Meu artigo no I de hoje:
Autos-de-fé. A Arte de
Destruir Livros, do filósofo francês Michel Onfray (n. 1959), é o mais
recente dos «Livros Vermelhos» da Guerra & Paz. Esta chancela tem colecções
de livros brancos, negros, amarelos e vermelhos e a «linha vermelha» distingue-se
pelos textos claros e directos em defesa das ideias dos seus autores. São,
naturalmente, polémicos. Já saiu, por exemplo, um sobre o esclavagismo do
historiador João Pedro Marques (Escravatura, 2017) e outro sobre a
COVID-19 do ensaísta francês Bernard-Henry Lévy (Este Vírus que nos Enlouquece,
2020).
Michel Onfray esteve no conselho
editorial de uma revista fundada por Bernard Henry-Lévy (BHL), mas saiu por
causa de divergências insanáveis. De resto os dois têm polemizado em várias
ocasiões, não sendo BHL bem tratado neste novo livro. O facto de o editor da
Guerra & Paz, Manuel Fonseca, os ter escolhido para autores da mesma
colecção não pode deixar de significar que ele aprecia a liberdade e a pluralidade
de pontos de vista. Desfrutando os dois de exposição nos media, Onfray
tem um percurso intelectual tanto ou mais controverso do que o de BHL. De
raízes humildes, esteve internado num orfanato dos Salesianos entre os 10 e os
14 anos, uma experiência que o marcou negativamente, como ele próprio descreve
no seu livro A Potência de Existir: Manifesto Hedonista (Campo da
Comunicação, 2009). Tornou-se um ateu militante. Mais: tornou-se avesso a qualquer
autoridade, seja da Igreja seja do Estado. Estudou Filosofia na Sorbonne e, aos
27 anos, defendeu a sua tese doutoral na Universidade de Caen, na Normandia,
região de onde é natural. Foi depois, ao longo de quase duas décadas, professor
do liceu. Em 1991 colaborou com a revista de BHL, ficando então a ser conhecido
pelos seus controversos escritos e frontais aparições televisivas. Hoje em dia
é um autor muito badalado, com mais de 115 obras, algumas delas de grande
sucesso não só em França como fora do Hexágono, traduzidas que foram em mais de
25 línguas, incluindo, como não podia deixar de ser, o português. Rompendo com o
seu trabalho pedagógico dentro do sistema oficial de ensino, fundou em 2002 a
Universidade Popular de Caen, na peugada de iniciativas semelhantes que tinham
surgido no final do século XIX numa perspectiva socialista ou socializante. Esta
universidade, que ele deixou há três anos, tornou-se um enorme sucesso, ao atrair
milhares de pessoas.
O pensamento de Onfray é materialista
e hedonista, na linha dos atomistas e epicuristas gregos. Materialista, revê-se
no poema De Rerum Natura do poeta latino Tito Lucrécio Caro, do século I
a.C., segundo o qual tudo no mundo é mudança natural, completamente fora da
vontade dos deuses, não havendo lugar para o temor da morte. Dos autores mais
modernos, gosta de se inspirar em Nietzsche, não só no conteúdo, mas também no
estilo. Libertário, simpatiza com Proudhon.
Os seus livros são assumidamente polémicos.
O mais bem-sucedido deles, O Tratado de Ateologia: Física e Metafísica,
que vendeu 350.000 exemplares, está publicado em português (Edições ASA, 2007).
Nele ataca a fé cristã e as crenças religiosas em geral. A lista dos seus
outros títulos traduzidos em português dá uma ideia da sua liberdade de
espírito: Política do Rebelde: Tratado de Resistência e de Insubmissão
(Instituto Piaget, 1999); A Escultura do Eu: A Moral Estética (Quarteto,
2003); Anti-Freud: E Se Lhe Dissessem que Freud é uma fraude? (Objectiva,
2012); Teoria do Corpo Amoroso: Para uma Erótica Solar (Temas e Debates,
2001); O Real Nunca Existiu: O Princípio de Dom Quixote (Cavalo de
Ferro, 2015); Teoria da Viagem: Uma Poética da Geografia (Quetzal, 2009;
reedição, 2019); Decadência: O Declínio do Ocidente (Edições 70, 2019);
e Cosmos: Uma Ontologia Materialista (idem, 2021). Deixo notas de dois
destes livros: Anti-Freud é um dos maiores libelos jamais escritos
contra o que Onfray diz ser a «charlatanice» do famoso médico austríaco; por
outro lado, Cosmos, cujo original ocasionou acesos debates (em França, pois
em Portugal tudo funciona num modo «português suave»), faz parte de uma
trilogia intitulada «Breve Enciclopédia do Mundo», da qual Decadência é
outro volume.
Olhando agora para o domínio da
política, Onfray votou em François Mitterrand, na sua primeira eleição em 1981,
quando a sua maioria de esquerda lhe permitiu formar um governo com quatro
comunistas. Mas o filósofo tem vindo a mover-se para a direita do espectro
político. Ele não tem fugido à discussão pública, por vezes de um modo
provocador. Nos últimos anos, tem sido acusado de estar próximo de algumas
posições da extrema-direita francesa, cujas causas nacionalistas e identitárias
são bem conhecidas. Pela minha parte, e apesar de apreciar a polémica, não
tenho quaisquer dúvidas em julgar que Onfray entrou em derivas perigosas quando,
no plano científico, assumiu o negacionismo de alterações climáticas, uma
posição que é hoje intelectualmente insustentável. Também no plano religioso, alinhando
numa via tradicionalista, criticou o Papa Francisco por ele não apoiar a missa
em latim. Pergunto-me por que razão é que um ateu se quer imiscuir nos assuntos
da Igreja…
Em Autos-de-fé. A Arte de
destruir livros, Onfray empreende um ataque ideológico cerrado contra
aqueles a que chama «fascistas de esquerda». Critica, com linguagem forte, os
críticos de meia dúzia de livros, cujos conteúdos principais ele considera
estarem certo. Antes de enumerar essas obras, queria transmitir o essencial da
mensagem do autor, usando as palavras que ele próprio escolheu. Na Introdução,
começa por dizer o que pensa do esquerdismo revolucionário de 1968: «O Maio de
68, que muito destruiu e, infelizmente, pouco construiu que seja digno desse
nome, promoveu uma mudança radical de valores no decénio seguinte: o louvor da
pedofilia, o protesto contra as notas e as avaliações dos deveres, a
identificação das CRS [força especial de polícia francesa] com as SS,
destruição da razão, mascarada no elogio ao louco e às margens, apresentados
como novos paradigmas, abolição da competência especializada, celebração de
ditadores, e a fascização dos republicanos» [omiti, para abreviar, o conteúdo
dos parêntesis, dando exemplos]. E o tema central da obra está neste passo: «Autos-de-fé
propõe um exercício prático: ver como livros essenciais para estabelecer a
verdade foram torpedeados para evitar que as suas mensagens, verdadeiras, chegassem
ao seu destino. (…) Foram muitos os livros que se propuseram destruir as
mitologias do momento. Mas é sabido: o primeiro a dizer a verdade tem de
ser executado.» Que livros são esses, todos eles saídos no pós-Maio de 1968? São
seis, mas só dois tiveram edição entre nós. Eis os títulos, com uma breve
exposição dos conteúdos:
1-Simon Leys, Les Habits Neufs du Président Mao, 1971. É uma
crítica da Revolução Cultural, da autoria de um sinólogo francês. Apesar de
serem conhecidas os extremos a que chegou o maoismo, este atraiu alguns intelectuais
ocidentais.
2-Aleksandr Soljenítsin, O Arquipélago
Gulag (Bertrand, 1977; nova edição: Sextante, 2017). Esta obra do Nobel
russo serve para contrastar a realidade atroz dos gulags estalinistas
com as simpatias de muitos ocidentais pelo regime soviético.
3-Paul Yonnet, Voyage au Centre du Malaise Français, 1993. Este
livro fala de certas formas de racismo que aparecem ocultas sob o manto do
antirracismo, um tema que regressou nos dias de hoje.
4- Samuel P. Huntington, O
Choque das Civilizações (Gradiva, 1999). O cientista político
norte-americano propôs que a principal causa de conflitos no mundo pós-guerra
fria seriam as identidades culturais e religiosas: terá de haver um conflito entre as
civilizações islâmica e ocidental.
5- Le Livre Noir de la Psychanalise, 2005. De um modo muito
semelhante a Anti-Freud este
livro reúne um conjunto de textos cujo objectivo é desmascarar a psicanálise
freudiana.
6- Sylvian Gouguenheim, Aristote au Mont Saint-Michel, 2008. Um
medievalista desfaz o mito do Islão como civilizador do Ocidente, dizendo que,
em muitos casos, não houve intermediação árabe na transmissão da herança
greco-latina ou, quando houve, ela se deveu a árabes cristãos.
Na conclusão, escreve: «Não há
necessidade de ser um grande académico para compreender que o esquerdismo
cultural e a fachoesfera de esquerda constituem a matriz niilista da nossa
época. Desde há meio século a ideologia niilista reina sem quartel. Ela não
debate, ela insulta; ela não dialoga, ela engana; ela não partilha, ela anatomiza;
ela não respeita, ela suja; ela não discute, ela condena. A disputatio
medieval não é o seu modelo, ela prefere o tribunal da Inquisição.» Mais à
frente: «A ideologia da cultura do cancelamento, o pensamento woke
provêm desse sartrismo. Os caminhos teóricos estão cobertos de mato, mas, pelas
linhas de força e as linhas de fuga, as coisas tornam-se claras: o
neofeminismo, a desconstrução, o descolonialismo, a islamofilia, que
enlouqueceu com o islamo-esquerdismo, a esquerda interseccional, a ideologia
transhumanista com o seu cavalo de Tróia, os LGBTQ+, tudo isso provém das
elucubrações dos Thénardier [os vilões dos Miseráveis, de Victor
Hugo
Voltando à Introdução, veja-se
como a linguagem do autor chega a ser desabrida: «Um porco não tem necessariamente
o aspecto de um porco, pois não tem um aspecto definido, mas existe em todos os
regimes. Também o nosso regime tem os seus». Ora aqui está, goste-se ou não,
um autor sem papas na língua.
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