Meu capítulo do livro "Breve Tratado das Virtudes Desportivas" que saiu do prelo da Universidade Católica, coordenado por Alexandre Palma e João Eleutério:
Introdução
Já os
antigos gregos criticavam a húbris (em grego “hybris”), que significa orgulho
desmedido, presunção extrema, arrogância contra os deuses, e que foi o tema de
várias histórias mitológicas, que continham ensinamentos morais. A prática da
húbris significa ir além dos limites considerados naturais, exceder aquilo que,
ainda que de forma apenas implícita, está estabelecido. O castigo dos deuses
para a húbris era a némesis, isto é, a vingança que consiste no retorno aos
limites que foram indevidamente transpostos.
O Cristianismo recebeu de herança esse sentimento maléfico de excesso de limites, considerando grave pecado grave o orgulho e uma notável virtude a humildade. No Livro dos Provérbios do Antigo Testamento, encontramos sentenças como «Ele [Deus] zomba dos zombadores, mas concede graça aos humildes» (3:34), «Quando vem o orgulho, chega a desgraça, mas a sabedoria está com os humildes» (11.2), ou «O orgulho vem antes da destruição» (16:18). No Novo Testamento encontramos frases do mesmo teor como «Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança» (Mateus 5:5), «Pois todo aquele que a si mesmo se exaltar será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado» (Mateus 23:12) e «Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a vocês mesmos» (Filipenses 2:3).
Para Tomás
de Aquino, o filósofo medieval italiano que conseguiu a “quadratura do círculo”
ao fundir uma parte da visão antiga com a cristã, a humildade consistia em «conservar-se
dentro dos seus próprios limites, não tentando alcançar coisas acima de si, mas
submetendo-se ao que lhe é superior» (Summa Contra Gentiles, Aquino 2017,
livro IV, cap. LV). Na teologia do século XX, o escritor norte-irlandês C. S.
Lewis, o bem conhecido autor das Crónicas de Nárnia, escreveu: «Foi
através do orgulho que o demónio se tornou demónio: o orgulho leva a todos os
outros vícios: é o estado de espírito completamente anti-Deus» (Lewis 2001). É-lhe
também atribuída a frase: «humildade não é pensar menos de si mesmo, mas pensar
menos em si mesmo.» Apesar de a
inspiração poder provir de Lewis, a frase deve antes ser creditada ao pastor
protestante e escritor norte-americano Rick Warren, autor do best-seller
The Purpose Driven of Life (Warren 2012).
O sentido religioso – etimologicamente
religião significa ligação – obriga a humildade, pois na aderência a uma
religião expressa-se a necessidade de estar com os outros, partilhando com eles
crenças e expectativas. A humildade é a virtude que consiste no reconhecimento
das limitações tanto do género humano como do próprio indivíduo e na prática conduzida por essa
consciência. Uma pessoa humilde respeita os outros: não se exibe nem se vangloria,
considerando-se superior aos demais.
Uma cientista que Einstein muito admirava, a físico-química francesa Marie Curie ou Madame Curie, nascida Sklodowska na Polónia, único prémio Nobel em duas disciplinas científicas diferentes, era também uma figura humilde, completamente dedicada ao seu trabalho e à sua família. Ficou proverbial o seu continuado espírito de missão à ciência e o seu alheamento relativamente às glórias do mundo. Sobre ela disse Einstein que «de todos os seres celebrados, foi o único a quem a fama não corrompeu.» Embora a maioria dos cientistas tenham sido, como Einstein e Madame Curie, pessoas humildes, a verdade manda dizer, dizer que a história da ciência revela a existência de sábios arrogantes ou com laivos de arrogância, como foi o caso do físico inglês Isaac Newton, que tentou, por vários meios, denegrir a obra dos outros para enaltecimento da sua. A peça Cálculo, do bioquímico e dramaturgo norte-americano Carl Djerassi (Djerassi 2012), transmite de um modo literário o seu desencontro com o filósofo alemão Gottfried Leibniz, mas ele esteve longe de ser caso isolado.
No quadro do pensamento sergiano (de Manuel Sérgio, António Sérgio que me desculpe), um jogador ou um treinador ou um dirigente desportivo podem mostrar a sua qualidade sem necessitar de se auto-proclamar como “o melhor”, depreciando os outros. Um jogador pode ser muito talentoso, mas deve reconhecer os limites das suas capacidades, respeitando com isso as capacidades dos outros. O reconhecimento é sempre mais justo e, portanto, mais verdadeiro e mais duradouro, quando é feito pelos outros. Além do mais, uma vitória ou um bom resultado podem ser seguidos por uma derrota ou por um mau resultado, a um dia de glória pode seguir-se um dia de frustração. Só um conjunto bem arreigado de valores – no qual se incluem a vontade de ganhar, mas também a humildade nas vitórias ou nos bons resultados – pode sustentar uma carreira prolongada. Como diz uma frase que é vox populi “ganhar ou perder, tudo é desporto.” Manuel Sérgio, o autor, entre vários outros, dos livros Filosofia do Futebol (Sérgio 2009), Crítica da Razão Desportiva (Sérgio 2012), e Para uma Epistemologia da Motricidade humana (Sérgio 2018), disse-o de uma outra maneira: «O desporto não pode ser uma guerra. O desporto tem de ser encontro, tem de ser abraçar os outros. Eu costumo dizer que não há jogos, há pessoas que jogam.»
Já contei noutro lado (Rodrigues e Pinheiro 2016) o que foi a entrada na
minha segunda década, aos dez anos, a ver na televisão o que fez Eusébio, de
seu nome completo Eusébio da Silva Ferreira, no memorável jogo de Portugal
contra a Coreia do Norte no Campeonato Mundial de Futebol de 1966, realizado em
Inglaterra. Ninguém ganha jogos de futebol sozinhos, mas esse jogo foi ganho quase
só por Eusébio, um atleta verdadeiramente excepcional, que, tendo tido uma
origem humilde em Lourenço Marques (hoje Maputo), em Moçambique, permaneceu
fiel a essa sua origem, nunca se deslumbrando com os grandes sucessos que foi
conhecendo em Portugal e no mundo. Dos cinco golos nacionais nos 5-3 contra a
Coreia, quatro foram seus (o último foi do seu companheiro José Augusto). Esses
golos ficaram lendários porque, aos 25 minutos de jogo, a Coreia já ganhava a
Portugal por 3-0: foi uma “reviravolta épica”.
De cada vez que Eusébio metia um golo, agarrava na bola e trazia-a
rapidamente ao meio do campo, porque o jogo não estava acabado. Declararia anos mais tarde: «Eu acho que o
melhor golo foi o terceiro, o golo do empate. E quando fiz o terceiro, respirei
fundo.» Poucos dias depois o mesmo Eusébio, o que se sagrou o melhor marcador
desse campeonato, com um total de 9 golos, chorava depois de perder com a
Inglaterra por 2-1 (golo português de Eusébio, de penálti, quase no final, amenizando a derrota): os
ingleses tinham sido os melhores em campo, ou pelo menos tinham marcado mais
golos que é o que conta para a decisão desportiva. Mas ganhar ou perder, tudo é
desporto. No jogo para o terceiro lugar contra a Rússia, Portugal ganhou por
2-1: Eusébio executou, perto do início, um penálti contra um dos melhores guarda-redes
de sempre em todo o mundo, Lev Yashin. O jogador nacional, que cumprimentou cordialmente
o guarda-redes depois de marcar golo, afirmou no fim do jogo, bastante feliz,
mas humilde: «Disse-lhe que ia marcar para a esquerda e marquei mesmo. Não
engano os amigos.»
Pode Eusébio ter ganho 11 campeonatos pelo Benfica, ter sido o melhor
marcador em três Taças dos Campeões Europeus e ter sido, em 1965, o melhor
jogador europeu (“Bota de Ouro”), mas a sua maior virtude na vida foi a humildade.
Essa foi, de resto, a sua marca mais lembrada quando faleceu em 2014, um evento
que causou grande consternação nacional.
O segundo exemplo diz respeito ao ciclismo de estrada. No Verão de 1973 eu tinha
acabado o sétimo ano dos liceus e preparava-me para entrar na Universidade de
Coimbra. Passei férias, num parque de campismo, na Figueira da Foz. Foi assim
que pude assistir ao vivo à chegada de Joaquim
Agostinho numa etapa memorável da volta a Portugal que se desenrolou entre Abrantes e Figueira
da Foz, por vias que na época não estavam no melhor dos estados. O atleta do
Sporting chegou com 12 (doze!) minutos de avanço sobre o seu mais directo rival,
o benfiquista Fernando Mendes. O que se passou? Pois o sucedido soube-se depois.
Agostinho tinha parado para urinar e, quando voltou ao pelotão, deu pela falta
de Mendes. Logo arrancou atrás dele, apanhou-o num ápice (quando passou por ele
terá dito: «Acompanha-me agora se és capaz…») e continuou a aumentar o seu avanço
até à meta (Tovar 2017). Não atendeu aos pedidos de Artur Agostinho, o
jornalista ligado à organização da Volta (sem qualquer relação familiar com o
atleta), para abrandar um pouco, pois estava a “matar” a competição. As
palavras atribuídas a Joaquim Agostinho não significam que o ciclista era arrogante,
bem pelo contrário. Nascido de origem humilde numa aldeia de Torres Vedras, continuou
humilde depois de entrar, só aos 25 anos, no mundo do ciclismo (tinha aprendido
a pedalar só aos 23), onde logo revelou os seus dotes: ele era uma verdadeira
“força da Natureza”. Foi o seu espírito
humilde que ajudou a ganhar não só três Voltas a Portugal como a obter um
segundo lugar na Volta a Espanha e dois terceiros lugares na Volta a França,
onde teve 13 participações com um total de oito classificações nos dez
primeiros lugares. Teve um lendário triunfo em 1979 numa etapa de montanha nos
Alpes Ocidentais que terminou no Alpe d’Huez, ao fim de um percurso de uma luta
intensa contra o desnível que revela os grandes campeões (foi erigido um busto
de Agostinho numa das curvas desse itinerário). Lembro-me de ouvir, na rádio, o
relato dessa prova.
Agostinho morreu a 19 de Maio de 1984, dez dias depois de ter caído da sua bicicleta
quando liderava a Volta ao Algarve. Essa queda foi devida à travessia da
estrada por um cão, muito perto da linha de chegada à meta na Quarteira. Ainda
terminou a etapa, ajudado por colegas de equipa, mas foi-lhe diagnosticado um grave
traumatismo craniano. De pouco lhe valeram os melhores cuidados médicos que lhe
foram prestados nos Hospitais de Faro e da CUF, em Lisboa. Eu já era professor auxiliar
na Universidade de Coimbra, pouco mais de um ano volvido sobre o meu
doutoramento na Alemanha, quando tudo isso se passou e fiquei, como todo o
país, desgostoso com o trágico fim, aos 43 anos, de um campeão, ocorrido em plena prova.
Por último, um exemplo da canoagem, uma modalidade que tem tido grande
expansão em Portugal nos últimos tempos. Tive a oportunidade de conhecer o
canoísta Fernando Pimenta, num jantar promovido em 2019 pelo Ginásio Clube
Figueirense para entrega dos Prémios Nacionais Bento Pessoa (José Bento Pessoa
foi um ciclista figueirense pioneiro da modalidade entre nós na passagem do
século XIX para o XX), que incluíram um
prémio a uma cientista figueirense a trabalhar nos Estados Unidos, Sílvia
Curado, que tive a honra de representar. Impressionou-me a humildade do atleta,
natural de Ponte de Lima, que eu admirava pelas suas extraordinárias prestações
desportivas. No jantar, permaneceu sempre atento ao que podia comer e depois
dele não demorou a recolher-se, uma vez que, no dia seguinte, de manhã cedo, o
esperava mais um treino na vizinha pista de Montemor-o-Velho. Ele pertence ao
areópago de cinco portugueses que conquistaram duas medalhas olímpicas: ganhou
a medalha de prata de K3 1000 m nos Jogos Olímpicos de Londres, juntamente com o
seu colega Emanuel Silva e ganhou a medalha de bronze na categoria de 2012 de
K1 1000 m nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, realizados em 2021. Além disso,
foi campeão do mundo em Racice, na República Checa, em K1 5000 m, depois de, no
dia anterior, ter obtido a medalha de prata em K1 1000 metros. Em vários campeonatos
do mundo de canoagem, conquistou um total de três medalhas de ouro, três de prata
e quatro de bronze. E, em campeonatos europeus da modalidade, obteve 5 medalhas
de ouro, 6 de prata e 7 de bronze. Num dia se ganha e noutro dia quase se ganha,
porque há outros igualmente talentosos e preparados. Há que saber ganhar e saber perder.
Não era preciso Fernando Pimenta declarar-se humilde para reconhecer a sua
humildade. Mas, à partida para os Jogos de Tóquio, o atleta, com 32 anos, proferiu
estas palavras: «Vou
dar tudo por tudo para conseguir o melhor resultado possível. Já o fiz durante
este tempo todo de preparação, com inúmeros sacrifícios, e agora vou desfrutar
do processo da competição. Os portugueses podem contar com o Fernando Pimenta
de sempre: lutador, sonhador, ambicioso, humilde e com muita vontade de
representar Portugal e de conquistar um grande resultado» (O Minho 2021).
Não foi preciso dizer que ia ter uma nova medalha para a conseguir. À chegada a
Lisboa, declarou que já tinha na sua mente os Jogos Olímpicos de Paris, a
realizar em 2024.
Carlos Fiolhais
Referências
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Aquino, Santo Tomás de. 2017. Suma
Contra os Gentios. Campinas: Ecclesiae, livro IV, Cap LV.
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de Coimbra, com prefácio de Carlos Fiolhais.
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- Fiolhais,
Carlos. 2005. «Einstein e a Religião», Estudos. Nova sér. n.º 4, 323-
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https://eg.uc.pt/bitstream/10316/12369/3/einstein_e_a_religiao.pdf
-
Fiolhais, Carlos, 2021, «Para uma ciência da complexidade: Um conceito-chave no
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Pensar à Frente: Corporeidade, Desporto, Ética, Cultura e Cidadania - Estudos
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- Rodrigues, César e Pinheiro, Jacinto. Mundial 66 Olhares.
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- Sérgio, Manuel. 2018. Para uma
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https://observador.pt/especiais/volta-portugal-agostinho-chagas-venceslau-plaza/
- Warren,
Rick. 2012, The Purpose Driven Life: What on Earth am I here for? Grand
Rapids – Michigan : Zondervan.
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