segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

"Não era para ser assim, mas o mundo mexeu-se [45 anos de] perambulação poética"


Texto de João Boavida, escrito para apresentação do mais recente livro de José António Franco. Não era para ser assim, mas o mundo mexeu-se [45 anos de] perambulação poética (Livros do Corvo, V. N. da Barquinha, 2021).

Esta obra, constituída pela reedição de poemas publicados anteriormente e por muitos mais, a maior parte ainda inédita, e sendo uma recolha de quarenta e cinco anos de atividade poética, mereceria uma visão mais alargada e competente que a minha. 

Seguramente que o autor e a obra merecem muito mais do que aquilo que eu possa dizer, mas como José António Franco continuará a produzir, porque um poeta verdadeiro nunca se aposenta, tomem as minhas palavras como uma breve apresentação, deixando, para outros, trabalhos mais aprofundados sobre a sua obra. Em primeiro lugar, permitam-me dizer que aprecio o trabalho poético de alguém que, ao longo duma vida, se entrega à sua paixão contra reveses e contrariedades, que terão sido muitos, e contra marés de indiferença, que também devem ter abundado. 

É admirável e estimulante este incessante esforço de oficina literária, que transforme a ideia súbita, a intuição, na palavra necessária, nessa mesma que produz o poema. E que, depois, sabe-se lá quando e onde, vai encontrar em alguém – sabe-se lá quem –  a ressonância requerida, a identificação redentora. Foi para isso que ele foi feito, embora o não tenha sido.

Quero dizer, mal do poeta que escreve para o leitor, pois nenhum verdadeiro escritor escreve para o leitor, mas, a partir do momento em que o poema é escrito, passa para um hipotético leitor, que, por sua vez, e sem o saber, procura nele aquilo que não sabe mas de que necessita. Necessidade que talvez só descubra no momento da consonância com o autor, nessa espécie de comunhão que, quando acontece, nos puxa, nos entusiasma e, de algum modo, nos redime. É um trabalho de palavras que se dispersam por uma vastidão onde vogam consciências que podem ser tocadas, quebrando o silêncio em que flutuavam. 

Portanto, nunca se deve escrever para o leitor, mas não se escreve senão para ele. Ora, isto requer uma cirurgia rigorosa, um esforço incessante e nunca terminado, mas que só por si compensa porque é a essência do ato criador. Encontrar o poema que antes se escondia por baixo da folha branca, como a escultura dentro da pedra, isto é, a partir da simples ideia, da breve intuição, é o mais estimulante da literatura, pois é aí que se esconde o específico literário, aquilo que distingue um bom dum mau escritor. 

É claro que o nosso tempo não está para estas minúcias e vagares, nem para semelhantes exigências, mas isso não preocupa o criador; lamenta-o, mas pouco lhe interessa porque a sua força interior exige-lhe um limite de perfeição que nunca cessa de procurar. E como sabe que sempre a arte sobreviveu a todas as formas de barbárie, continua, incessante e indiferente. Ora, este livro traduz esse trabalho oficinal, é dele uma boa imagem, quase um arquétipo.

É de assinalar que muitos poemas produzidos em quase meio século de atividade foram deixados de fora, o que indicia bem essa exigência de que falei, e, por outro lado, dá-nos ideia desta produção poética no seu todo. E, já agora, deixem-me dizer-lhes que este título – Não era para ser assim, mas o mundo mexeu-se – é um achado, e só por si vale um poema. 

Quem, de nós, ao fim de quarenta e cinco anos, não pensa que quase tudo podia ter sido doutro modo, que teria sido melhor doutra maneira? Face às ideias que na juventude tantas vezes nos incendeiam, e às ambições que acalentamos, quem haverá que não pense que deveria ter sido diferente? Mas, como sabemos, a vida vai acontecendo, e para acontecer vai optando, vai tomando caminhos, porque é sempre preciso tomar alguns. 

E então pensamos que poderiam ter sido outros, ou melhor, que não puderam ser outros melhores porque o mundo, ao mexer-se, escapou-nos das mãos. Mas, mesmo que não se tivesse mexido, não iríamos mais tarde sentir o mesmo, mas ao contrário, isto é, que o mundo se devia ter mexido para agora nos encontrar noutro ponto e a sentir saudades deste em que estamos? É um jogo de espelhos que o tempo produz, é a nossa situação dramática e irrepetível, e como não é só o mundo, porque tudo muda e se cruza constantemente – ideias, pessoas, lugares, acontecimentos – não estava pensado ser assim, mas foi.

Não estou certo de ter interpretado bem, mas se o não consegui será talvez porque, entre o começo da explicação e este momento de dúvida, o mundo mexeu-se, mesmo que pouco. Note-se, porém, que compete ao artista dar, dessa constante transformação dupla e interativa, desse incessante drama particular, a superação salvadora. 

A arte tem a capacidade de ir ao encontro do que de mais fundo e potencial habita em nós, e que desconhecemos, ou nos escapa, mas que está à espera. Quem o não sentiu ao ouvir certas músicas, ao ouvir certos poemas bem recitados?

A poesia de José António Franco consegue uma síntese entre a exuberância, já longe dos nossos poetas novecentistas, (mas relativamente perto, parece-me, de um Álvaro de Campos, de um Ruy Belo, embora com diferentes fulgurações), e uma poesia excessivamente despojada que tem predominado nas últimas décadas. 

Tem aquela sábia medida entre o espontâneo do sentimento ou ideia, que emergem do nada, e a contensão ou rigor formal que lhe dão a precisa dimensão poética. É a poesia de quem sabe do ofício mas não está para se sujeitar às regras duma escola. Ele mesmo o disse em entrevista a que a introdução faz referência: «prezei sempre demais a minha liberdade para subordinar antecipadamente aquilo que faço aos cânones de qualquer escola».

Acho que fez muito bem, mal da literatura que anda a correr atrás de modas ou à procura de quem a proteja. É certo que ser livre relativamente a escolas (o querer sê-lo em termos de atitude e de método) tem os seus perigos, mas é esse o preço a pagar pela originalidade. Pode até confundir o leitor mais desprevenido, pelo afastamento em relação a determinadas frequências de onda, mas como essas frequências, embora algo dessintonizadas, não deixam de ser moduladas, no fim é a própria qualidade dos poemas que nos obriga a entrar nessa força particular.

A poesia de José António Franco é sensual e cheia de ímpeto, muitas vezes lírica, mas nunca caindo num lirismo palavroso e solto, mas antes sempre controlado, quase secreto, sobretudo nas primeiras obras. Contudo, como já assinalei, não cai naquela secura e despojamento excessivos em que o verso, à custa de querer ser mais intenso, acaba quase por não sair do silêncio; se bem que o silêncio, em música, e a ausência de luz (mesmo extrema) nos filmes, desempenham (ou podem desempenhar) a sua função. Mas a poesia precisa de cor e de sonoridade, e esta tem-nas, a ambas, e com intensidade. 

A sua a poesia, como, na introdução, António Pedro Pita refere, «oscila entre os poemas curtíssimos, e outros em que o lirismo não consegue conter-se, dando prova de uma pluralidade de recursos textuais». Mas mesmo nos liricamente mais exuberantes é sempre uma exuberância trabalhada, e encontrando aí grande parte da sua originalidade.

É, por outro lado, uma poesia que vai à procura do real, mas de um real que embora ande debaixo dos olhos não se reduz a isso; o real quotidiano é um ponto de partida, um sinal do possível, de todos os possíveis que ele faz surgir com abordagens inesperadas, e onde comoção, crítica e desencanto se fundem de múltiplos modos. Poesia feita de emergências às vezes subtis, outras violentas, veementes, escondendo significados à espera de desenlace, como diz em (Paisagem sem noite, p. 65): 
«sobre a pele o mistério
paisagem de palavras inarticuláveis
renovando o silêncio luminoso da novíssima
imagem».
Neste sentido, Pedro Pita considera que tanto a sua poesia como a sua prosa «mergulham na convicção da potencialidade do real, isto e, na imanência ao real das várias figuras do irreal». Esta frase, escrita a pensar nesse livro tão inesperado e perturbante como é Histórias e morais, pode dizer-se, de certo modo, de alguma da sua poesia, sobretudo a dos primeiros anos. 

De passagem diga-se que é um livro notável, este, das Histórias e morais, onde a imaginação desdobra, contorce e multiplica o real num rosário infindável de inconsequências consequentes e de insignificantes significados; que, de resto, podem, a cada instante, ser ou não ser.

A poesia de José António Franco parte de uma ideia, uma intuição, depois os versos vão-se sucedendo numa espécie de associação livre em que, no entanto, se procura a palavra certa para o instante do que se quer dizer. Cada verso encontra o seu momento, cria o seu espaço, produz um enquadramento mediante uma imagem, aquela que, naquele momento, apareceu, onde tudo se concentra, mas como que vindo detrás explodir à sua frente. Cada poema cria o seu mundo particular, o seu âmbito, mas deixando muitas portas por onde o leitor pode entrar; é, digamos, convidado a entrar. Cada poema é assim um jogo aberto pelo poeta para cada um de nós, mas construindo sempre o poema na base de múltiplos rigores, os de cada instante, apanhados em pontas, mas abrindo para a imensidade, do «dia claro / [do] equilíbrio substancial …» como diz em Cantigas de maldizer, p. 87.

É assim uma poesia de espaços adivinhados, entreabertos, mas dando para vastidões, donde regressa no verso seguinte porque está preso a ele pela própria construção do poema. E embora possa não parecer, solicita-o, para de novo encontrar uma fresta e se libertar em imagens e imaginações. Os poemas saltam assim entre figurações e ideias por onde perpassa muito do que à poesia pertence – e sempre pertenceu – mas que se esconde da vulgaridade por uma espécie de pudor poético que é também constitutivo da sua originalidade. 

De vez em quando a contemplação apanha o poeta desprevenido, distrai-se um instante, mas logo se tenta libertar do enlace entrando pelos sinais que ela está a libertar: 
«o mar está estranho hoje
redondo e silencioso como desejo de navegar
o luar acende-me cada vértebra do infinito
lá está a porta
para que quero agora a perfeição»
(Memórias de outra voz, p. 130). 
Ou seja, olhando o mar, várias fímbrias retinem em todo ele e, por fim, «para que quero eu a perfeição», se tenho isto, para que a quero eu? Será assim? Não sei, porque os poemas fogem-nos, obrigam-nos a saltos no desconhecido, estão sempre abertos a muitos ventos, embora o poeta os vá controlando à sua maneira. Não se podendo dizer que é um poeta lírico, de vez em quando, em pequenos instantes, parece ceder, embora logo se desvie, se esconda. Mas com apontamentos breves produz profundos efeitos. Reparem nesta passagem de Paisagem sem noite, p. 67: 
«dói o tempo como nas tardes de outono
palavra em ruína sob a penumbra
de um sossego vertiginoso
no entanto acontece a alegria
um ciclo completo 
paisagem sem noite». 
Ou então:
«elevam-se os sons pelas colinas como ribeiros de fumos coloridos
e as nuvens musicais que ali aconteciam ficaram poisadas em distração. 
Sem poder resistir chovi
por todo o lado o meu corpo
floresceu como uma memória por acontecer»
(Celebração do fogo, II, p. 221). 
São curtas contemplações que se projetam de fora para dentro, aberturas, por sua vez, para o mistério que, de dentro, se abre, provocando assintonias entre o que o poeta intui e o que pretende seja intuído, fugindo assim ao ponto de partida e produzindo uma desarmonia harmónica, que nos toca, e que só a poesia consegue alcançar. A sua poética é «um prodígio íntimo de intranquilidade», como ele diz em Paisagem sem noite, (p. 66). Mas oiçamos toda a estrofe para não pensarmos que é vaidade do poeta:
«em cada cristal a evanescência essencial
prodígio íntimo da intranquilidade
sem nostalgia as nuvens
figuras vertiginosas da diferença».
É curioso que estes cristais têm um valor autónomo, são evanescências essenciais e, portanto, de algum modo, cada um vale por si, mas, simultaneamente, funcionam na estrutura do poema; uma estrutura aberta, como se deixasse a cada leitor a tarefa de o completar, ou, a partir dela, produzir uma outra qualquer, que, dir-se-ia, já lá está, invisível, à espera. E cada um é tentado a construir o seu poema a partir daquele. O que talvez perturbe o leitor, mas, pergunto, não será justamente aqui que reside uma das grandezas da poesia? 

Porém, nem só de lirismo escondido se constrói a poesia de José António Franco, também de sarcasmos, como são as Cantigas de maldizer (1988), e em muitos outros poemas. Embora não se possa considerar um poeta de combate, como diríamos dos neorrealistas, por exemplo, sente-se frequentemente a sua consciência crítica em relação a múltiplas situações. São em geral versos curtos, aforismos em que muito do que se diz e pensa correntemente é decomposto, desmembrado a partir de uma desconstrução que vem de fora: 
«olha sabes que
ou melhor
já ouviste dizer que
e aquilo de
não
talvez não
então deixa» 
(Ibid., p. 78). 
Outros exemplos, entre muitos: 
«Ó da gávea quem vem lá
é alma de defunto com traje de pregador
arreia a vela e afunda o barco
dentro de água a surdez te salvará» 
(Paisagem sem noite, p. 67). 
Há certos versos que, em si, dizem tudo, como este: 
«vestidos restolhavam entre as gravatas» 
(Cantigas de maldizer, p. 81), 
ou 
«se o sol se esquece da tarefa
que será dos iluminados» 
(Ibid., p. 89). 
«ó senhor arranjo as nozes
levais-me os dentes
se tenho os dentes
tirais-me as nozes
para a próxima começo eu
o jogo» 
(Ibid. p. 86). 
E ainda estas, muito breves: 
«justiça
conheço sim senhor
lá em casa não usamos outra coisa»(Ibid., 86), 
ou esta: 
«é verdade que o mundo mantém a fervura
mas está a acabar-se o gás»
(Ibid., p. 93). 
Às vezes perpassa pelo poema um certo surrealismo, ou antes, uma impertinência, mas que, simultaneamente, parece superar a condição humana com um encolher de ombros:
«andava a morte pastando em segredo
veio o fiscal e disse pagas tu os teus impostos
e diz ela não que nunca me deito cedo 
e ele responde tu que levas a vida e corrompes os rostos 
tens de pagar
ao que a morte responde ó filho vai-te matar»
(Cantigas de maldizer, p.81). 
Muitas vezes os versos são interrogativos mas não aparece no texto o sinal de interrogação (à moda das Histórias e morais). Ou seja, cabe ao leitor o uso do verso, a flutuação possível. Por outro lado, nem sempre a sequência entre os versos corresponde à estrutura da frase, isto é, a estrutura quebrada obriga o leitor a recuperar processos poéticos em suspenso (perspetivas, imagens) sugeridas ou meramente possíveis. Cada verso retine e fica a soar por si. O verso não é um discurso (embora seja) mas é mais uma corda que, ao retinir, dispara em vários sentidos, embora se possam encadear em discurso, mas isso fica quase sempre para o leitor. A paisagem é sempre fugaz mas plena, sempre apanhada em pontas:
«dia claro
equilíbrio substancial
deslumbrado instante
ressoando na minuciosa auréola de cada vértice/ fumegante…»
(Cantigas de maldizer, p.87).
Ou então: 
«evadem-se o corpo e as sílabas
fica a densidade luminosa de um espaço
sem vestígios»
(Ibid. p. 90), 
como se o vazio prolongasse o poema. Ou então é um cansaço contemplativo e doce: 
«vai o mundo caindo dentro de mim
e eu sem espaço sequer para a alma
que desumana banalidade faz do homem uma roca
sem mão nem linho»
(Paisagem sem noite, p. 67). 
Outro aspeto curioso nesta poesia são as frequentes sugestões filosóficas: 
«…longe o vulto magnífico do que poderia ter sido
surgir como nada tivesse acontecido» 
(Celebrações do fogo, III, p. 207); 
«queria que o tempo fosse só de vez em quando», tinha dito antes, em Paisagem sem noite, (p. 69), o que não é uma filosofia mas será um bom começo. Já antes, em Pedra fecunda, (p. 51) exclamara: 
«ai o tempo o tempo
serei tempo um dia
e um deus esquecido por entre mim». 
Ou então: 
«ainda agora foi agora e o tempo já me percorre por dentro como a memória do
que ainda não aconteceu. 
Existo lentamente; experimento o prodigioso sentimento (azul) de ser o que já foi
futuro antes de passar por mim»
(Celebração do fogo, III, p. 223).
Em Cantigas de maldizer, p. 92, fala n‘
«…a angústia de pensar o que é 
que não é mas passa a ser
qualquer dia será um grande dia
tanta coisa por fazer».
O poema cria o ser a partir do não-ser, mas nós somos solicitados porque tudo é mais sugerido que dito, e é a partir dele que se desdobram e repercutem os versos uns nos outros: 
«poesia é este nada
que nem consigo segurar entre mãos», 
mas onde o ser de cada instante é o imediato não ser. O ser produz o não ser, como se sente no poema
“vertigem”: 
«uma porta 
se a abro perco-me
uma flor
se a colho morre
uma palavra
se a digo perde-se
uma janela
se a abro asfixio
uma pedra
se a toco muda (…)
um rosto
se o vejo desaparece», etc. 
(Ibid., p.77). 
Parecem anúncios de uma metafísica possível à procura duma resposta que ninguém tem, mas, curiosamente, como que contemplando o tempo, entidade que é, afinal, o maior de todos os mistérios. Por isso, segreda: 
«não digas nada
o tempo arde»
(Memória de outra voz, p.126) 
(…), e termina o poema repetindo: 
«não digas nada
o tempo arde
intacto e total».
E é que arde mesmo! Entre o conteúdo e o contexto há uma permanente interação, o ser do poema constrói-se entre cá e lá, mediante sentidos que se vestem de imagens constituindo pequenos universos por onde o poeta se expande. Atentemos nesta estrofe do “poema imperfeito:
«a terra revolve-se sem remédio
às badaladas inevitáveis
da torre da noite
ali mesmo por baixo do luar
baço como latido de cão
misteriosos como o voo negro
dos morcegos» 
(p. 170). 
Outra estrofe: 
«ah como eu admiro esta alquimia 
convulsiva
sem vento nem maldade 
o fel da alma
tolha o olhar
morto por ser manhã
a geografia da verdade» 
(Celebração do fogo, II, p.171). 
Em José António Franco a palavra, para além do fonema, é quase sempre uma realidade ontológica, ou seja, organiza, só por si, a realidade (um ente, uma razão de ser), isto é, as múltiplas realidades possíveis do poema. Cada palavra é fabricada para poder valer por si e fulgurar num verso. E digo que é fabricada porque parece saída das mãos do artífice para encaixar naquele lugar. Mas isto não é logo visível, nem sequer é sempre, mas fica a ressoar e recupera, no fim, o seu lugar e função: 
«a palavra
agonia e vertigem
ventre efémero do gesto imortal» 
(Memória de outra luz, p.143); 
ou: 
«catedral de silêncio a palavra arde
juncando o vento
de eternidade dissonante»
(Celebração do fogo, V, p. 301). 
E ainda, em Celebração do fogo, I, (p. 163):
«perceber o cheiro das palavras 
em cada pétala renascer
o rosto desigual de cada momento 
marginal a voz da mão suave
suspende o orvalho sobre 
os lábios da manhã 
o tempo é feito devagar». 
Mas deixa sempre múltiplas interpretações e sentidos à espera, porque: 
«o universo não é perfeito 
há evidências por anunciar»
(Memória de outra luz, p. 140), 
isto é, obriga-nos a saltos porque cada verso convoca uma imagem, um sentimento, que abre e continua sempre abrindo. Às vezes são cáusticos, Porque 
«…só o poema escarpado e rigoroso
será fulminante e universal»
(Ibid. 125). 
Ou melhor, é-o com frequência, mas nem sempre de modo evidente, como nesse longo poema de que só cito dois versos por me parecerem reveladores: 
«sei que a cobardia vai ao cabeleireiro e faz operações plásticas no aborrecimento
sepulcral dos altares dos feitiços modernos»
(Celebração do fogo, III, p. 217). 
Outras vezes são melancólicos:
«transforma-se o dia estrada fora
o sol reverdece entre pedras
e deuses fascinados»
(Memória de outra luz, p.125). 
Por vezes é uma evocativa e amarga revolta:
«olá avô lindo nessa farda de ir morrer
no retrato que o meu olhar sumiu
oiço a tua voz
embalando histórias na trincheira
por entre metralha e sangue
e a glória improvisada
de um caixão de pinho 
a tua harmónica ainda me fala de La Lys 
na dissonância da morte ao alcance 
de um olhar incrédulo e inconformado 
debaixo de uma poalha de lama e desespero 
Depois cala-se / e eu volto a ouvir-te confessar 
que todas as guerras são fracassos …» 
(Celebração do fogo, III, p. 206). 
Outras vezes é um certo desencanto face a uma beleza por abrir (Celebração do fogo, II, p. 185):
«homens-pássaros florescem nos livros como 
ornatos inteiros de catedrais por ler
maldições e sorrisos a retalho
gestos esgotados pelo chão
as ruas
escaldam e há restos de hortelã
nas sopas das avós silenciosas
sobre a paciênciarezando»
É uma estrofe triste, desalentada, em que todas as imagens entram por vias diferentes e vão levantar tesouros escondidos, memórias,
«restos de hortelã
nas sopas das avós silenciosas»; 
coisas a que ninguém liga, porque, embora convocando todos os possíveis, a 
«poesia é este nada
que nem consigo segurar entre as mãos» 
Talvez rio, p. 97). 
 A partir das “celebrações do fogo” os poemas começam a crescer até serem torrenciais, mas o método e a força ativa que subjazem à feitura mantêm-se idênticos. São poemas de uma imaginação transbordante, uma imagética fulgurante e contínua, que não se cansa, que incessantemente desdobra imagens, cada uma delas pressupondo mundos de que parte e construindo outros que se erguem súbitos a nossos olhos, como se cada palavra desencadeasse possíveis dinâmicas criativas que o poeta respira, como um tónus, e expira, como uma libertação, para recuperar mais adiante, ou tomar outras, num processo que não para, porque, como diz em Celebração do fogo, II, (p. 189): 
«…o poema é o meu desequilíbrio 
a força que me faz cair quando me
levanto …».
Por isso se tornam absorventes, intensos, vastos, exuberantes, torrenciais até, mas também mais rítmicos, com repetições que marcam a cadência de uma ideia, de uma obsessão e servindo-se, por vezes, de um «desmembramento sintático», de uma «pesquisa fonética» numa indiferença de género e de número, e uma «experimentação da resistência das palavras como “materiais”», como diz António Pedro Pita, que vão ao encontro dessa veemência larvar que os produz. São, em certos casos, sujeitos a um refrão dinamizador e rítmico, por exemplo “a capital do tempo…” “a capital do tempo…”, “a capital do tempo…”; “se te dissessem…,” “se te dissessem…,”; “ao raiar do dia…” “ao raiar do dia”…, “alguém que”, etc…

Mas os poemas mais curtos, sejam líricos, sejam políticos, sejam sociais, restringem a sua atenção, despojam-se, tornam-se, a meu ver, mais apolíneos, ao passo que os poemas mais longos, seguindo a cadência e uma espécie de furor imagético que é do autor a marca, poderemos dizer que são mais dionisíacos. 
 
Em suma, a poesia de José António Franco é uma poesia intensa, forte, que não cede a facilidades nem a efeitos fáceis, que é feita a partir de um esforço sobre os materiais, procurando tirar deles o máximo, fazendo ressoar cada palavra, porque, como diz em Memória de outra voz (p. 148) 
«sagrado [é] o lugar das palavras», 
criando tensões em cada verso, por vezes cortes que vão contra o que a cadência talvez aconselhasse, mas que são feitos para que o efeito seja ainda mais vivo, mais fundo, que não flui como nas poesias cantantes porque é o contrário disso que se pretende, mesmo que, outras vezes, confesse: 
«quero dizer a deliciosa lentidão das coisas
e tu
percorrendo-me
como delírios de mar» 
(Ibid., p. 124). 
Há, para terminar, três aspetos que gostaria de referir ainda. Um, diz respeito ao trabalho de educação, para a poesia e pela poesia, a que José António Franco dedicou uma boa parte da sua tarefa pedagógica e da sua vida. Embora não esteja presente nesta obra, quero render a minha homenagem ao autor por este livro e por tudo o que ele representa. É bem a imagem do seu amor pela poesia e da consciência que a educação poética pode e deve ter.

Todos conhecem A poesia como estratégia (1998), e o trabalho notável durante anos levado a cabo em muitas escolas e com inúmeros alunos. O livro traduz, por um lado, a angústia do professor de português que vê a incapacidade e a insensibilidade dos alunos para acederem a esse bem inestimável que é a poesia; por outro, a esperança de poder levar muitos a alcançar esse patamar, mediante uma atividade de sensibilização e de exercitação; e é, ainda, revelador do entusiasmo de ver como, afinal, os jovens podem ser tocados pela poesia e usufruí-la, para seu engrandecimento humano e cultural.

Uma palavra para o trabalho discreto, cuidadoso e competente de António Pedro Pita, enquanto organizador, prefaciador e autor das “notas complementares”, que têm a arte, de, em poucas páginas, nos darem um relato completo, sucinto e esclarecedor, do itinerário poético de José António Franco, e uma notícia de toda a sua obra publicada: títulos, editoras, publicações periódicas, datas, intervenientes e outras circunstâncias interessantes que informam e esclarecem. 

Também neste aspeto os 45 anos de atividade poética de José António Franco merecem esta obra. Um último aspeto tem que ver com este livro enquanto objeto. Sei que são os autores que escrevem os textos, mas o livro em si é um objeto que é feito por outros, e onde devem ser tomados em conta inúmeros fatores de ciência, de sensibilidade e de bom senso, para que resulte num produto digno, e não um objeto desamorável e que desvalorize o conteúdo, como frequentemente acontece. O amor pelos livros passa também, e muito, por isto. 

Este que aqui temos é um belo exemplar e fica bem na comemoração de quarenta e cinco anos de poesia de José António Franco. 

Parabéns a todos os que o tornaram possível. Bem hajam pela vossa atenção complacente. 
 
Coimbra, 4 de Dezembro de 2021
João Boavida

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...