terça-feira, 20 de julho de 2021

“Desprezo Shakespeare”


Novo texto de Eugénio Lisboa: 

No prefácio que escreveu para o Auto da Barca do Inferno, a peça de Gil Vicente incluída na série “Clássicos de Sempre”, distribuída com o Expresso, a conhecida e festejada actriz Beatriz Batarda, com louvável coragem, diz despojadamente o que pensa do criador do teatro português. Nestes desenxovalhados termos:
“Antes de mais conversa, é importante adiantar ao leitor que há já algum tempo que deixei de gostar da obra de Gil Vicente. E assim, ouso dizê-lo, argumento em meu favor mais de metade de uma vida dedicada ao teatro. A sua obra está, para a minha sensibilidade, muito para além do ingénuo ou pastoril, é boçal, limitada e primária; a sua métrica é pobre e repetitiva (4 ou 8 sílabas, remetendo o pensamento para a canção e afastando o discurso elevado). O vocabulário é brejeiro, as histórias são popularuchas, as personagens são bidimensionais como um papel em branco. Isto é, sinto como insuficiências as mesmas coisas em que outros vêem «universalismo»”.
Assim mesmo. Concorde-se ou discorde-se das “reservas” de Beatriz Batarda, não se deve diminuir a coragem desta atitude admiravelmente frontal: “há já algum tempo que deixei de gostar da obra de Gil Vicente.”

Quantos dos nossos eruditos encartados seriam capazes de um tal despojamento? Gil Vicente é tido como inquestionável no universo do teatro português. Do romantismo para cá, tem sido endeusado. Quem se atreve a dizer “não gosto” e a dar boas razões desse não gostar?

O nosso intelectual é, em geral, tímido, receoso e dificilmente arrisca uma opinião afrontosamente desviante. É muito raro – se é que alguma vez acontece – um dos nossos “professores” ou “grandes ensaístas” mostrar-se capaz de dizer o que disse o grande dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, de Shakespeare. Disse, entre muitas e afrontosas coisas, o seguinte: 
“Com apenas a excepção de Homero, não há nenhum escritor eminente, nem mesmo Sir Walter Scott, que eu despreze tão completamente como desprezo Shakespeare, quando comparo a sua mente com a minha.”
Excluindo Vasco Graça Moura, que não receava demitir Fernando Pessoa, por este alegadamente não saber português, não vejo por aí muita gente capaz de desassossegar o “milieu” com alguma destemida opinião fora da “streamline”. Quem se atreveria a dizer de Camões ou Garrett o que Voltaire disse de Shakespeare (“un énorme fumier”: um enorme esterco)?

Este género de “franc parler” que Stendhal tanto admirava não faz parte dos usos e costumes do nosso meio académico e literário. Os “gurus” estão ali para serem respeitadinhos. Neles, nem com uma flor se toca. 

“Desprezo Shakespeare” pode não estar dentro da razão, mas é um acto de liberdade intelectual que pode ser também um acto fundador. Desatravancar a nossa paisagem da tralha de tanto respeito talvez acabe por ser saudável.

Que mal faz não gostar de Gil Vicente? Há tanta gente que, confessada ou inconfessadamente, não gosta! Convido, pois, os meus caros confrades das letras a serem capazes, de vez em quando, da desenvolta iconoclastia que Beatriz Batarda tão admiravelmente exemplificou. 

Diga devagar, para se habituar: “Não gosto de Gil Vicente. Desprezo Shakespeare”.

Mesmo que não seja verdade, desentope a canalização. 

P. S. – Este texto, que agora desenterro e publico como sequela ao “Despejar o Saco”, que aqui publiquei há poucos dias, teve a sua primeira aparição também na revista LER. Dá exemplos refrescantes de “não ter frio nos olhos”, como dizem os franceses de quem não tem medo de divergir das opiniões estabelecidas. Outro exemplo desse tipo de saudável afronta, vem registado nas páginas do famoso Journal de André Gide. Nele relata que um dia André Malraux perguntou a Paul Valéry: “Você conhece alguma coisa mais idiota do que a Ilíada?”, ao que Valéry respondeu prontamente: “Conheço, sim, a Chanson de Roland”. Estes dois altos representantes da grande cultura gaulesa (um deles, futuro ministro da cultura do governo de De Gaulle) não temeram questionar o valor de dois ícons da literatura universal. Entre nós, os nossos grandes ensaístas só afrontam os que já estão muito desgastados por afrontas anteriores e dá jeito e juros continuar a apear do lugar que até lhes pertence. Coragem, sim, mas devagar!
Eugénio Lisboa

4 comentários:

Unknown disse...

« Diga devagar, para se habituar: “Não gosto de Gil Vicente. Desprezo Shakespeare” . Mesmo que não seja verdade, desentope a canalização.»
Ó diabo! Não consigo. É que eu gosto mesmo dos dois, so sorry...

Biatrez Petardo disse...

Concordo.

Carlos Ricardo Soares disse...

Gostar de, ou não, ou desprezar, Shakespeare, Gil Vicente, concordar ou discordar de Platão, Kant, contestar ou refutar Newton, Einstein, ser apologista ou contra Karl Marx, venerar Beethoven ou Mozart, adorar Deus ou renegar o diabo, não está ao alcance da veleidade e do capricho de todos, como dizer sim ou dizer não, desta liberdade natural e essencial do humano, e não está ao alcance de todos apresentar razões justificativas consistentes e aceitáveis para o fazer.
O sim e o não, como nos referendos, são actos ao alcance de uma cabeça que ouça e abane ou, para colocar uma cruz numa quadrícula impressa num papel, de uma cabeça, mesmo que não saiba ler, com olhos coordenados com uma mão, assinando de cruz o seu destino e o dos outros, sem necessidade de fundamentar por que o faz.
Alguém o fará por eles.
O que ninguém fará por eles são as obras, que são de quem as faz, apesar de sabermos que as obras, na realidade, pertencem a quem as detém, ainda que não seja quem as tenha mandado fazer.

Não gosto, detesto, odeio disse...

Penso que Gil Vicente não se importará com a admirável bidimensional B. B., de opinião "boçal, limitada, primária e popularucha". Shakespeare muito menos se importará com Shaw. Liberdade é liberdade.

Como reza a inscrição da Estátua da Liberdade:
"Dá-me as tuas gentes, cansadas, pobres,
Confusas, ansiando por respirar livremente,
A recusa infeliz das tuas praias apinhadas.
Manda-me esses, os sem-lar, os batidos pelas tempestades:
Eu ergo a lâmpada ao lado da porta de ouro."

Liberdade.
Até deveria ser instituído um "Dia Nacional da Liberdade Pessoal", com ecopontos distribuídos pelo país, para deitar fora tudo o que não gostássemos, sem restrições: livros, instituições, pessoas, políticas, religiões... Só teria medo de ficar vazia. Mas não. Guardaria debaixo do braço a Declaração do Thomas Jefferson que, apesar de elitista, compreendia as criaturas: " dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis, entre os quais vida, liberdade e a procura da felicidade". E depois punha-me a caminho para lançar na lixeira Kant que não sabia escrever.

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