quarta-feira, 21 de julho de 2021

A HISTÓRIA DA BÍBLIA EM PORTUGAL


Meu artigo no último JL:

A palavra Bíblia significa livros: é o plural da palavra grega que designa rolo de papiro, uma forma arcaica de livro, tendo o nome sido tomado da cidade de Byblos, hoje no Líbano, de onde eram exportados esses papiros para outros sítios do Mediterrâneo. A Bíblia é, de longe, o livro mais publicado no mundo. A história da sua publicação é também a história do livro: do papiro a palavra passou ao papel e do papel está a passar para suportes digitais. A sua história é, também, de certo modo, a história do mundo, pois não se pode compreender a evolução da Humanidade, sem considerar o cimento aglutinador que constitui para grande parte dela esse livro. A primeira tradução do Novo Testamento para alemão feita por Martinho Lutero em 1522  é decerto um marco da história da Europa.

Faltava em Portugal uma história da Bíblia, que é também a história do livro em Portugal e é igualmente, vista de um ângulo muito interessante, a história de Portugal. Esse livro já existe e não é apenas um: são seis espessos volumes, A Bíblia em Portugal, um trabalho verdadeiramente enciclopédico de Frei Herculano Alves, um franciscano capuchinho, portanto membro de uma ordem religiosa que se tem distinguido na difusão da Bíblia.

Os volumes foram recentemente apresentados em Gouveia, no quadro da preparação de um congresso sobre escritos sagrados: a “Bíblia na Cultura Ocidental”. Porquê Gouveia? Porque o município nas faldas da Serra da Estrela, planeia erigir um Museu do Livro Sagrado, onde apresente não só a Bíblia como outros livros de teor religioso. Tive o gosto de introduzir o volume V da obra, intitulado A Bíblia em Portugal nos Séculos XVIII-XX, numa sessão que contou com intervenções do bispo da Guarda D. Manuel Felício, do cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e, em directo do Vaticano, do cardeal Gianfranco Ravasi, que dirige o Conselho Pontifício para a Cultura.

Quando foi a Bíblia pela primeira vez traduzida em português? Tal aconteceu bastante tarde relativamente a outras línguas vernáculas. Por exemplo, a primeira tradução em castelhano foi publicada em Basileia, em 1569, no quadro da reforma protestante, que preconizava a aproximação directa dos crentes à palavra de Deus através da leitura. O primeiro Novo Testamento em português saiu em 1681 do prelo da viúva Someren, em Amesterdão, sendo seu autor o pastor protestante português João Ferreira Annes d’ Almeida. Natural de Torres de Tavares, uma aldeia perto de Mangualde, Almeida foi em pequeno para a Holanda e daí para Malaca e Jacarta, onde preparou a tradução. O autor não conseguiu terminar a versão portuguesa do Antigo Testamento, mas a Bíblia de Almeida, apesar da sua origem no Extremo Oriente, tornou-se um texto global: é o livro em português mais difundido de sempre com mais de 113 milhões de cópias impressas (o volume IV da Bíblia em Portugal é-lhe inteiramente dedicado, dando difusão acrescida à tese de doutoramento que o autor fez na Universidade de Salamanca). Apesar de ter circulado em todo o mundo, a primeira Bíblia na língua de Camões teve dificuldade de entrar em Portugal – chegou pelas mãos de alguns oficiais ingleses que cá estiveram no tempo das invasões napoleónicas.

A primeira tradução católica saída em território nacional foi o Novo Testamento. Impresso pela Oficina Régia, em Lisboa, em 1778, quase um século depois da Bíblia de Almeida. Foi traduzido da Vulgata latina pelo Padre António Pereira de Figueiredo, o qual, entre 1778 e 1790 fez sair 23 volumes da Bíblia completa em português. Figueiredo, membro da Ordem dos Oratorianos, foi latinista, retórico, teólogo, canonista, historiador, etc. A edição ocorreu já depois da “Viradeira” de 1777, a data em que, com a morte de D. José, o Marquês de Pombal foi afastado do poder. Ora Figueiredo, que já tinha pronta a sua tradução em 1772 (ano da Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, que fará dois séculos e meio no próximo ano), afirmou-se como um dos maiores ideólogos do regime pombalino. Era católico e apostólico, mas não muito romano. Pelo contrário, pode ser considerado um adepto do regalismo, a doutrina que defende o poder do rei sobre as igrejas nacionais em detrimento do poder papa, e que em França teve o nome de galicismo. Nutria simpatias pelo jansenismo, o movimento herético que surgiu em França no século XVII no quadro da Igreja Católica e que se caracterizava pelo rigor adicional em certos temas teológicos (o matemático, físico e filosofo Blaise Pascal foi jansenista).

O Marquês de Pombal atacou, como é sabido, os jesuítas, tendo extinguido a ordem em Portugal, em 1759, e empreendido esforços para que ela fosse também extinta em Espanha e França, o que levou ao breve de supressão universal assinado pelo papa em 1760. O historiador inglês Kenneth Maxwell chamou a Pombal “paradoxo do Iluminismo”. É uma figura controversa: Se por um lado, ele lançou luz própria (como a dita reforma universitária), por outro, para que a sua luz se visse melhor, apagou tanto quanto pôde a luz dos outros. Não é verdade, por exemplo, que os jesuítas fossem totais obscurantistas: só para dar um exemplo, o padre Inácio Monteiro escreveu um bom compêndio de matemática e, expulso de Portugal, foi prefeito da Universidade de Ferrara, em Itália.

Frei Herculano Alves, num trabalho hercúleo que a cultura portuguesa deve agradecer, discute em pormenor, as circunstâncias da tradução de Figueiredo e o impacto que ela alcançou no referido volume V, de 1496 páginas, saído nas Edições Esgotadas, de Viseu. E trata a difusão da Bíblia no nosso século XIX, marcado por novas perseguições religiosas. No seio da Igreja Católica a leitura da Bíblia continuou a não ser considerada uma prioridade da pastoral, pois a instituição considerava necessária a intermediação que os clérigos faziam. Hoje, como conta Frei Herculano Alves no volume VI (A Bíblia em Portugal nos séculos XX-XXI), que foi apresentado em Gouveia por José Eduardo Franco, a situação é bastante diferente. Assim como é diferente a relação entre católicos e protestantes. Como diz Frei Herculano Alves: “Oxalá estes tristes espectáculos entre discípulos do mesmo Cristo e com a mesma Bíblia na mão tenham o seu fim.”

 

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