quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A floresta e a cultura


Meu artigo no Jornal de Negócios de hoje:

A relação entre a floresta e a cultura é inequívoca, apesar de nem sempre ser reconhecida. O astrofísico Carl Sagan escreveu no seu livro Cosmos, saído em 1982: «O livro é feito de uma árvore. É um conjunto de partes lisas e flexíveis (ainda chamadas folhas) impressas em caracteres de pigmentação escura. Dá-se uma vista de olhos e ouve-se a voz de outra pessoa, talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos. Através dos milénios, o autor está a falar, clara e silenciosamente, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita foi talvez a maior das invenções humanas, ligando as pessoas, cidadãos de épocas distantes que nunca se conheceram. Os livros quebram as cadeias do tempo.»

De facto, quando leio Sagan estou a ligar-me a um físico já falecido, recebendo a sua mensagem. Quando penso em árvores, penso na possibilidade de delas surgirem livros e na capacidade prodigiosa que esse meio tem de ligar seres humanos de todos os tempos históricos.

Uma árvore dá cerca de cem livros. Dez árvores dão uma edição de mil exemplares e mil árvores dão uma edição de dez mil exemplares: um best-seller raro entre nós, nos tempos que correm. Poder-se-ia pensar que os livros – e o papel em geral, porque também há as revistas e os jornais, além dos cadernos onde escrevemos – são inimigos das florestas e da Natureza. Nada de mais falso: em primeiro lugar, o papel não se faz a partir da Natureza selvagem, mas a partir de árvores que são plantadas precisamente com esse fim. O tempo médio de uma árvore antes de se converter em livro varia entre dez e vinte anos e essas plantações são constantemente renovadas. Colhe-se e semeia-se logo a seguir. Além disso, esses valores pecam por excesso uma vez que não incluem a reciclagem, que pode ser feita uma meia dúzia de vezes. A reciclagem, que tem obviamente custos, é mais viável nas revistas, nos jornais e no papel de escrita do que nos livros, que são normalmente guardados.

Há quem pense que os livros electrónicos vieram para substituir os livros em papel, com vantagens ecológicas. Apesar do rápido avanço desses livros quando eles começaram, ele cessou nos últimos anos: o Kindle da Amazon, surgido em 2007, prometia uma revolução, mas ela não aconteceu na medida do que se previa: os ebooks só constituem 20% das vendas no mundo.

Os jovens estão sempre a usar o telemóvel não só para chamadas mas também para participarem em redes sociais e para jogarem, e não para lerem livros. Os que os lêem, por exemplo o Harry Potter, ainda o fazem em papel. Estou em crer que esse formato nunca será substituído, uma vez que um livro tem o design perfeito para as funções que cumpre. Falta também provar que a renovação dos aparelhos electrónicos assegura aos ebooks a mesma duração que tem tido o livro em papel (vários séculos!) e ainda que a substituição do material electrónico não origina problemas ambientais.

Portugal tem uma grande mancha florestal com conhecidos problemas, que vão desde a ameaça pelos incêndios, que as alterações climáticas favorecem, até às dificuldades de gestão associadas à repartição por inúmeros proprietários privados, muitos deles absentistas. As florestas de produção, apenas em parte para o fabrico de papel, têm entre nós um problema de imagem, porque muita gente, a maior parte nos centros urbanos, não conhece bem a realidade florestal, e também porque alguns não se apercebem da relação estreita entre as árvores e os livros.

Cultivar florestas é ajudar a fazer cultura. A palavra “cultura”, do latim culturae, tem a ver com “tratar”, “cuidar”. Originalmente o conceito era tratar das plantas. Mas depois ele passou a incluir o cuidado com as pessoas: desenvolver capacidades nos seres humanos desde a mais tenra idade. Não só as duas acepções são compatíveis, como também estão bem próximas. Não há cultura sem livros, não há livros sem papel e não há papel sem árvores. A cultura e a silvicultura podem e devem caminhar a par, fazendo silvicultura sustentável. A chave será sempre plantar e cuidar.

Volto a Sagan: “Os livros permitem-nos viajar através do tempo, beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarem e para nos inspirarem a dar nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana.” Eu não saberia dizer melhor.

 

Sem comentários:

35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"

Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...