sexta-feira, 3 de setembro de 2021

ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA, O INTELECTUAL INDOMÁVEL:

 

Minha recensão no I de ontem:

 A maioria dos meus livros foram publicados pela mesma editora de dois dos maiores intelectuais portugueses do século XX – António José Saraiva e Eduardo Lourenço. O mérito de publicar os livros desses grandes vultos da cultura portuguesa é, decerto, do editor Guilherme Valente, que foi amigo dos dois e que me dá também a honra de ser meu amigo. É nessa casa editora que acaba de sair uma fotobiografia de António José Saraiva (1917-1993): António José Saraiva. Fotobiografia. A Intimidade de um Intelectual Indomável. É um livro de grande formato, de capa dura, com 262 páginas de bom papel, ilustrado com numerosas fotografias a preto e branco, e bem revisto por Maria de Fátima Carmo. São seus autores os três filhos do biografado: António Manuel Saraiva, José António Saraiva e Pedro António Saraiva, todos António como o pai. O primeiro é engenheiro agrónomo e arquitecto paisagista com actividade em Macau, o segundo, arquitecto de formação, dirigiu o Expresso e o Sol, e o terceiro foi quem tomou conta do pai nos últimos nove anos de vida. José Cabrita Saraiva, jornalista do I, é neto de António José Saraiva. O prefácio da pena do escritor Ernesto Rodrigues, que conhece bem a obra de Saraiva, é uma mais-valia do livro, que inclui, como parte muito substancial, uma antologia de textos do biografado. O livro encerra com um depoimento tocante do seu irmão, o historiador José Hermano Saraiva, que foi ministro da Educação no governo de Marcello Caetano. Os dois sempre se deram bem, embora o seu pensamento político estivesse nos antípodas. Uma foto do livro mostra-os, em 1940, de chapéu e lacinho: dois dandys!

Desde que tenho consciência do país e do mundo que comecei a ouvir falar de António José Saraiva. Ele foi o professor com livros proibidos pela censura salazarista e que, demitido da função pública em 1949, se viu obrigado a ir primeiro para Paris em 1960, onde se dedicou à investigação, e depois para Amesterdão, onde ensinou português na universidade. Regressou a Portugal em 1975, tendo sido até à sua jubilação professor na Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) e na Universidade de Lisboa (Faculdade de Letras). Foi membro do Partido Comunista Português (PCP), mas saiu, desiludido, ainda antes da invasão da Checoslováquia pelos soviéticos, em 1968. Exibiu uma atitude bastante céptica para com os políticos do pós-25 de Abril. O facto de não deixar que ninguém pensasse pela cabeça dele levou alguns a “arrumá-lo” na direita.

O primeiro livro de Saraiva que li Inquisição e Cristãos-Novos (1.ª edição: Inova, 1969), uma obra que levantou alguma polémica (teve edição em inglês). Mas claro que utilizei para aprender literatura portuguesa a sua muito conceituada História da Literatura Portuguesa (1.ª edição: Porto Editora, 1955), escrita a meias com Óscar Lopes, que conheceu 21 edições. Em 1977 saiu, sob o seu impulso, a revista de inspiração ecológica da qual possuo todos os 19 números  Raiz e Utopia. Sou também o feliz possuidor da sua obra saída na Gradiva, em 24 volumes, dos quais o primeiro é O Crepúsculo da Idade Média em Portugal (1993) e o último a reedição do já referido Inquisição e Cristãos-Novos (2019). Tiro da estante um desses volumes sempre que preciso, seja sobre Fernão Lopes, Luís de Camões ou o Padre António Vieira. Destaco a Cultura em Portugal, em dois tomos (1991), e As Navegações e as Origens da Mentalidade Científica (2010), vol. III da História da Cultura em Portugal. A fotobiografia contém uma lista bibliográfica de Saraiva, incluindo alguns livros póstumos, entre os quais Só Para Meu Amor É Sempre Maio (Gradiva, 1997), cartas de amor entre ele e Maria Isabel Saraiva, a mãe dos seus três filhos, e Cartas de Amor de António José Saraiva a Teresa Rita Lopes (idem, 2013).

Na ampla iconografia do livro, que são documentos do século XX português, encontrei a imagem gravada na minha mente dele de bigode e camisola de lã com gola alta, em Paris, e depois, mais velho e já em Portugal, de boina basca. No livro encontra-se uma fotografia dele com Guilherme Valente em Macau.

António José Saraiva teve escassas honras em vida, como normalmente acontece a quem é verdadeiramente independente. Recebeu o Prémio de Ensaio do PEN Clube Português de 1991 e o Prémio Jacinto do Prado Coelho de 1992. Morreu diante do público quando estava a agradecer o prémio do PEN, que distinguia a obra A Tertúlia Ocidental, e, emocionado, falava das influências do seu pai e de Nunes de Figueiredo, seu professor de Português no liceu.

Lida a fotobiografia, o que mais me impressionou foi a força do seu carácter, forjada na educação que recebeu. Nascido em Leiria, porque o pai (um self-made man, natural da aldeia de Donas, perto do Fundão, onde António Guterres também tem raízes familiares) tinha sido nomeado reitor do Liceu de Leiria, António José teve ensino doméstico e fez o exame da 4.ª classe em Lisboa, preparado por uma tia e madrinha. Começou o liceu em Leiria e acabou-o em Lisboa, no Gil Vicente. Concluiu em 1938 o curso de Filologia Românica na Universidade de Lisboa com uma tese sobre Bernardim Ribeiro e quatro anos depois o doutoramento na mesma escola com uma tese sobre Gil Vicente. Doutorou-se aos 25 anos, num tempo em que os doutoramentos costumavam durar muito.

Pelo livro ficamos a saber facetas curiosas da vida familiar e social. Por exemplo, a sua mulher Maria Isabel foi sua aluna e conheceu-a quando um dia a chamou ao quadro e ela não se inibiu de criticar o professor. Ainda antes de casar com ela, Saraiva teve uma violenta polémica com o catedrático Vitorino Nemésio, de quem era assistente, por causa da nota de uma outra aluna. A cena deve ter sido cinematográfica, pois voou um tinteiro… Quando Nemésio depois lhe ligou, ele desligou-lhe o telefone na cara. Ganhou a disputa o mais poderoso, pelo que Saraiva foi posto na rua. Obteve um lugar de professor no liceu de Viana do Castelo.

António José Saraiva era um homem de princípios, que transmitiu aos seus filhos. Disse ao filho José, quando este referiu que se roubavam livros nas livrarias de Paris, porque eles faziam mais falta aos estudantes pobres do que aos livreiros ricos: “As pessoas não devem roubar pela falta que isso possa fazer aos outros, mas por respeito para consigo próprias.” E ao filho Pedro: “Sabes, Pedro, na vida temos de nos habituar a viver com pouco; caso contrário, teremos de nos sujeitar a fazer muitas coisas de que não gostamos.” Era espartano, estóico mesmo. Gostava de acampar na serra, arrostando com privações. Viveu em certos períodos da vida com extremas dificuldades (“Cortaram-nos a luz e o gás, e cozinhava-se a petróleo, num pequeno fogareiro”, escreve a mulher numas memórias ainda inéditas). Em 1953 foi preso pela PIDE e metido em Caxias por ter ido ao aeroporto receber Maria Lamas vinda de um “Congresso da Paz” em Moscovo. Libertado, regressou de Caxias a pé até à sua casa em Belém (morava na Calçada do Galvão, onde eu também morei em pequeno: Portugal é muito pequeno).

Não foi fácil a sua vida de exilado em Paris, onde assistiu ao Maio de 1968, sobre o qual escreveu. Nessa altura já tinha abandonado o ideário comunista. Quando, na conversa final, o controleiro do PCP lhe disse “E agora o António José Saraiva vai calar-se, porque a partir daqui quem vai falar não sou eu, mas o partido”, Saraiva ripostou: “Então o partido fale com aquela parede, porque eu vou-me embora”. E seu dito, seu feito…

Foi em Paris que Saraiva conheceu Teresa Rita Lopes, de quem tinha 19 anos de diferença de idade, facto que não impediu um prolongado romance entre os dois, animado pela festa do 25 de Abril. Mais tarde, Saraiva tomou-se de amores com Martha Telles, uma pintora da Madeira, mas a coisa não correu bem. Também simpatizou, no final da vida, com uma aluna da Faculdade de Letras, Leonor Curado Neves, que morreu precocemente, aos 55 anos, não sem antes organizar alguns papéis de Saraiva, incluindo a correspondência com o seu amigo Óscar Lopes. Sobre as mulheres confessou um dia ao filho José: “Sabes, Zé, eu passei a vida a tentar entender as coisas e a ler e a escrever sobre as pessoas, mas há uma coisa que nunca consegui compreender: as mulheres.”

Entre os seus amigos figuraram, entre outros e por ordem alfabética, Joel Serrão, Jorge de Sena, José Augusto Seabra, José Cardoso Pires, Luísa Dacosta (com quem trocou ampla correspondência), Maria Lamas, Orlando da Costa (pai do primeiro-ministro António Costa) e Vicente Jorge Silva. A fotobiografia informa sobre as suas preferências literárias: “Dos contemporâneos, admirava Herberto Hélder, Nuno Bragança (A Noite e o Riso), Lídia Jorge (O Cais das Merendas), Eugénio de Andrade e sobretudo Agustina-Bessa Luís. Para ele, Agustina era um génio da língua.” Detestava os neorealistas, em especial depois de ter saído do PCP.

Colando-se ao estereótipo de sábio distraído, não ligava nem a papéis nem a dinheiro. Era quase surdo, devido a uma grave otite infantil: controlando o seu aparelho, só ouvia o que queria. Em 1985 numa entrevista a um jornal declarou: “Eu sou existencialmente inconformista. Eu sou, de origem, um camponês. Eu fui espiritualmente cristão e teoricamente marxista. Eu estou contra a sociedade, independentemente das teorias. Eu acredito no espírito, mas não sou capaz de o definir. Eu estou pronto a emigrar de novo, se necessário. Eu sou António José Saraiva.” Esta é, uma autobiografia muito resumida de um português de têmpera.

1 comentário:

Helder Araújo disse...

O pequeno opúsculo "Maio e a Crise da Civilização Burguesa", onde ele reflecte sobre a sua experiência com o Maio de 68, tem vários ensaios bem interessantes... Num desses ensaios ele considera que o marxismo é uma formulação ideológica burguesa... O opúsuculo foi polémico e suscitou várias respostas. Entre elas está um pequeno livro, de autoria do Sottomaior Cardia (que veio a ser Ministro da Educação), intitulado "O Marxismo Anti-Contestatário ou as Infelicidades de um Jdanovista ofuscado pelo Neocapitalismo". Foi sempre muito criativo, o AJS. Vale a pena ler o que ele escreveu, nas várias dimensões da sua obra.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...