Meu artigo no jornal "Mil Folhas" da Biblioteca da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra:
Escrevo em casa rodeado pelos
meus livros. As paredes do escritório estão todas forradas de livros que se
alinham em duas, por vezes três filas. Quando algum deles me chama abro-o com carinho e dou-lhe a atenção que
merece, procurando o que ele tem para me dizer. Quando me demoro num deles,
fico invadido pela sensação de que, mesmo liberto do serviço das aulas, nunca
os conseguirei ler todos, nem sequer abri-los a todos e ler um bocadinho. E
como eu gostava de os conhecer a todos, até porque estão, por um motivo ou por
outro, perto de mim…
Foi o escritor e artista José de
Almada Negreiros que escreveu em Invenção do Dia Claro (1921): “Entrei
numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de
vida. Não chegam! Não duro nem para metade da livraria! Deve haver certamente
outras maneiras de uma pessoa se salvar, senão… estou perdido.” Eu não vou
durar nem para um quarto da minha “livraria”, que quero doar para que um dia, quando
eu já não durar, seja pública. Confesso que sou bibliófilo, aquele que não só
colecciona como ama os livros. Os meus não são livros muito antigos, mas espero
que um dia venham a ser antigos, uma vez que os livros são “máquinas do tempo”,
quebram as barreiras do tempo.
O bibliófilo José Pina Martins,
que reuniu uma notável colecção de livros do Renascimento, escreveu uma frase
que tenho no interior da porta do meu escritório: “Para se merecer ser
bibliófilo não basta formar uma biblioteca com milhares de livros encadernados
antigos e modernos num espaço interior esplendidamente decorado. A bibliofilia
é o resultado de um amor à beleza e à ciência. Diremos mesmo que, mais do que o
resultado de um acto de amor da beleza e da ciência, se identifica com esse acto.”
A beleza e a ciência parecem dois
aspectos separados da nossa relação com o mundo, mas, como bem mostra a
indagação que Almada Negreiros fez dos cânones do belo usando a linguagem matemática,
eles sobrepõem-se em muitos casos. Como escreveu em Ode a uma Urna Grega (1819) o poeta inglês John Keats: “A
beleza é a verdade, a verdade – e isto é tudo/ o que sabemos na Terra, e tudo o
que precisamos de saber.” Um século depois, o matemático francês, Henri Poincaré
acrescentou no livro Ciência e Método (1920): “O cientista não estuda a
natureza porque tal é útil; estuda-a porque tem prazer nisso e tem prazer nisso
porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela, não valeria a pena conhecê-la
nem a vida valeria a pena ser vivida.”
Numa parte da minha biblioteca tenho
livros sobre beleza e noutra livros sobre ciência. Mas há uma estante com livros
que versam a relação íntima, por vezes mesmo de identidade, entre beleza e
ciência. Já muitos espíritos brilhantes, ao longo dos séculos, exploraram o
paralelismo entre beleza e ciência e, quando os escuto através dos livros que
nos deixaram, sinto que sou herdeiro de uma mensagem antiga de que devo fazer
eco para que o futuro oiça. Já a passei nalguns dos meus livros (os livros que
eu próprio escrevi estão na estante mesmo por detrás do lugar de onde escrevo, sendo
por isso seu primeiro guardião) e espero que alguém a tenha já captado. Se ainda
não aconteceu, espero que um dia alguém a venha a ler, porque os livros são
muito pacientes, podem esperar muito tempo pelos seus leitores.
Guardo bem a minha biblioteca (os
livros escritos por mim e, muitos mais, os escritos pelos outros) para que o acto
de amor aos livros, que é – Pina Martins dixit – um acto de amor à
beleza e à ciência, seja não só meu, mas um dia também de outros. O papel da
biblioteca é ser um repositório de beleza e de ciência, para salvação, ou pelo
menos consolação, das gerações tanto actuais como vindouras. Um dia deram-me a guardar
a Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, uma das mais belas do mundo (ela
é, no seu conjunto, um símbolo magnífico da relação entre beleza e ciência). Se
algum dia chegar às portas do céu, poderei invocar em favor da minha entrada
nele que guardei livros valiosos. E, se, como diz Jorge Luís Borges, o paraíso for
“uma espécie de biblioteca” estou certo de que o bibliotecário S. Pedro me deixará
entrar. No caso de ele hesitar, poderei explicar-lhe,
que além da Biblioteca Joanina, guardei as outras coleções da Biblioteca Geral
da Universidade de Coimbra, entre as quais a Biblioteca do Colégio de Pedro, no
“Edifício Novo”, tutelada por uma estátua do santo. E guardei, embora de forma indirecta,
tidas as Bibliotecas da Universidade de Coimbra, incluindo a excelente Biblioteca
de Economia, ao criar o Serviço Integrado de Bibliotecas da Universidade de
Coimbra.
E acrescentei uma biblioteca nova
à Universidade de Coimbra, o Rómulo, cujo patrono é o poeta e professor de
Físico-Química Rómulo de Carvalho. Foi aí que um dia pude receber o poeta e
teólogo José Tolentino Mendonça, muito antes de ele saber que iria dirigir a Biblioteca
do Vaticano, outra das mais belas do mundo. E espero aí receber um dia o historiador
e bibliófilo José Pacheco Pereira, o feliz possuidor da maior biblioteca
privada em Portugal, que já tive o gosto de visitar. A biblioteca é o lugar-comum
de todos os que procuram a beleza e a ciência.
Não sou, muito longe disso, o
primeiro a fazer o elogio da biblioteca. Um dos meus autores preferidos, o
astrofísico e comunicador de ciência Carl Sagan, escreveu em Cosmos (1980)
de forma lapidar: “A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber,
a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os
melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história,
para nos instruírem sem nos fatigarem e para nos inspirarem a dar a nossa
contribuição ao saber coletivo da espécie humana. As bibliotecas públicas
dependem de contribuições voluntárias. Considero que a saúde da nossa civilização,
a profundidade da percepção que temos das bases de apoio da nossa cultura e o
nosso cuidado relativamente ao futuro podem ser medidos pelo tipo de apoio que
damos às nossas bibliotecas.”
1 comentário:
Lembro-me de "gostar de livros" desde antes de me conhecer. Sempre foram o meu melhor brinquedo, passatempo, entretém; desde pequena gostava de passear orgulhosamente, com eles, de braçado, ou na mão, sempre na posição correcta. Nunca de capa para baixo! Quando cresci, tive direito, a atingir as prateleiras superiores das estantes, aquelas onde se guardavam os "nobres livros do Avô", e que toda a família me tinha avisado antes: "esses ainda não são para ti"! Mas que glória, que prazer, ao descobrir cada um deles! Como um tesouro longamente procurado e ansiado, que maravilha de emoção ao ler as suas páginas. E depois da leitura, compreender as suas capas e saber mais sobre os seus autores! Quando estava já na Faculdade, com uma curta mesada, muitas vezes optei, de bom grado, por comprar um livro, em vez de almoçar na Cantina. Ainda hoje, quando encomendo livros do estrangeiro, a chegada de caixas e pacotes é aguardada ansiosamente e a sua abertura uma verdadeira "abertura de uma arca de maravilhas", numa comoção que me leva ás lágrimas! Ainda hoje e sempre, a minha prenda favorita são livros e, frequentemente, comento em tom de brincadeira, que os livros são subversivos. Estão muito quietos nas prateleiras das livrarias, á nossa espera, em digno silêncio. Mas basta-me passar por eles que se estabelece de imediato uma atracção "emocional", sem retorno nem esquecimento! E ainda por cima, se reproduzem, sem nos darmos conta! Cada vez mais as nossas estantes estão cada vez mais "superpovoadas", exigindo cada vez mais espaço! Mas confesso, conheço-os a todos, vivo no dilema de Almada Negreiros, mas gosto de viver rodeada deles, os nossos melhores e pacientes amigos! Elizabete Brites Fernandes Albuquerque
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