Meu artigo no Jornal de Negócios de hoje:
A relação entre a floresta e a
cultura é inequívoca, apesar de nem sempre ser reconhecida. O astrofísico Carl
Sagan escreveu no seu livro Cosmos, saído em 1982: «O livro é feito de
uma árvore. É um conjunto de partes lisas e flexíveis (ainda chamadas folhas)
impressas em caracteres de pigmentação escura. Dá-se uma vista de olhos e
ouve-se a voz de outra pessoa, talvez alguém que já tenha morrido há milhares
de anos. Através dos milénios, o autor está a falar, clara e silenciosamente,
dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita foi talvez a maior das
invenções humanas, ligando as pessoas, cidadãos de épocas distantes que nunca
se conheceram. Os livros quebram as cadeias do tempo.»
De facto, quando leio Sagan estou
a ligar-me a um físico já falecido, recebendo a sua mensagem. Quando penso em
árvores, penso na possibilidade de delas surgirem livros e na capacidade
prodigiosa que esse meio tem de ligar seres humanos de todos os tempos históricos.
Uma árvore dá cerca de cem
livros. Dez árvores dão uma edição de mil exemplares e mil árvores dão uma
edição de dez mil exemplares: um best-seller raro entre nós, nos tempos
que correm. Poder-se-ia pensar que os livros – e o papel em geral, porque
também há as revistas e os jornais, além dos cadernos onde escrevemos – são
inimigos das florestas e da Natureza. Nada de mais falso: em primeiro lugar, o
papel não se faz a partir da Natureza selvagem, mas a partir de árvores que são
plantadas precisamente com esse fim. O tempo médio de uma árvore antes de se
converter em livro varia entre dez e vinte anos e essas plantações são constantemente
renovadas. Colhe-se e semeia-se logo a seguir. Além disso, esses valores pecam
por excesso uma vez que não incluem a reciclagem, que pode ser feita uma meia
dúzia de vezes. A reciclagem, que tem obviamente custos, é mais viável nas
revistas, nos jornais e no papel de escrita do que nos livros, que são
normalmente guardados.
Há quem pense que os livros
electrónicos vieram para substituir os livros em papel, com vantagens
ecológicas. Apesar do rápido avanço desses livros quando eles começaram, ele
cessou nos últimos anos: o Kindle da Amazon, surgido em 2007, prometia
uma revolução, mas ela não aconteceu na medida do que se previa: os ebooks
só constituem 20% das vendas no mundo.
Os jovens estão sempre a usar o
telemóvel não só para chamadas mas também para participarem em redes sociais e
para jogarem, e não para lerem livros. Os que os lêem, por exemplo o Harry
Potter, ainda o fazem em papel. Estou em crer que esse formato nunca será
substituído, uma vez que um livro tem o design perfeito para as funções
que cumpre. Falta também provar que a renovação dos aparelhos electrónicos assegura
aos ebooks a mesma duração que tem tido o livro em papel (vários
séculos!) e ainda que a substituição do material electrónico não origina
problemas ambientais.
Portugal tem uma grande mancha
florestal com conhecidos problemas, que vão desde a ameaça pelos incêndios, que
as alterações climáticas favorecem, até às dificuldades de gestão associadas à
repartição por inúmeros proprietários privados, muitos deles absentistas. As
florestas de produção, apenas em parte para o fabrico de papel, têm entre nós um
problema de imagem, porque muita gente, a maior parte nos centros urbanos, não
conhece bem a realidade florestal, e também porque alguns não se apercebem da
relação estreita entre as árvores e os livros.
Cultivar florestas é ajudar a
fazer cultura. A palavra “cultura”, do latim culturae, tem a ver com
“tratar”, “cuidar”. Originalmente o conceito era tratar das plantas. Mas depois
ele passou a incluir o cuidado com as pessoas: desenvolver capacidades nos
seres humanos desde a mais tenra idade. Não só as duas acepções são
compatíveis, como também estão bem próximas. Não há cultura sem livros, não há
livros sem papel e não há papel sem árvores. A cultura e a silvicultura podem e
devem caminhar a par, fazendo silvicultura sustentável. A chave será sempre
plantar e cuidar.
Volto a Sagan: “Os livros
permitem-nos viajar através do tempo, beber na própria fonte o saber dos nossos
antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a
custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os
melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história,
para nos instruírem sem nos fatigarem e para nos inspirarem a dar nossa
contribuição ao saber colectivo da espécie humana.” Eu não saberia dizer melhor.
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