Sir Paul Nurse (72 anos) é um bioquímico e geneticista inglês, doutorado pela Universidade de East Anglia depois de ter estudado em Birmingham, na Inglaterra. Entre 2010 e 2015 foi Presidente da Royal Society de Londres, a sociedade fundada em 1660 por um grupo de cidadãos à qual o rei Carlos II, casado com a nossa Catarina de Bragança, outorgou carta real (sentou-se, portanto, na cadeira que, no século XVIII, foi de Isaac Newton e pode ostentar a seguir ao nome a sigla FRS, Fellow of the Royal Society). Entre 2003 e 2011 foi Presidente da Universidade Rockefeller em Nova Iorque. E, em 2011, tornou-se o primeiro Director do Instituto Francis Crick, o grande e moderno instituto de biologia molecular de Londres cujo nome homenageia um dos descobridores da estrutura do ADN.
Nurse recebeu, juntamente com os seus
colegas Leland Hartwell e Tim Hurt, o primeiro norte-americano e o segundo britânico,
o Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia de 2001, pelas suas descobertas de
moléculas que controlam a divisão celular. Recebeu muitos outros prémios e
distinções, entre os quais o prémio Louis-Jeantet de Medicina e o Albert
Einstein World Award of Science, assim como graus honoris causa de
várias universidades, como as de Oxford e Cambridge, as mais antigas da Grã-Bretanha
e das mais prestigiadas do mundo.
Conheci-o pessoalmente em 2014 quando
o convidei a vir a Portugal, no quadro do Mês da Ciência da Fundação Francisco
Manuel dos Santos, e ele, aceitando, proferiu uma lição na Universidade de
Lisboa, que foi comentada pelo saudoso médico João Lobo Antunes. Surpreendeu-me
muito agradavelmente o modo como aliava sabedoria e simplicidade. Dava, como é
regra dos cientistas anglo-saxónicos, respostas directas, por vezes com uma
pitada de humor. Perguntei-lhe, por exemplo, o que dizia ao “ministro da
Ciência” (o nome oficial não é esse) britânico sobre o financiamento da ciência
na sua qualidade de Presidente da Real Society. Ele respondeu-me que não
dizia nada pois ia directamente ao primeiro-ministro. Pensei, para com os meus
botões, que, porventura, se fosse preciso, também poderia falar com a rainha,
que o nomeou Sir. Perguntei-lhe também por que razão não tinha ainda
escrito um livro para o grande público e ele justificou-se com a falta de tempo,
envolvido como estava com a investigação e a gestão da ciência, mesmo passados muitos
anos após a recepção do maior prémio científico do mundo.
Saiu recentemente em Portugal,
não muito depois do original inglês, o seu primeiro livro de divulgação
científica, que é uma obra-prima desse género, intitulado O que é a vida?
Como o autor reconhece, trata-se de uma apropriação descarada do título de um
dos melhores livros de ciência do século passado, o livro, pequeno como este,
do físico austríaco Erwin Schrödinger, que discutia as bases da hereditariedade
e as relações entre vida e informação. O livro de Nurse, com o subtítulo Compreender
a Biologia em 5 Lições, saiu, com a chancela da Vogais, pertencente ao
grupo editorial 2020, numa tradução de Catarina Gil Gândara. Lê-se de um trago.
A obra de 158 páginas está dividida em cinco curtos capítulos correspondentes
às cinco lições de que fala o subtítulo: “A célula”, “O gene”, “Evolução
através da selecção natural”, “A vida enquanto química”, e “A vida enquanto informação”
(outra vez “enquanto”, uma conjunção que está na moda; prefiro usar “como”
quando o significado não é temporal). A resposta à grande pergunta da capa vem no
capítulo final, mas antes ainda há outro sobre as aplicações da biologia na
nossa vida. A diferença em relação ao livro de Schrödinger, que inspirou Francis
Crick e James Watson na descoberta da estrutura do ADN é a actualidade da visão
de Nurse, não só sobre os genes e a informação, mas também sobre as células (as
estruturas básicas de todos os seres vivos), a evolução (sem a teoria da
evolução “nada na Biologia faz sentido”, como disse o biólogo norte-americano
de origem ucraniana Theodosius Dobzhansky), e da química da vida (o metabolismo
que assegura a vida). Recomendo o livro para quem queira compreender os
mistérios da vida.
O grande conhecimento que o autor
tem da biologia, a sua capacidade de síntese e o seu estilo sedutor permitem-lhe
dizer o essencial sobre cada um desses cinco temas. Nurse apresenta em traços
gerais a história de cada assunto, pois a ciência é cumulativa (como disse Newton:
“Se vi mais longe é porque estava aos ombros de gigantes”), e não se esquece de
incluir a história da sua descoberta dos genes da divisão celular e das correspondentes
proteínas. O livro começa com a sua entrada, aos 12 ou 13 anos, no mundo da
biologia primeiro com a observação de borboletas (há uma que está pousada na
letra “Q” de “Que”, na capa) e depois com a observação de células da cebola,
num microscópio escolar.
Dou a palavra ao autor, na parte
em que ele, no capítulo sobre a evolução natural, depois de a apresentar (“processo
intensamente criativo que deu origem aos seres humanos e à extraordinária
diversidade de formas de vida que os rodeiam”), a coteja com a alternativa
criacionista: “Para mim, esta história da vida é tão cheia de fascínio quanto
qualquer dos mitos criacionistas. Enquanto a maior parte das histórias
religiosas nos apresentam actos criadores que nos são familiares, até mesmo um tanto
ou quanto mundanos, e durações de tempo que conseguimos compreender facilmente,
a evolução através da selecção natural obriga-nos a imaginar algo que está
muito mais fora da nossa zona de conforto, mas que também é mais esplendoroso. Trata-se
de um processo totalmente aleatório e gradual, mas que, quando é inserido na
duração inimaginavelmente vasta do tempo – aquilo a que os cientistas chamam,
por vezes, o ‘tempo profundo’ – , se torna a mais suprema das forças criadoras.”
O tempo é, portanto, o “grande escultor”
(Yourcenar dixit). E é curioso que a acumulação de erros nas cópias do
ADN, escolhidas pela interacção com o ambiente, tenha levado à prodigiosa árvore
da vida, que inclui a borboleta, a cebola e o próprio Nurse. Inclui também as
leveduras, organismos unicelulares com poucos genes, que ele observou para perceber
a divisão celular. A unidade da vida é ilustrada pelo facto de um dos colaureados
com o Nobel ter descoberto os mesmos mecanismos genéticos, observando ouriços
do mar. As células da borboleta, da cebola e humanas seguem processos
semelhantes aos das leveduras e dos ouriços do mar.
Escreve Nurse mais adiante: “Em última
análise a vida emerge das regras relativamente simples e bem conhecidas da atracção
e repulsão químicas, e da criação e destruição de ligações moleculares. De alguma
maneira, esses processos seminais, que funcionam en masse a uma escala
molecular minúscula, conjugam-se para criar bactérias que podem nadar, líquenes
que crescem nas rochas, as flores de que cuidamos nos nossos jardins, as borboletas
esvoaçantes, e eu e o leitor, que temos capacidade para escrever e ler estas páginas.”
O autor tem uma história pessoal extraordinária,
digna de uma telenovela: Não é filho da mãe que julgava ser a sua! Ele não tem
pejo em contar a história, que circulou nos media quando foi descoberta.
A mãe teve-o aos 17 anos de um pai desconhecido (ele pelo menos desconhece-o),
tendo o parto ocorrido em Norwich, residindo a família em Londres. No regresso,
a mãe da jovem mãe fez passar o bebé por seu, quer dizer, os supostos pais eram,
de facto, os seus avós e a suposta irmã era, de facto, a sua mãe. Nurse descobriu
tudo isso tarde na vida quando as pessoas implicadas já tinham falecido. Quando
pediu a Green Card para residir nos EUA, onde ia presidir à Universidade
Rockefeller, o visto começou por lhe ser negado pelo facto da certidão de
nascimento estar incompleta. E, quando, pediu uma certidão completa, lá estava
preto no branco: a mãe era a suposta irmã e no pai estava um tracinho. É
paradoxal que um geneticista tenha sido surpreendido pela sua própria genética.
Nurse conta outras histórias, como o seu repetido chumbo no exame de Francês no
final do liceu, o que não o impediu, anos volvidos, de agradecer na língua de
Descartes uma alta condecoração do Estado francês. Repare-se que ele usa o
francês en masse numa frase citada acima.
Mas afinal o que é a vida? Nurse responde
no final. São precisos três princípios. O primeiro é o da selecção natural: “Para
evoluírem, os organismos vivos têm de se reproduzir, têm de ter um sistema hereditário,
e esse sistema hereditário tem de exibir variabilidade. Qualquer entidade que tenha
estas características pode evoluir e fá-lo-á”. O segundo é a limitação no
espaço das formas de vida. Podem ser células ou seres humanos, mas têm de estar
separadas do ambiente e em comunicação com ele. O terceiro é que as entidades
vivas sejam máquinas químicas, físicas e informativas. Na sua acepção, os vírus
são seres vivos, apesar de necessitarem de um hospedeiro. Mas o software já
não é.
Nurse termina à maneira de Carl Sagan
em Cosmos (Gradiva, 2009): “Tanto quanto sabemos, nós, seres humanos,
somos as únicas formas de vida que conseguem aperceber-se desta profunda conectividade
e reflectir sobre o que tudo isto poderá significar. Isso dá-nos uma
responsabilidade especial em relação à vida neste planeta, composto como é pelos
nossos parentes, alguns próximos e outros mais distantes. Temos de nos preocupar
com ela, temos de cuidar dela. E, para o fazermos, temos de a compreender.“ Para
voltar ao francês, é um grand finale!
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