quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

KENNETH CLARK E A CIVILIZAÇÃO

 


Meu artigo no I de hoje:

O inglês Kenneth Clark (1903-1983) foi o mais conhecido dos críticos de arte do século XX graças aos seus programas de televisão, cujo ápice foi a série Civilização, transmitida pela BBC em 1969 e retransmitida, desde então, em televisões de todo o mundo (os 13 episódios podem ser vistos no Youtube e a série em Blu-ray pode encomendar-se na Amazon).

O livro agora editado pela Gradiva com o subtítulo O Contributo da Europa para a Civilização Universal, em vez do original Uma Visão Pessoal, foi escrito a partir do guião da série televisiva. É impressionante o êxito alcançado tanto pelo programa como pelo livro. Como o autor reconhece no prólogo: «Escrever para televisão é fundamentalmente diferente de escrever um livro, não apenas no estilo e apresentação, mas no conjunto da abordagem ao tema. As pessoas que se instalam no sofá para um programa de serão esperam ser entretidas. Se se aborrecerem, desligam. E são entretidas tanto pelo que veem como pelo que ouvem.» O livro não tem nem vídeo nem som: mas tem ideias, que nos convidam à reflexão, e tem belas imagens, que nos seduzem. A televisão não tem de ser inimiga do livro.

Clark procura, servindo-se de muitos exemplos artísticos, num modo muito seu, transmitir o essencial da civilização ocidental desde o fim do Império Romano do Ocidente até ao alvor do século XX. Para ele o suprassumo situa-se no Renascimento italiano: Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci e Rafael. Sobre o pintor da Capela Sistina: «O poder visionário de Miguel Ângelo dá-nos a sensação de que ele pertence a todas as épocas, e talvez, acima de todas, à época dos grandes românticos, dos quais somos ainda os herdeiros quase falidos.»

Civilização é uma óptima prenda de Natal: está muito bem traduzido pelo historiador de arte e jornalista José Cabrita Saraiva, que assina uma apresentação prévia e está muito bem produzido por uma editora que sabe cuidar dos pormenores. Um sintoma do atraso cultural português é a ausência, até hoje, deste livro entre nós: havia apenas uma edição brasileira (Martins Fontes e Universidade de Brasília, 1979). Mas o livro veio ainda a tempo, podendo ser contraponto numa época em que o relativismo cultural se instalou.

De onde veio o lapidar título? O autor conta: «Foi um acidente. A BBC queria uma série de filmes a cores sobre arte, e achou que talvez eu pudesse dar alguns conselhos. Mas quando David Attenborough [o autor de O Planeta Vivo, que está vivo!], então responsável pela BBC2, me pediu para o fazer, usou a palavra Civilização, e foi esta palavra, e só esta palavra, que me convenceu a aceitar o trabalho. Não tinha uma ideia clara do que ela queria dizer, mas pensei que era preferível ao barbarismo, e imaginei que era o momento certo para explicar porquê.»

Explicado o título, mais difícil será explicar o que é a civilização. O autor, que na sua juventude foi seduzido pela obra do artista e crítico de arte oitocentista John Ruskin, fá-lo deste modo, ainda no prólogo: «O que é a civilização? Não sei. Não consigo defini-la em termos abstractos – por enquanto. Mas penso conseguir reconhecê-la quando a vejo; e neste momento estou a olhar para ela. Ruskin disse: «As grandes nações escrevem as suas autobiografias em três manuscritos, o livro dos seus feitos, o livro das suas palavras e o livro da sua arte. Nenhum destes livros pode ser compreendido se não lermos os outros dois, mas dos três o único fidedigno é o último”. Penso que isto é verdadeiro.»

Quem foi Kenneth Clark, ou melhor Lord Clark? Nascido em Londres, numa família abastada, estudou primeiro no Winchester College, uma escola privada masculina com mais de seis séculos, e depois na ainda mais antiga Universidade de Oxford. Aos 27 anos foi nomeado diretor do Museu Ashmolean de Arte e Arqueologia em Oxford e, três anos volvidos, já estava à frente da National Gallery, o famoso museu londrino na Trafalgar Square. Durante a Segunda Guerra Mundial, Clark viu-se forçado a esconder as preciosas obras de arte numa mina no País de Gales, enquanto atraía o público ao museu com numerosos concertos, que serviram para levantar o moral dos civis, atormentados com a queda das bombas. Houve quase dois mil concertos que foram ouvidos por mais de 550 000 espectadores. Nem todas as obras foram escondidas: Clark inaugurou a exibição do «quadro do mês», uma iniciativa que ainda hoje se mantém. Depois da guerra, tornou-se professor de Belas Artes em Oxford. Numa reviravolta surpreendente aceitou dirigir em 1954 a Independent Television Authority, a agência criada para supervisionar a televisão comercial, então aparecida para concorrer com a BBC. Já fora da agência, Clarke fez alguns programas sobre arte, a preto e branco, o primeiro dos quais, em 1958, Is Art Necessary?, num canal privado. Em 1966 fez a série The Royal Palaces, uma parceria público-privada, sobre o património da coroa britânica. Civilização, o seu primeiro programa a cores, foi, porém, a sua coroa de glória. Ficou mundialmente famoso pela sua autoria e apresentação, acima de tudo pelo seu carisma que levou a arte a todos os tipo de público. Os produtores Michael Gill e Peter Montagnon asseguraram as filmagens ao longo de três anos, em 117 sítios de 13 países. Attenborough conseguiu encaixar o custo total, exorbitante para a época, de 500 000 libras. Mas o resultado foi compensador: a série foi vista na estreia por mais de 2,5 milhões de espectadores britânicos e mais de 5 milhões de espectadores nos Estados Unidos, o que era muito bom para um programa cultural. Estava estabelecido um padrão para os grandes documentários televisivos.

Clark cometeu os seus erros, por exemplo na atribuição de obras de arte que a National Gallery adquiriu, mas isso não diminui em nada o extraordinário papel que teve na divulgação da arte. Ele foi para a arte o que Sagan representou, em 1982, para a ciência, com a série televisiva e o livro Cosmos. O livro Civilização em língua inglesa nunca deixou de estar presente nas livrarias desde que saiu a primeira edição em 1969. Clark conseguiu fazer um programa televisivo e um livro intemporais! Tão intemporais que a Tate organizou em 2014 uma exposição intitulada: «Kenneth Clark: Looking for Civilization». E, em 2018, a BBC produziu uma nova série com o título de Civilizações, da autoria dos críticos de arte Simon Schama, Mary Beard e David Olusoga.

Apesar dos seus gostos estéticos, algo conservadores, Clark era progressista na política: votava nos trabalhistas. Do ponto de vista religioso, manifestou-se por diversas vezes contrário ao ateísmo: achando a Igreja de Inglaterra demasiado secular, converteu-se ao catolicismo pouco antes de morrer.

Entre os seus livros merecem destaque, a.C. (antes de Civilização): Leonardo da Vinci: an Account of his Development as an Artist (1939), Landscape Into Art (1949) e The Nude: A Study in Ideal Form (1956). E d.C.: Animals and Men (1977), What is Masterpiece? (1979) e Feminine Beauty (1980). Comprei este último quando saiu e, passados mais de 40 anos, ainda o possuo. Em português, só havia duas traduções: O Nu. Um Estudo sobre o Ideal da Arte (Ulisseia, 1967), com tradução de Ernesto de Sousa, e Paisagem na Arte (idem, 1961).

Civilização centra-se nas artes plásticas. Fala pouco sobre literatura, ciência e filosofia. Não fala de Cervantes e quase não fala nem de Galileu nem de Kant. Nenhum português é mencionado, mas o tradutor conta as relações próximas entre Kenneth Clark e Calouste Gulbenkian. A colecção do arménio esteve quase a ficar em Londres…

 Para dar voz ao autor, escolho dois parágrafos do último dos 13 capítulos. O primeiro: «Aqui chegados devo revelar a minha verdadeira natureza – sou um bota de elástico. Continuo apegado a um conjunto de convicções que foram repudiadas pelas mentes mais brilhantes do nosso tempo. Acredito que a ordem é melhor que o caos, a criação melhor que a destruição. Prefiro a delicadeza à violência e o perdão à vingança. De modo geral penso que o conhecimento é melhor do que a ignorância, e tenho a certeza de que a empatia humana é melhor do que a ideologia. Acredito que, apesar dos triunfos recentes da ciência, os homens não mudaram assim tanto nos últimos dois mil anos; e por conseguinte devemos tentar continuar a aprender com a História. A História somos nós próprios.»

O segundo: «Também continuo apegado a uma ou duas convicções mais difíceis de sintetizar. Acredito, por exemplo, na cortesia, o ritual pelo qual evitamos ferir os sentimentos dos outros para satisfazermos os nossos próprios egos. E penso que devemos lembrar-nos sempre de que somos parte de um grande todo, a que por comodidade chamamos natureza. Todos os seres vivos são nossos irmãos e irmãs. Acima de tudo, acredito que certos indivíduos receberam de Deus o dom do génio, e valorizo uma sociedade que torna isso possível.»

Clark acrescenta: «A civilização ocidental foi uma série de renascimentos. Isto tem de dar-nos confiança em nós próprios». Mas previne: «Disse no início que é a falta de confiança, mais do que qualquer outra coisa, que mata uma civilização. O cinismo e a desilusão podem ser tão eficientes a destruir-nos como as bombas.» O final não é muito optimista. O autor cita o poeta irlandês W. B. Yeats («Aos melhores falta‑lhes convicção, enquanto os piores/ Ardem de paixão intensa»). No filme, arruma a seguir o livro na sua biblioteca, olha para uma escultura do seu amigo Henry Moore e sai de cena. Dá que pensar: passado mais de meio século, estaremos mais confiantes?

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