segunda-feira, 27 de setembro de 2021

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, PARTE IMPORTANTE DE UMA HISTÓRIA DE VIDA

Agradecemos ao Professor Galopim de Carvalho a confiança no De Rerum Natura para publicar um texto tão significativo como o que se segue.

Este texto, que aqui vos deixo, era para ser lido ontem no auditório da Faculdade de Ciências de Lisboa, na simpática e afectiva homenagem que a Associação Portuguesa de Geólogos entendeu fazer-me. Acontece que comecei a falar de improviso, mostrando diapositivos de um “Power Point, e nunca mais olhei para o papel. 

«Antes de abordar o tema anunciado no programa, ocorre-me dizer que, quando era novo, foram muitas as vezes que me interroguei se chegaria à viragem do século, uma meta que se me afigurava algo de bom poder atingir. 

Setenta anos era então o horizonte de vida média dos portugueses e quando chegasse o século XXI, eu já teria uma idade a rasar esse horizonte. 

Já ganhei, portanto, vinte e um anos, o que foi e é muito bom. 

Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda absolutamente nada. Incomoda-me, sim, a ideia de não poder vivê-la em condições mínimas de saúde e em alegria.

Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo.

Quem me conhece sabe que sou solidário, frontal e transparente, leal, lutador e persistente nas causas cívicas que abracei, afectivo e sempre bem-disposto.

Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador e persistente nas muitas lutas cívicas que travei (e continuo a travar) e o velho que, a tudo isso, acrescenta a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.

Na divulgação científica, no ensino, como em tudo na vida, o afecto é um factor fundamental e decisivo. Muitos anos como aluno, muitos mais como professor e mais uns tantos a escrever nas redes sociais e em livros, convenceram-me que assim é.

No seu último livro “SENTIR & SABER – A CAMINHO DA CONSCIÊNCIA”, António Damásio, veio reforçar esta convicção muito enraizada em mim.

Diz ele que “as capacidades afectivas são fundamentais porque são as primeiras”. E acrescenta dizendo que “é sobre as capacidades afectivas que se vão colocar as capacidades cognitivas”. Para Damásio “aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afecto. A vários níveis”. Damásio deu-me, pois, a imensa alegria de confirmar esta muito minha convicção. Posso dizer que aquilo que foi e ainda é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com a mistura do que é afectivo com o que é puramente racional. Posso ainda dizer que todas as distinções de que fui alvo, e foram muitas, tiveram, por parte de quem me as concedeu, uma componente afectiva que não pude deixar de reconhecer.

Passo agora ao tema anunciado no programa. 

Divulgar, do latim divulgare, é dar a saber a muitos, tornar público, repartir entre o vulgo, vulgarizar.

O meu gosto, quase um vício, por saber coisas começou cedo, em criança, não na escola, que recordo como um lugar e um tempo de aflição e algum sofrimento, mas sim na rua e em tudo o que nela se passava e em todas as oficinas, lojas e artesanias de portas abertas.

O meu gosto pela divulgação de saberes começou mais tarde, durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci como praticante de um campismo selvagem nos campos em redor da cidade (Évora).

Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, nasceu este meu interesse por divulgar conhecimento. 

Muito do que aprendia no Liceu era tema das nossas conversas. Eu falava-lhes, por exemplo, de angiospérmicas e gimnospérmicas e eles ensinavam-me os nomes de todas as árvores, arbustos e ervas que nos rodeavam. Eu falava-lhes do solo, como me havia ensinado o meu professor, e eles mostravam-mo nas suas mãos calejadas e ensinavam-me muito mais do que eu havia aprendido.

Foi com eles que iniciei este modo de falar simples e esta preocupação de descodificar (trocar por miúdos) todas as palavras novas que surgem no discurso. Dito de outra maneira, foi durante esses anos que ganhei experiência e gosto de divulgar o conhecimento científico que os professores e os livros me iam ensinando.

Mais tarde, como adulto, a oportunidade de exercer este meu gosto surgiu-me durante a minha prestação de serviço militar. Com os soldados a quem tinha de dar instrução militar, foram muitas as oportunidades em que, em vez de lhes falar de espingardas, canhões e outras noções próprias da guerra, partilhei conceitos simples de ciência que iam ao encontro das suas profissões. Entre analfabetos e letrados com a instrução primária, rapazes do campo e da cidade, os recrutas eram esponjas de ouvidos e olhos escancarados.

Durante os 40 anos de docência na Universidade de Lisboa (entre 1961 e 2001, na Faculdade de Ciências, e entre 1965 e 1981, na Faculdade de Letras, em Geografia), mantive estreita ligação com as escolas, quer como orientador dos estágios exigidos nas licenciaturas do ramo educacional, quer a seu convite, do pré-primário ao secundário, divulgando conhecimentos, adequados aos respectivos níveis de escolaridade, em torno de temas das Ciências da Terra, falados no mesmo tom e estilo, simples mas rigoroso e sempre alegre, que usei nas muitas palestras que fui fazendo em sociedades recreativas, centros culturais, bibliotecas municipais e outros estabelecimentos que num “passa palavra” entre os professores, no caso das escolas, e entre outros interessados, fazia com que me chegassem convites de todo o lado e a todo o tempo. Era e é do conhecimento geral que não cobrava honorários e que apenas precisava de ter o transporte assegurado. Esta actividade de palestrante foi-se intensificado com o passar do tempo, tendo-se alargado a todo o território, quer no continente quer nas ilhas. A par destas conversas, lições ou palestras como se lhes quiser chamar, aceitei, com o mesmo empenho e a mesma alegria, os convites que me chegaram de quase todas as Universidades nacionais.

Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as 455 páginas desses três livrinhos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos.

Também as lutas que travei (e continuo a travar) pela defesa e valorização do nosso património geológico, e foram muitas, difíceis e prolongadas no tempo, tiveram sempre uma componente de divulgação através da comunicação social.

Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos alguma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória.

As Feiras de Minerais Gemas e Fósseis, iniciadas no Museu Nacional de História Natural, em 1989, nas quais me envolvi empenhadamente, foram outra via de divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas.

O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades, fez com que nos vinte anos que se seguiram à minha aposentação, mantivesse o mesmo ritmo que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia que nos últimos tempos nos atingiu levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”. E é neste ponto que nos encontramos». 

A. Galopim de Carvalho
Lisboa, 25 de Setembro de 2021

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...