quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

CENTENÁRIOS


Novo texto de Eugénio Lisboa (na foto Carlos de Oliveira, o grande escritor nascido há 100 anos):

Recordar: Do latim “re-cordis”.

voltar a passar pelo coração.

Eduardo Galeano

 

O que foi perdido pode, entretanto,

                                                                                                               viver na nossa memória.

Christopher Paolini, EREGON

 

Notámos já, neste mesmo espaço, a gulosa precipitação com que se está a começar a celebrar um centenário que só se consuma de aqui a um ano. Provincianamente, pomos os trunfos todos no cesto de um Prémio Nobel, idolatrando, deslumbrados, como selvagens, um ídolo com pés de barro: o galardão sueco, alvo de uma luta parola em que, durante anos, se engalfinharam dois escritores portugueses. Para gáudio e alimento de uma comunicação social que tanto alento tem dado à fofoquice, mesmo pacóvia.

Entretanto, ignorou-se quase por completo e, em muitos casos, por completo, centenários que passam neste ano quase findo, de figuras da nossa cultura, com notoriedade suficiente para serem lembradas, nem que fosse discretamente. A idade intelectualmente adulta de um povo mede-se também pela sua capacidade de não esquecer quem, com muita dignidade, contribuiu para acrescentar o nosso património cultural. As envergonhadamente discretíssimas sinalizações que tiveram lugar dentro dos muros de uma ou outra universidade nada têm que ver com uma chamada a público nos grandes periódicos de referência ou mesmo nas televisões. Lembrarei, por ordem cronológica, alguns nomes que teria sido bonito não esquecer, fugindo àquele jogo muito mundano e radical, que consiste em afirmar que, num século, só ficarão dois ou três nomes. É muito “chic” dizê-lo, mas até não costuma ser verdade. Como disse, num ou noutro caso, o nome aqui lembrado teve um aceno envergonhado e quase pedindo desculpa, mas o público, em geral, não deu por nada.

1) – MÁRIO BRAGA (1921 – 2016) – Foi Director-Geral da Secretaria de Estado da Comunicação Social, Membro do Conselho Consultivo das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian. Foi dramaturgo e, sobretudo, um apreciadíssimo contista, autor, por exemplo, destas colectâneas: SERRANOS, QUATRO REIS, LIVRO DAS SOMBRAS, CORPO AUSENTE. Como Director-Geral da Secretaria de Estado da Comunicação social, fez, no início da nossa democracia, um porfiadíssimo trabalho, propiciando aos promotores da nossa diplomacia cultural, inestimáveis ferramentas.

2) – JORGE BORGES DE MACEDO (1921 – 1996) – Historiador e Professor, deixou vasta e importante bibliografia. Só alguns poucos títulos: A SITUAÇÃO ECONÓMICA NO TEMPO  DE POMBAL (1951); HISTÓRIA DIPLOMÁTICA PORTUGUESA. CONSTANTES E LINHAS DE FORÇA. ESTUDO DE GEOPOLÍTICA; OS LUSÍADAS E A HISTÓRA; CONSTANTES DA HISTÓRIA DE PORTUGAL.

3) – LEONEL NEVES (1921 – 1996) – Meteorologista e escritor, discretíssimo e não frequentador da feira literária, deixou-nos belíssimas adições ao nosso cânone lírico: JANELA ABERTA (1940); NATURAL DO ALGARVE (1968); ONTEM À NOITE (1989); MEMÓRIA DE TIMOR-LESTE (1990). Deixou também livros para crianças e para jovens. Como poeta, merece bem ser lembrado, pela autenticidade de uma fina sensibilidade veiculada por uma notável oficina poética.

4) AMÉRICO DA COSTA RAMALHO (1921 – 2013) – Grande humanista, distinguiu-se como latinista, helenista e lusitanista. Foi Professor Catedrático da Universidade de Coimbra. Deixou uma vasta e importante bibliografia, de que assinalamos apenas alguns títulos: ALGUNS ASPECTOS DO CÓMICO VICENTINO (1973); ESTUDOS SOBRE O SÉCULO XVI (1980); ALGUNS ASPECTOS DA LEITURA CAMONEANA DE VIRGÍLIO (1986); ESTUDOS SOBRE A ÉPOCA DO REBASCIMENTO (1987); PARA A FISTÓRIA DO HUMANISMO EM PORTUGAL (1988); CAMÕES   NO SEU TEMPO E NO NOSSO (1992); LATIM RENASCENTISTA EM PORTUGAL (1994).

5) VÍTOR DE SÁ (1921 – 2004) – Foi historiador, Professor universitário e activista político contra o Estado Novo, de formação marxista. Doutorou-se em Paris, na Sorbonne, em 1969, com uma tese sobre A CRISE DO LIBERALISMO E AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DAS IDEIAS SOCIALISTAS.

6) ARQUIMESES DA SILVA SANTOS (1921 - 2019) – Figura importante do movimento neorrealista, formou-se em medicina, fez o curso de Ciências Pedagógicas e especializou-se em neuropsiquiatria infantil. Obras: POESIA: VOZ VELADA (1958); CANTOS CATIVOS (1967), ENSAIO CIENTÍFICO:  LE VOL CHEZ LE GARÇON: CONTRIBUTION À L’ÉTUDEDE LA DÉLINQUANCE JUVÉNILE, Paris (1963).

7) ANTUNES DA SILVA (1921 – 1997) – Nasceu e faleceu em Évora. Escritor neorrealista, deixou várias obras, entre as quais: VILA ADORMECIDA (1948); O APRENDIZ DE LADRÃO (1954); O AMIGO DAS TEMPESTADES (1958); SUÃO (1960); DIÁRIO I (1987); DIÁRIO II (1990).

8) ERNESTO DE SOUSA (1921 – 1988) - Fotógrafo, cineasta, crítico de arte, foi fundador do movimento cineclubista. Foi, com o filme DOM ROBERTO (1962), um dos fundadores do chamado NOVO CINEMA.

9) NEVES E SOUSA (1021 – 1995) – Poeta e pintor português, foi muito cedo viver para Angola, de onde só saiu para o Brasil, em 1975. A sua obra reflecte muito a temática africana, tendo-se tornado conhecidas as suas abundantes QUEIMADAS. POESIA: MOTIVOS ANGOLANOS (1946); MOHAMBA.

10) FRANCISCO JOSÉ TENREIRO (1921 – 1963) – Poeta e geógrafo. Foi aluno excepcional do Professor Orlando Ribeiro, que o estimulou a doutorar-se com uma dissertação sobre a Ilha de S. Tomé, de onde era original e onde veio a falecer. POESIA: ILHA DO NOME SANTO (1942); CORAÇÂO EM ÁFRICA (1962).

11) CARLOS DE OLIVEIRA (1921 – 1971) – Ligado inicialmente ao neorrealismo, este escritor notabilizou-se na poesia e na ficção. Nesta última, com o romance FINISTERRA (1978), desviar-se-ia determinadamente do protocolo neorrealista, visando, malavisadamente, um público universitário, mais interessado, frequentemente, em “estudar” obras do que em fruí-las. O romance é de uma opacidade visada, conseguida e desnecessária. Mas deixou um acervo de romances notáveis: CASA NA DUNA (1943); ALCATEIA (1944); PEQUENOS BURGUESES (1948); UMA ABELHA NA CHUVA (1953). POESIA: MÃE POBRE (1945); COLHEITA PERDIDA (1948); TERRA HARMONIOSA (1960); CANTATA (1960); MICROPAISAGEM (1968); SOBRE O OMBRO ESQUERDO (1968); ENTRE DUAS MEMÓRIAS (1971); PASTORAL (1977).

12) NATÁLIA NUNES (1921 – 2018) – Notável romancista, feminista e corajosa antifascista, esta lindíssima mulher foi casada com o poeta António Gedeão e deixou-nos, entre outras, as seguintes obras, nas áreas do memorialismo e da ficção: AUTOBIOGRAFIA DE UMA MULHER ROMÂNTICA (1955); A MOSCA VERDE E OUTROS CONTOS (1957); ASSEMBLEIA DE MULHERES (1964); O CASO ZULMIRA L. (1967); AS VELHAS SENHORAS E OUTROS CONTOS (1992).

Eugénio Lisboa

 

8 comentários:

Ângelo Miguel Pessoa Alves Alves disse...

De todos os romances de língua portuguesa que li, não tenho quaisquer dúvidas em afirmar que "Finisterra" está entre os melhores. Ainda hoje me questiono como Carlos de Oliveira escreveu esse romance com tão pouco (areia, pinheiros, tojo, urze...). Para além disso, escreveu sonetos belíssimos.

Ildefonso Dias disse...

Insiste EL em diminuir o José Saramago.
Eu vou-lhe dizer o que é, para mim provincialismo. É não ter posição nenhuma no mundo, naquilo que importa ao evoluir da humanidade, e Saramago teve como ninguém um papel importante nesse mister. O Eugénio Lisboa por acaso pensará que se Saramago estivesse entre nós ele estava calado quanto a temas como a vacinação da pandemia. Acha que Saramago aceitaria receber a 3 dose e os países pobres do mundo sem uma única dose, sem dizer nada ao mundo. Não sei se isso pesa na consciência de EL, acredito que que sim. Em Saramago pescaria é muito. O que a Obra de Saramago tem, é que é original não é fácil de imitar.
Lembrar Saramago é lembrar os valores de Justiça e Humanidade que a sua obra contempla, que são os valores que o guiaram ao longo da vida. Como ele disse um dia, cito de memória "não há nada no homem que envergonhe a criança que fui". Lembrar este o homem que foi Saramago, o seu exemplo não é provincialismo é ajudar a viver. Não deveria haver inveja de um homem maior.

Eugénio Lisboa disse...

Sou e fui sempre um admirador de Carlos de Oliveira. Mas o amor à verdade é, para mim, um valor supremo. Por isso, à sua pergunta ""Ainda hoje me questiono como Carlos de Oliveira escreveu esse romance...", vou dizer-lhe o que sei de boa fonte. O Professor Alexandre Pinheiro Torres, catedrático na Universidade de Cardiff, contou-me a seguinte história. Ele era amigo de Carlos Oliveira e um dia, encontrando-se, em Lisboa, a falar com ele, CO desabafou nestes termos: temia muito que a sua literatura não fosse devidamente considerada em certos meios universitários, por isso, andava a escrever um romance um bocado bizarro e complicado, para ver se a Universidade o levava a sério. Esse romance era FINISTERRA. Como vê, a motivação não foi transcendente. Claro que isto não diminui CO: todos os homens, mesmo os mais talentosos, têm fraquezas. Não é por isso que os devemos desprezar, mas também não é avisado endeusá-los. Já agora: convém não perder de vista que, fora uma ou outra universidade, ninguém hoje lê esse romance e só espero que, qualquer dia, não apareça alguém a "receitá-lo" para os alunos do 12º ano. Há muito o hábito, desastroso, de se confundir "complexidade" com "complicação". Os cientistas procuram explicar, da maneira mais simples e na linguagem mais simples, coisas complexas. Inversamente, muitos literatos procuram, como um valor, complicar, numa linguagem muito complicada, coisas muito simples. Escolha quem quiser. Eu, há muito que fiz a minha escolha, Entre Voltaire e Llansol, escolho decididamente Voltaire.
Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa disse...

É a última vez que respondo ao Sr. Ildefonso Dias, porque cheguei à conclusão de que este Senhor não sabe ler. Nenhum dos meus dois últimos textos era sobre Saramago, que, como pessoa, tenho em bastante má conta e sobre quem, como escritor, nunca me pronunciei, por o pouco que li dele me não ter interessado. O meu primeiro texto era sobre o provincianismo que preside ao espalhafato com que prematuramente se está a assinalar o centenário do "nosso único Nobel", como, com orgulho pacóvio, se diz na nossa comunicação social. O segundo era sobre o facto de se fazer o espalhafato todo sobre o centenário de um escritor e se esquecer por completo o centenário de outros. Nisto tudo, Saramago era só um pretexto e o miolo dos meus textos pouco ou nada tinha que ver com ele. Infelizmente, a maior parte dos comentaristas que povoam os blogs, em vez de irem ao núcleo essencial dos textos, fazem comentários laterais reveladores de uma triste incapacidade de leitura. Fico, confesso, perplexo por pessoas com tais deficiências básicas que lhes não permitem ler textos cristalinamente claros, se mostrarem tão embevecidas com o estilo de Saramago, o qual está longe de ser cristalinamente claro.
Já agora, gostaria de pedir ao Sr. Ildefonso Dias que escreva os seus próprios textos e deixe de parasitar os meus, com comentários desastrados, com pontaria vesga e sempre ideologicamente inflectidos. Que diabo, o muro de Berlim já caiu há mais de trinta anos e as purgas de má memória que Saramago fez no Diário de Notícias só são possíveis em regimes que o Sr. Ildefonso Dias obsoleta e teimosamente acarinha. Essas coisas não podem nem devem ser esquecidas e não há prémio literário que lave tais nódoas.
Eugénio Lisboa

Ângelo Miguel Pessoa Alves Alves disse...

Aconselharia a leitura do Rumor Branco de Almeida Faria a alunos do décimo segundo ano? Aconselharia a leitura de James Joyce, Salinger, Roger Martin du Gard, Italo Svevo, Alain Fournier, escritores que não apreciavam as Universidades e a instrução primária. Aconselharia a alunos do décimo segundo ano a leitura do livro Os Cus de Judas, que, na minha opinião, é inferior a Finisterra? Apesar da proximidade a Carlos de Oliveira, gosto mais da sua poesia inicial (Mãe Pobre e Colheita Perdida) do que aquela que é muito apreciada pelos críticos. Entre Voltaire e Vítor Hugo, eu escolheria Vítor Hugo, cujo melhor livro, e um dos melhores que já li, na minha opinião, é Os Homens do Mar. Vê em algum dos jovens escritores portugueses, que amiúde surgem endeusados nas televisões e ganham a vida a escrever, um grande escritor? Prefere Dostoiévski (que, segundo Nabokov, escrevia mal) ou Turguêniev? Como vê, são opiniões.

Sérgio Rodrigues disse...

Essa explicação de "Finisterra", que nada a desmerece, antes pelo contrário, bate bastante certo com o que dei conta ao ler as versões, por exemplo de "Pequenos burgueses". Na versão inicial é um romance policial genial negro cheio de violência, mas também frescura, nas misérias e paisagens da gândara. Na versão mais recente é um livro muito mais telegráfico e ao mesmo tempo mais complexo e intelectual. Se tivesse de escolher uma versão escolheria a primeira que inclusive partilha várias coisas com "Alcateia", outro romance genial que foi re-editado recentemente.

Eugénio Lisboa disse...

Chamo a atenção dos Senhores Ângelo Pessoa Alves e Sérgio Rodrigues para o facto aparentemente esquecido de que o meu "post" sobre Carlos de Oliveira não dizia respeito ao romance FINISTERRA, mas sim ao centenário mal assinalado desse escritor, entre outros. O segundo comentário do Sr. Ângelo Pessoa Alves deve querer dizer qualquer coisa que a mim me escapa por completo. Seria útil que estes comentários pretendessem esclarecer os leitores e não para exibir preferências pessoais, quase sempre a despropósito. Estabelecer a confusão não deve ser a preocupação principal de quem comenta. Acho muito bem que se prefira Victor Hugo a Voltaire: vivemos num país livre onde a opinião é livre. Se se tratar do poeta, sim: como poeta, Hugo era muito maior do que Voltaire. Se se tratar do prosador, Voltaire é incomparavelmente superior. Como lutadores corajosos, são iguais e ambos pagaram a sua coragem com o exílio. Mas que tem tudo isto a ver com o essencial do que escrevi?
Eugénio Lisboa

cid simoes disse...

"Que diabo, o muro de Berlim já caiu há mais de trinta anos e as purgas de má memória que Saramago fez no Diário de Notícias só são possíveis em regimes que..." Aqui está o rabo que o gato deixou de fora! As análises com fundo ideológico são o que são.

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