sexta-feira, 16 de julho de 2021

SOBRE A NECESSIDADE DE (SE VOLTAR A) DISCUTIR O SENTIDO DO ENSINO SUPERIOR


"Até aqui, sempre foram os docentes a decidir o que vão dar. 
Mas a grande transformação é que sejam alianças 
entre os docentes e os empregadores a decidir 
o que deve ser dado para responder às necessidades." 
Ministro da Ciência e do Ensino Superior, Expresso, 13 de Julho de 2021.

Foi recentemente publicado no jornal Expresso um artigo com o título Revolução em curso nas universidades: menos teoria, mais prática e ensino à distância. Nele, altos responsáveis pelo Ensino Superior em Portugal explicam as mudanças que tencionam implementar na universidade e nos institutos politécnicos. Trata-se de mudanças decalcadas nas orientações/recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Como não poderia deixar de ser, tais orientações/recomendações vão no sentido de fazer depender as opções de investigação e de ensino, que cabem às instituições em causa, do funcionamento do mercado. Isto, não obstante os bondosos argumentos pedagógicos e sociais que são convocados para justificar isso mesmo.

Este artigo esclareceu o país acerca das mudanças em curso desde a Reforma de Bolonha, cujas manifestações mais profundas só agora se revelam por inteiro. Na verdade, elas foram certeiras mas progressivas, uma agora outra depois, até chegarmos à afirmação aberta (e, dizem muitos, inimaginável) dessa dependência. 

Estando na universidade, tenho percebido que, nos últimos anos, a discussão suscitada pelas mudanças tem ficado restrita a órgãos de cada instituição ou a conversas entre pares, vendo-se, é certo, aparecer em trabalhos académicos, de circulação limitada. Ou seja, é uma discussão que está longe de sair dos círculos que afecta.

Por isso mesmo, o artigo do Expresso foi assaz importante: fez transpor a discussão para fora dos muros institucionais, que, como um dos entrevistados dizia, importa "mandar abaixo". Em reacção outros artigos sugiram nos jornais. Um deles, com título substancialmente assertivo, saiu no passado dia 13 e é assinado por João Teixeira Lopes (ver aqui). O seu conteúdo é focado no ensino, no papel e na responsabilidade do professor.


Diz o professor universitário de sociologia, dirigindo-se directamente ao Ministro da Ciência e do Ensino Superior:
"Quando julgávamos que tínhamos ultrapassado o auge da investida neoliberal face à Universidade, numa altura em que até o status quo das políticas científicas europeias acentua a importância de ajustarmos os modelos de avaliação (evitando a mera contabilização acrítica de “produtos”), a centralidade da “ciência cidadã”, a relevância de envolveremos vastos atores e movimentos sociais numa cultura científica abrangente ou mesmo a importância dos processos de cocriação, eis que algumas instituições de "vanguarda" assumem a revolução (...) 
À boleia da pandemia, querem remeter as aulas teóricas para o ghetto do online, assim reificadas como acessório mais ou menos dispensável face ao pragmatismo absoluto e instrumental das "aulas prática", repetindo a ladainha da bifurcação entre teoria e prática (...). 
Claro que se percebe o que está subjacente: por um lado, regressa em força a primazia da ciência aplicada, à medida das encomendas, mercantilizada no seu âmago, pronta a usar. Por outro lado, transfere-se uma vez mais, o dinheiro público para o setor privado (...). finalmente, transformam-se os docentes em meros tecnólogos, formadores de aulas práticas e aceleradores a credenciação (...). Na verdade, os professores são uns chatos, que teimam em querer transmitir valores e processos demorados de construção intelectual e de análise crítica (...). 
Para si e essas personalidades, as aulas teóricas são expositivas e os alunos não participam. Lamento dizer-lhe, mas precisa rapidamente de fazer uma formação pedagógica. As minhas aulas teóricas são momentos de grande alegria e debate. Diz ainda, na já célebre entrevista ao Expresso "Até aqui, sempre foram os docentes a decidir o que vão dar. Mas a grande transformação é que sejam alianças entre os docentes e os empregadores a decidir o que deve ser dado para responder às necessidades". Nenhum governante tinha ido tão longe no propósito de colonizar o campo académico e científico. Por isso, gabo-lhe a coragem. Ao menos assim fica claro que o seu ideal é colocar os CEO deste mundo a fazer programas, a definir objetivos de aprendizagem e métodos de avaliação. O docente executará, transformado em mais um colaborador do imenso e desmedido universo empresarial. 
Senhor ministro: enquanto eu for professor, nos meu programas mando eu, em articulação com o conselho científico da minha instituição. Serei sempre sensível à interacção com os alunos (...), à responsabilidade social, à escuta dos vários saberes que dialogam e complementam o saber universitário, que se quer humilde, poroso e dinâmico. Mas não prescindo da autonomia que séculos e séculos de acumulação de conhecimento e de luta contra o dogma e os obscurantismo me concederam (...).

1 comentário:

Dulce Marques da Silva disse...

Começo a acreditar que existe um complô para disseminar a ignorância! Convém a vários tipos de poder e sobretudo ao poder económico.
A escola pública está a abandonar a sua verdadeira missão: o esclarecimento, a transmissão de conhecimentos, a preparação de cidadãos críticos. Em suma, o encaminhamento para o aperfeiçoamento humano que não se concretiza à margem do conhecimento e dos valores.
Agora querem mutilar a Universidade naquilo que é seu apanágio desde há séculos!
Parabéns pelo seu texto senhor professor João Teixeira Lopes!
Sou apenas professora do ensino secundário mas também digo, no que me for possível e até onde me for possível: Não metam as mãos nas minhas aulas!

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