quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

"QUERER SABER, DAR A SABER"

 Minha entrevista ao «Pilão», revista dos estudantes de Farmácia da Universidade de Coimbra:

P- Nasceu em Lisboa e, posteriormente, foi estudar para a Escola dos Olivais, em Coimbra, e para o Liceu D. João III, onde ganhou alguns prémios de Pintura. Mais tarde, enveredou pela área das Ciências, uma área completamente distinta. Quando se apercebeu da sua paixão pelas Ciências? 

CF- Ao fim do antigo 5.º ano dos liceus (actual 9.º ano de escolaridade) tínhamos de escolher entre Letras e Ciências. Embora tivesse algum jeito para Letras, não tive dúvidas em ir para Ciências. Uma razão forte é que gostava de Física e de Matemática. Passei a ter a disciplina de Filosofia, que era uma ponte para as Letras, na qual tive boas notas… Sempre achei essa divisão entre Letras e Ciências um bocadinho forçada. As duas áreas deviam estar mais balanceadas no ensino pré-universitário. 

P-  Licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra e doutorou-se em Física Teórica pela Universidade de Goethe, em Frankfurt, na Alemanha. O que o motivou a seguir esta área? Quais eram as suas perspetivas para o futuro? 

CF- A minha escolha do curso de Física, no final  do 7.º ano dos liceus (hoje 11.º ano, não havia o 12.º ano), foi-se formando pouco a pouco no liceu muito com base nas minhas leituras de livros de divulgação científica. Investi logo alguns proventos de prémios de artes na aquisição de livros de divulgação de ciência, como os livros da colecção “Saber” das Publicações Europa-América, e da colecção “Ciência para Gente Nova” da Atlântida, estes últimos escritos por esse grande vulto da cultura que foi Rómulo de Carvalho. Nos livros de divulgação descobri que a ciência era uma aventura, que estava muito longe de estar acabada, e que eu próprio poderia participar nessa aventura. Não pensei no futuro profissional. Depois logo se veria. E o que é certo é que, mal tinha acabado o curso, já me estavam a propor um contrato para assistente universitário. E, passado um ano, tive a possibilidade de ir para a Alemanha, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, fazer o doutoramento. Beneficiei das oportunidades que me foram dadas, pelas quais estou muito grato. 

P-  Criou o Centro de Física Computacional em Coimbra, no qual realiza Investigação. Em que consiste o seu trabalho? 

CF- Eu e outros colegas pertencíamos a um Centro de Física Teórica, onde pontificava o Doutor João da Providência. Mas o meu regresso da Alemanha no final de 1982 aconteceu numa altura em que os computadores se começavam a democratizar com o aparecimento dos primeiros computadores pessoais. Os computadores foram-se tornando cada vez mais potentes. A certa altura estávamos a associar computadores individuais em paralelo para fazer um supercomputador – chamámos-lhe Centopeia, porque tinha cerca de cem “patas” - e depois um supercomputador já feito- a Milipeia. O novo centro de investigação apareceu nesse enquadramento, numa altura em que a ciência estava a crescer muito em Portugal, sob o impulso do ministro José Mariano Gago. O nosso trabalho no Centro consistia em fazer simulações computacionais, isto é, preparar e executar algoritmos que concretizem numericamente as leis ad natureza. Começámos, por exemplo, a juntar virtualmente átomos para fazer agregados atómicos. As grandes empresas farmacêuticas preparam hoje novas moléculas recorrendo também a simulações computacionais… Um artigo em que colaborei teve mais de 20 000 citações: foi citado, por exemplo, em artigos de bioquímica e de farmácia, pois era usado na construção virtual de moléculas. Nos últimos anos, quando dirigia a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, passei a interessar-me pela História da Ciência em Portugal. os meus últimos artigos científicos – assim como livros – têm sido escritos nesse âmbito.

P-  Foi Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra durante sete anos. Em 2012, lançou o livro “Pipocas com Telemóvel e outras Histórias de Falsa Ciência” em coautoria com David Marçal, no qual pretendeu desmistificar a “Falsa Ciência”, dando a conhecer a verdadeira Ciência. Quais as razões que o levaram a escrever este livro e porque recomenda a sua leitura?

CF  O David já tinha alguma experiência de lidar com os “inimigos da ciência”, alguns dos quais tentam imitar a ciência de modo a ter algum reconhecimento. Muita gente – os pseudocientistas – “macaqueiam” a ciência ao fazer actividades que nada têm de científico para além do aspecto. Nesse livro cotámos um série de histórias de pseudociência, tentando distinguir o que é a ciência e o que não é. Por exemplo, a homeopatia não é ciência, pelo que os produtos homeopáticos não têm qualquer base científica. No lançamento desse livro na FNAC do Colombo em Lisboa eu e o David engolimos uma embalagem inteira de um pseudo-medicamento para mostrar que aquilo era apenas água e açúcar. Ainda estamos vivos, o que não aconteceria se tivéssemos engolido uma embalagem de um medicamento real. Recomendamos a leitura porque achamos que ela pode ser esclarecedora para os leitores que não gostem de ser enganados. 

P- A atual situação pandémica trouxe uma visão diferente da Ciência. Na sua opinião, o que é que a mesma trouxe de positivo? 

CF-  Sim, a sociedade percebeu o valor da ciência quando assistiu, em tempo real, à resposta da ciência ao novo coronavírus. Em dez meses foram preparadas vacinas, algumas das quais, as de RNA, revolucionárias. Os seus resultados estão à vista de todos. A pandemia teria sido um problema muito maior não tivesse sido o engenho dos investigadores científicos, que aproveitaram muito trabalho de ciência básica que veio de trás. Não sendo apenas a ciência que nos salva, sem a ciência estaríamos perdidos. Contudo, ao mesmo tempo que o êxito da ciência estava à vista (não só nas vacinas, mas também nos testes e nos tratamentos), verificámos erupções de pseudociência, usando muitas vezes a Internet, que é, paradoxalmente, um resultado da ciência. Além da pandemia, há uma infodemia, uma difusão de notícias falsas. Eu e o David tratámos o tema no nosso mais recente livro “Apanhados pelo vírus - Factos e mitos sobre a COVID-19”, saído como os anteriores na Gradiva. Existe na humanidade tanto um lado racional como um lado irracional e estes dois lados estarão sempre em conflito. Esperamos apenas que o primeiro prevaleça.

P - A 12 de julho do presente ano despediu-se do ensino com uma palestra “História da Ciência na Universidade de Coimbra”. O que sentiu nesse momento? 

CF-  Tudo tem o seu tempo. Completados os 65 anos e com 44 anos de serviço, era tempo de passar o lugar a outros, mais jovens e mais activos. Gostava que eles tivessem as oportunidades que eu tive. Agora vou continuar o meu trabalho em prol da ciência em Portugal, embora em “aulas” deslocalizadas e à distância, que por vezes assumem a forma de artigos e livros. Vou também ter mais tempo para me dedicar a estudar e transmitir a História da Ciência. Senti nessa “última aula” o conforto, o carinho, proporcionado pela proximidade de muitos meus colegas, alunos e ex-alunos. Estou muito grato a todos. 

P- Existe algum avanço que poderá surgir nas próximas décadas na área da Ciência, que outrora considerou pouco provável de acontecer? 

CF- Em geral e também na ciência, é muito temporário fazer previsões. Ninguém, por exemplo, o impacto que ia ter no mundo a World Wide Web, que surgiu num quadro de investigação fundamental. Houve grandes avanços na computação nas últimas décadas, que levaram a um manancial de conhecimento novo. Os novos instrumentos sempre proporcionaram nova ciência, mas a amplitude que os computadores alcançaram na ciência e na sociedade era difícil de prever. Os desenvolvimentos no hardware e software levaram a avanços na genética como a sequenciação completa do genoma humano e também a avanços na “imitação” do cérebro, naquilo que hoje se chama inteligência artificial. Todos esses desenvolvimentos – e ainda outros – continuam em curso… 

P- Se pudesse descrever o seu percurso de renome numa frase, qual seria? 

CF-  Ninguém é bom a falar de si próprio. Mas diria, num esforço de síntese: “querer saber, dar a saber”. 

P- Para concluir, que conselhos gostaria de deixar aos nossos leitores, na sua maioria estudantes da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra.

CF-  Sendo a actividade de farmácia muito antiga – estou-me a lembrar do “Colóquio dos Simples”, o livro sobre propriedades medicinais das plantas da Índia publicado em 1563 em Goa por Garcia da Orta - ela continua a ser muito necessária. Com base na modelização computacional, tenta-se hoje produzir novos medicamentos para doenças que têm particular incidência. Vivemos hoje muito mais tempo do que no passado, em boa parte graças aos avanços da Biologia, da Medicina e da Farmácia. Vamos previsivelmente viver ainda mais. Para isso é necessário o trabalho das pessoas da Farmácia. Confio que os estudantes queiram estudar mais e que queiram proporcionar o seu saber ao maior número de pessoas.

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