais. Entre os personagens que
encontra há um com aspecto de «cientista louco»: um biofísico de cabeleira
loura, piercings e tatuagens cuja empresa oferece serviços de design
genético. Ele próprio, embora sem sucesso, tentou desactivar um dos seus genes para
ficar com uns bíceps maiores…
No último capítulo («Nas
Nuvens»), Kolbert descreve a sua viagem à Islândia para saber como se
«petrifica» o dióxido de carbono. Ela tinha recorrido a um serviço de uma
empresa de emissões negativas de dióxido de carbono, que retira este gás do ar
injectando-o na crusta terrestre. Esta é outra possibilidade de geoengenharia
para controlar o aquecimento global, em alternativa ou complemento ao
espalhamento de aerossóis no ar. Ainda é muito cara. A autora queria ir a mais
sítios, mas as suas excursões foram subitamente interrompidas pela erupção da COVID.
A prosa de Kolbert é sóbria, mas extremamente eficaz. Ela leva-nos aos sítios onde esteve. A legibilidade do livro, que tem mapas e figuras elucidativas, é bastante ajudada pela excelente tradução de Eugénia Antunes. Remato com um resumo que a própria autora faz no final: «Este é um livro sobre pessoas que tentam resolver problemas criados por pessoas que tentavam resolver problemas. Enquanto o escrevia, falei com engenheiros e engenheiros genéticos, com biólogos e microbiólogos com cientistas atmosféricos e empreendedores atmosféricos. Sem excepção mostraram-se apaixonados pelo seu trabalho. Regra geral, contudo, o seu entusiasmo era contrabalançado pela dúvida. As barreiras eléctricas, as crevasses de betão, a caverna artificial, as nuvens sintéticas: estes projectos foram-me apresentados mais num espírito de tecno-fatalismo do que de tecno-optimismo.» A questão que logo ocorre é: quem controla os controladores da Natureza?
3 comentários:
Prezado Professor,
a obra Field Notes from a Catastrophe teve edição portuguesa, pela Guerra & Paz com o título Tópicos para uma Catástrofe mas, infelizmente, já só se encontra em bibliotecas e, quiçá, alfarrabistas.
Aliás, nem na página Web da editora tem menção mas, como a desorganização lá impera, não vale a pena esperar muito.
Grata,
Susana Serrão
Muito obrigado
pela informação, bom ano! CF
Cara Susana, eu devia saber do livro que traduziu pois eu proprio o ofereci à biblioteca ROMJULO que criei em Coimbra
http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/Xkolbert&searchscope=17&SORT=D/Xkolbert&searchscope=17&SORT=D&SUBKEY=kolbert/1%2C5%2C5%2CE/frameset&FF=Xkolbert&searchscope=17&SORT=D&5%2C5%2C
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