quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

PARA UMA CIÊNCIA DA COMPLEXIDADE: UM CONCEITO-CHAVE NO PENSAMENTO DE MANUEL SÉRGIO


Meu capítulo publicado no recente livro de homenagem a Manuel Sérgio (Afrontamento), 

Pensar à Frente - Corporeidade, Desporto, Ética, Cultura e Cidadania

Estudos sobre Manuel Sérgio

de José Eduardo Franco e Miguel Real 

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 No ano de 2005, foi publicado por uma nova editora de Coimbra, a Ariadne, uma empresa que estava então em incubação no Instituto Pedro Nunes, mas que infelizmente não conseguiu sobreviver por muito tempo, um pequeno livro de Manuel Sérgio (n. 1933): Para um Novo Paradigma do Saber e.… do Ser. Era apenas mais uma adição à sua já então longa lista da produção bibliográfica, que desde então não tem cessado de aumentar. Sérgio já antes tinha publicado títulos como Para uma Epistemologia da motricidade humana: Prolegómenos a uma Ciência do Homem (1988), a sua tese de doutoramento na Universidade de Aveiro e um texto seminal entre nós da nova ciência da motricidade humana, que se procurava diferenciar da Educação Física e Desporto pelos seus maiores âmbito e complexidade, Motricidade Humana – Contribuições para um Paradigma Emergente (1994), Um Corte Epistemológico: da Educação Física à Motricidade Humana (1999)  (referências bibliográficas mais completas encontram-se no final). Como revelam todos esses títulos, o autor procurava empreender uma uptura relativamente ao pensamento até então dominante sobre Educação Física e Desporto.

 Em Para um Novo Paradigma do Saber e... do Ser, nessa compilação de três textos de teor filosófico, que ocupam outros tantos capítulos: o primeiro é um manifesto que pugnava pela aplicação de complexidade como conceito-chave da motricidade humana (a ideia de complexidade é essencial na abordagem de Sérgio ao movimento do corpo humano); o segundo fala da relação entre motricidade e envelhecimento Manuel Sérgio, hoje com 87 anos, dá-nos um excelente exemplo de envelhecimento); e o terceiro discutia a educação popular do brasileiro Paulo Freire (Sérgio, tal como outro famoso Sérgio da nossa história cultural, é um grande pedagogo, interessando-lhe a formação dos seres humanos em todas as faixas etárias). Para além de outros nomes mais antigos, autor citava filósofos como, entre os contemporâneos, os alemães Martin Heidegger e Juergen Habermas e os franceses Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty e Paul Ricoeur, mas também cientistas como o químico belga de origem russa Ilya Prigogine (1917-2003) e o médico e neurocientista português António Damásio (n. 1944

Tive a honra de ser convidado por Manuel Sérgio para escrever um prefácio para aquela obra. Como minha homenagem a Manuel Sérgio, não posso deixar de reflectir aqui, quinze anos depois, sobre o seu tão fértil pensamento. Recupero em parte esse meu prefácio, ampliando-o no que respeita à apresentação das ciências da complexidade, as quais, embora continuando a tradição da ciência que vem da Revolução Científica, constituem hoje uma aproximação ao mundo que é em larga medida inovadora. O presente texto não é mais do que o olhar de um físico e divulgador de ciência sobre os fundamentos conceptuais de um notável filósofo do desporto português.

 É curioso o duplo sentido da palavra “físico”. Qualquer bom dicionário informa: físico (do grego physikós, da natureza) significa, por um lado, “s. m., aquele que estuda Física ou é versado nela; adj. relativo à Física, relativo às condições e leis da Natureza, corpóreo, material, natural” e, por outro, “s. m. médico (termo antigo); adj. conjunto das qualidades externas do homem, aspecto, configuração, conjunto das funções fisiológicas”. Há obviamente algo em comum entre os dois sentidos, um, mais geral, relativo à Natureza, e o outro, mais particular, relativo ao corpo humano, que é evidentemente parte da Natureza. O “físico” denota nos dois casos o que é material, palpável. E tudo o que é material move-se, seja um corpo celeste seja um corpo terrestre, um dos quais o corpo humano. A Física começou precisamente na viragem do século XVI para o século XVII, com o italiano Galileu Galilei, quando ele resolveu investigar o movimento dos corpos inanimados, como um bola sujeita à gravidade da Terra (um “grave”) ou a própria Terra (ela própria uma esfera sujeita à força da gravidade do Sol: eppur si muove terá dito Galileu após a sentença do Santo Ofício), Contudo, Galileu estudou Medicina na Universidade de Pisa (não terminou o curso tornando-se um autodidacta, um dos mais célebres de sempre) e, portanto, poderia ter sido um “físico” no sentido de médico, em vez de um físico, no sentido moderno. Nas suas investigações de física incluiu a resistência dos corpos vivos ao movimento: o livro Diálogos e Demonstrações Matemáticas em torno de Duas Ciências Novas, de 1638, cinco anos posterior à sua condenação pela Inquisição, começa pela questão de saber o que acontece a corpos animais que caem (o que, convenhamos, é mais grave do que a queda de corpos inanimados). Foi Galileu que propôs a metodologia científica que ainda hoje usamos: não apenas fundou uma “nova ciência” – a ciência experimental em contraponto à ciência aristotélica - como também fundamentou o método que esta deveria usar, baseado na observação, na experiência e no raciocínio, muito em particular o raciocínio matemático (escreveu “a Natureza está escrita em caracteres matemáticos”).

 Um notável contemporâneo de Galileu que foi não apenas um cientista como um filósofo foi o francês René Descartes. Para além de resultados científicos, como por exemplo na área da óptica, deve-se-lhe uma posição de mudança na metodologia filosófica, bem patente em O Discurso do Método (1637, o ano anterior ao do último livro de Galileu), de seu título completo. Discurso do Método para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência, cujos apêndices são “ensaios do método” (pela ordem com que surgem, a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria). A maior das edições hoje disponíveis descarta normalmente esses apêndices, por eles serem mais técnicos, mas a Dióptrica, que trata da natureza da luz, das leis da reflexão e da refracção, e da óptica fisiológica, incluindo os meios para melhorar a visão, foi uma obra essencial na evolução da Física. Descartes estudou outros temas de Física, incluindo astronomia. Descartes concordava com Galileu quanto à defesa da teoria heliocêntrica de Copérnico, mas, receando que lhe pudesse acontecer o mesmo que ao sábio pisano, Descartes adiou a publicação do seu livro Tratado do Mundo e da Luz, escrito entre 1629 e 1633, mas que só sairiapostumamente, em 1660. O Discurso do Método mais não era que um prefácio a essa obra maior.

Uma das contribuições mais relevante de Descartes para o pensamento moderno foi o chamado “dualismo mente-corpo”, que separa claramente a mente (res cogitans, ou coisa pensante) do corpo (res extensa, coisa extensa). Esse dualismo transparece claramente do seu livro Meditações sobre Filosofia Primeira (1641), que é uma extensão do Discurso do Método. De acordo com essa separação, os fenómenos mentais não são físicos. O ponto de contacto entre espírito e corpo seria minúsculo: a glândula pineal, existente no cérebro não apenas no homem, mas de todos os vertebrados. Se essa distinção tinha a vantagem de separar a questão de Deus da questão do mundo natural, permitindo estudar este último como se Deus não existisse (existia obviamente para Descartes, mas num outro domínio superior), ela impede, por outro lado, o estudo da mente por parte daa ciências naturais. A teses de Descartes é abertamente criticada hoje, em boa parte devido aos avanços das ciências. O livro mais famoso de Damásio intitula-se significativamente O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano (1994) (ver no final outros livros do autor): Damásio explicou que as emoções que influenciam o pensamento estão ligadas ao corpo. O cérebro foi, na história natural, criado a partir do corpo, tendo sempre crescido com ele. O filósofo contemporâneo norte-americano John Searle declarou de um modo muito incisivo (https://blogs.loc.gov/kluge/2015/03/conversation-with-john-searle/ ): “Há um certo número de desastres famosos na filosofia, e Descartes foi um dos maiores. (…) A sua maior catástrofe foi o dualismo, a ideia de que a realidade se divide em dois tipos de de substâncias, a matéria e o espírito. (…)  Vivemos num mundo, não em dois ou três ou mais, e o que consideramos consciência e mente é uma característica biológica de certos tipos de organismos. Descartes foi incapaz de ver isso, porque ele achava que a consciência só poderia existir numa alma, e a alma não era uma parte do mundo físico.”

Hoje, na senda de Galileu (e também, embora só em parte, de Descartes) a Física continua a ser a ciência geral da matéria, da energia e do movimento, que não pode deixar de informar a nova ciência do movimento do nosso corpo, a ciência da “Motricidade Humana” cunhada por Manuel Sérgio. Mas hoje sabemos que a mente ou espírito resultam da acção do cérebro e que o cérebro não passa de uma gigantesca rede de neurónios, nos quais ocorrem fenómenos físico-químicos extremamente complexos. Não admira, por isso, que, atento aos avanços da ciência, Sérgio tenha querido substituir a “antiga” ciência da Educação Física e Desporto, que ele reputa de “cartesiana”, pela “nova” ciência, informada pela complexidade, a da Motricidade Humana.

 O facto de a Física e a Química, ligadas à Biologia e Medicina, se interessarem pelo funcionamento do cérebro, tal como se interessam as Ciências da Computação e a Engenharia Informática, não significa que as ciências e as tecnologias tudo possam. O cérebro continua a ser um grande mistério, o “santo dos santos” do Universo, e as ciências sociais e humanas, que derivam de toda a actividade mental e comportamental humana, continuam a ser ciências distintas das ciências de base eminentemente experimental e, portanto, ajudadas pelo método estabelecido por Galileu. Há mais mundos para além do físico, embora esses mundos estejam, de uma forma ou de outra e mais do que muitos supõem, ligados ao mundo físico. O cérebro é afinal uma porção da Natureza, que funciona segundo as leis naturais, que desde Galileu temos vindo a descobrir. A partir da avalanche de dados das modernas neurociências tem-se concluído nos tempos mais recentes que o físico e psíquico, o corpo e a mente, se ligam de uma maneira muito intrincada, mas que é real, isto é, acontece no mundo natural. O material e o mental, o corpo e o espírito, estão intimamente ligados, tal como nos ensina Damásio Esta mensagem foi inteligentemente captada por Manuel Sérgio e é muito clara em toda a discussão que ele tem vindo a desenvolver, numa obra já hoje muito rica e largamente citada, em torno da filosofia da motricidade humana. Não pode haver movimento do corpo humano que não passe pela actividade mental, assim como não há actividade mental que não passe pela experiência do corpo, em particular a do movimento. Se é verdade que o a mente comanda o corpo, não é menos verdade que o corpo influencia a mente.

 A filosofia da “nova ciência” da motricidade humana parte do princípio que o ser humano é um todo: de nada vale considerar o corpo sem a mente ou a mente sem o corpo. Um físico só pode concordar com esta tese. Muitos físicos investigam o corpo (há muito, pelo menos 1895, quando Wilhelm Roentgen descobriu os raios X) que a Medicina não dispensa o saber e as técnicas da Física) e muitos físicos investigam o cérebro humano (modelos e ferramentas da Física Estatística têm sido aplicadas ao estudo dos processos cerebrais, como mostra o caso das redes neuronais). Os modernos sucessores de Galileu, decerto contrariando Descartes, procuram saber como a consciência e a vontade que dela emana emergem a partir de elementos e processos meramente físicos. A sua intenção é arrojada, porque o problema não é fácil. 

Um dos grandes avanços da Física no século XX revelou um entrave à ideia determinista: a de que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Associamos o determinismo a Descartes: sara ele, o mundo teria sido criado por Deus, mas ele tinha vindo a funcionar sozinho, deterministicamente, desde então): Os trabalhos do físico e matemático norte-americano Edward Lorenz (1917-2008), realizados nos anos 60,  que consistiram  em modelar de forma simples um sistema meteorológico e em explorar esse modelo num computador conduziram à ideia de que pequeníssimas diferenças nas condições iniciais podem conduzir, em sistemas como aquele que ele estudou (sistemas ditos “não-lineares”) a descomunais diferenças nas condições finais. O determinismo ficou então fortemente abalado e com ele as nossas possibilidades de previsão.  Mas mais: apesar dessa enorme variabilidade, expressa na expressão “efeito borboleta” (uma borboleta que bate as asas no Brasil pode provocar um furacão do outro lado do globo), nos sistemas não-lineares é possível reconhecer padrões matemáticos, chamados “atractores estranhos,” que ostentam uma certa ordem, emergente da desordem. Havia, portanto, alguma possibilidade de previsão, embora limitada, nos sistemas desse tipo. O estudo do caos – falamos de “caos” sempre que há extrema sensibilidade às condições iniciais - tivesse precedentes (como, por exemplo, a investigação do matemático francês  Henri Poincaré, no início do século XX, sobre movimentos celestes) teve então o seu início. A chamada “teoria do caos” encontrou curiosamente amplas aplicações na mecânica celeste, que parecia ser o protótipo acabado de determinismo. Os céus não eram o sítio de fácil previsão que se supunha. O próprio sistema solar, sujeito à força não-linear da gravidade, é, a longo prazo, caótico.

Neste contexto, o pensamento de Manuel Sérgio revela-se claramente influenciado, para não dizer seduzido, pelas propostas de Ilya Prigogine, Prêmio Nobel da Química em 1977 por seu trabalho pioneiro nas “estruturas dissipativas”. Prigogine discutiu, na ciência, a irreversibilidade do tempo que advém nessas situações e, na filosofia, a reconfiguração das ciências que surge quando ela é valorizada. Se Lorenz olhou para sistemas meteorológicos, que são claramente instáveis, Prigogine olhou para certas reacções químicas fora do equilíbrio, que não o são menos.  “Estruturas dissipativas” (o termo é do próprio Prigogine) são sistemas dinâmicos longe do equilíbrio, mas que podem atingir estados de certo modo estacionários. Na sua palestra Nobel, Prigogine explicou como tais sistemas podem ter um comportamento completamente diferente do dos sistemas próximos do equilíbrio, mas, mesmo assim, revelarem uma ordem peculiar. Nestes sistemas, tal como nos de Lorenz, havia “atractores estranhos”, até porque as equações subjacentes são semelhantes.

 Existem, de facto, notáveis semelhanças entre sistemas não-lineares ainda que estes modelem partes diferentes do mundo. Um fenómeno notável que surge neles é a emergência: o facto de o todo ser maior do que a soma das partes. Surgem na colectividade fenómenos nada óbvios se olharmos apenas para os elementos constituintes. Para isso o que importa são as ligações, que mantêm a coesão e a dinâmica do conjunto. O estudo desses fenómenos permite lançar um novo olhar sobre a questão da irreversibilidade do tempo. A famosa Segunda Lei da Termodinâmica postula a existência de uma grandeza física - a entropia -.que cresce de um modo irreversível nos sistemas isolados, definindo a “seta do tempo”. Mas a entropia, pelo menos como foi formulada a meio do século XIX pelo alemão Rudolf Clausius, descrevia situações de equilíbrio nos sistemas isolados. Nas reacções químicas de Prigogine há abertura ao exterior (dizem-se “sistemas não isolados”) e o mesmo acontece com os seres vivos em geral,  que trocam matéria e energia com a vizinhança. Fora do equilíbrio, revelam em certas condições situações de irreversibilidade, isto é, o seu destino é inexorável. A partir de estudos dos fenómenos irreversíveis que ocorrem nos sistemas físicos, químicos e biológicos, Prigogine reclamou o papel central da “seta do tempo” na descrição científica do mundo e procurou, em conjunto com os seus colaboradores, extrair todas as implicações dessa centralidade para a própria filosofia das ciências. A este respeito é entusiasmante a leitura do livro A Nova Aliança. Metamorfose da Ciência (1987), escrito por Prigogine em conjunto com Isabelle Stengers, filósofa e historiadora das ciências também belga, mas podem também ver-se com proveito outros livros dele publicados em português, como os que estão indicados em baixo na bibliografia.  Sérgio leu todos esses livros com entusiasmo, como se pode ver no primeiro texto de Para um Novo Paradigma do Saber e… do Ser. Como o referido livro de Prigogine e Stengers, assim como o referido livro de Damásio, são obras de divulgação da ciência dirigidas a um público alargado, forçoso é concluir da relevância destes processos de comunicação da ciência. Galileu escreveu em diálogo e em italiano, para poder ser lido pelo maior número de pessoas. Do mesmo modo, vários cientistas actuais tentam chegar mais longe, escrevendo não apenas para os seus pares mais directos, mas para o público em geral. A ciência não pode ser um feudo dos cientistas. 

A palavra-chave no pensamento de Prigogine é “complexidade”, uma palavra de resto muito querida so sociólogo francês Edgar Morin (n. 1921, outro pensador longevo), autor de Introdução ao Pensamento Complexo (1995), entre muitos outros livros (ver no final uma breve selecção bibliográfica).  O corpo é um sistema complexo. A mente é um sistema complexo. O complexo corpo-mente é eminentemente complexo. O movimento do corpo comandado pela mente só pode ser compreendido no quadro das chamadas “ciências da complexidade”, isto é, o estudo dos sistemas que são formados por muitas partes com interacção não-lineares entre elas Estes sistemas têm uma comportamento interessante em situações muito afastadas do equilíbrio, nas quais um constante fluxo de energia mantém a organização dos sistemas. Têm uma história (historicidade e irreversibilidade são praticamente sinónimos) e são o palco de fenómenos de emergência. Fala-se, em particular, de sistemas complexos adaptativos, isto é, sistemas que evoluem ao longo do tempo, adaptando-se a novas situações, em particular conformando-se a estímulos provenientes do exterior. Falamos então de auto-organização.

O domínio das ciências da complexidade é manifestamente interdisciplinar: foram dados exemplos da meteorologia, da química, da biomedicina. Em 1984 foi fundada nem Santa Fé, no estado do Texas, dos Estados Unidos, um Instituto de Estudos de Sistemas Complexos, onde matemáticos, físicos, químicos e biólogos trabalham ao lado de engenheiros, electrotécnicos, informáticos e outros, e também psicólogos, sociólogos, filósofos, etc. Trabalharam lá os físicos Murray Gell-Mann (1929-2019) e Philip Anderson (1923-2020), os dois laureados com o Prémio Nobel da Física, assim como o economista Kenneth Arrow (1921-2017), laureado com o Nobel da Economia. Em Santa Fé são investigadas a teoria do caos, os algoritmos genéticos, a economia da complexidade, a econofísica, as redes complexas, a biologia teórica, a vida artificial, a linguística, etc. Tal como a luneta astronómica e o plano inclinado foram os jnstrumentos de Galileu, o computador é um instrumento dos cientistas da complexidade. Os investigadores da complexidade procuram realizar simulações computacionais, em que modelos reproduzam pelo menos algumas das características dos intrincados sistemas naturais. No final indicam-se algumas obras em português que permitem ao autor exterior ao tema da complexidade entrar nele ou aprofundá-lo.

Só o reconhecimento prévio da complexidade pode permitir o sucesso de trabalhos de investigação na área do corpo e da mente, em geral, e do movimento voluntário do corpo, em particular. A complexidade coloca-nos, porém, um problema maior: a tradição reducionista que os físicos conservam desde o tempo de Galileu e Descartes poderá não ser a melhor chave para abrir portas nos edifícios onde eles hoje pretendem em entrar. Há que conseguir e prosseguir um pensamento global, sistémico, que se preocupe mais com o todo do que com as partes. E esse é o pensamento que vem dessa velha ciência que é a Termodinâmica, que evoluiu a partir do estudo do rendimento de máquinas, para fazer brotar essa sua justificação microscópica, que é a Física Estatística. A Termodinâmica sempre foi uma ciência de sistemas, uma ciência do macroscópico.

Na obra de Sérgio – amplamente discutida neste volume - o leitor ficará a saber que a motricidade humana possui a marca inegável da complexidade. Retirará também a mensagem de que o diálogo interdisciplinar, o diálogo entre a Física, a Medicina, a Psicologia, a Filosofia, etc., é hoje fonte indispensável de novos saberes. Ficará impressionado com o pensamento claro e vigoroso do professor jubilado da Universidade de Lisboa, que é também poeta e que foi também político.

Termino com uma citação do livro de Manuel Sérgio que referi logo no início (na p.   57, no final do cap. I

“A motricidade humana significa que um novo paradigma do saber e do ser porque todos os paradigmas clássicas, simplificadores e fragmentados, deverão transformar-se em complexos e dialogantes; porque só se é, verdadeiramente, no movimento intencional de transcendência, ou seja, mesmo que não acaudatado por ninguém, na motricidade de novos possíveis.

Carlos Fiolhais


BIBLIOGRAFIA

De Manuel Sérgio:

- Para uma epistemologia da motricidade humana: Prolegómenos a uma ciência do homem. Lisboa: Vega, 1988. (4.ª edição, Lisboa: Nova Vega, 2018, com prefácio de Augusto Baganha

 - Motricidade Humana – contribuições para um paradigma emergente. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

- Um Corte Epistemológico: da educação física à motricidade humana. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

- Para um Novo Paradigma do Saber e.… do Ser, Coimbra: Ariadne, 2005

De António Damásio: 

- O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano, Mem Martins: Europa-América, 1995 (edição revista e actualizada, 2.ª edição. Lisboa: Temas e Debates, 201

- O Livro da Consciência, Lisboa: Temas e Debates, 2010.

- O Sentimento de Si. Lisboa:  Temas e Debates 2013

De Ilya Prigogine:

- A Nova Aliança. Metamorfose da Ciência. Lisboa: Gradiva, 198

- Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa:  Gradiva, 1990.

- O Fim das Certezas. o Tempo, o Caos e as Leis das Natureza, Lisboa: Gradiva, 1996.

- O Nascimento do Tempo, Lisboa: Edições 70, 1999. 

De Edgar Mori

- Introdução ao Pensamento Complexo, Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

- O Problema Epistemológico da Complexidade, (debate realizado em Lisboa, em 1983, com José Mariano Gago, entre outros), Mem Martins: Europa América, 1996. 

-A Complexidade, Vertigens e Promessas. 18 Histórias de Ciência em Entrevistas com Edgar Morin, Michel Serres, Ilya Prigogine e Outros, Piaget, Réda Benkirane (coord.), Lisboa: Instituto Piaget, 2004.

- Inteligência da complexidade Epistemologia e pragmática (com Jean-Louis le Moigne), 2009, Lisboa: Instituto Piaget, 2009.

De outros (em português sobre as ciências da complexidade): 

- James Gleick, Caos: a construção de uma nova ciência. Lisboa: Gradiva, 198

- Heinz Pagels, Os Sonhos da Razão. O computador e a ascensão das ciências da complexidade, Lisboa: Gradiva, 1990.

- Benoit Mandelbrot, Objectos fractais: forma, acaso e dimensão; seguido de Panorama da linguagem fractal. Lisboa: Gradiva, 1991. 

- Ian Stewart, Deus joga aos dados?: a matemática do caos. Lisboa : Gradiva, 1991

- John Holland. A Ordem Oculta. Como a adaptação gere a complexidade, Lisboa: Gradiva, 1997.

- Murray Gell-Mann. O Quark e o Jaguar: Aventuras no Simples e no Complexo, Lisboa: Gradiva, 1997.

 

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