Minha recensão saída no I de quinta-feira passada:
Tenho uma boa colecção de banda
desenhada (BD), a chamada “nona arte”, e dentro desse género artístico onde
textos e ilustrações se aliam, privilegio a BD franco-belga. Entre os grandes
nomes desse estilo, no quadro da “linha clara” que associamos a Tintim do belga
Hergé (pseudónimo de Georges Remi), o herói de 24 títulos, e a Blake e Mortimer,
do também belga Edgar P. Jacobs, heróis de nove títulos (13 volumes), está o
francês, tanto argumentista como desenhador, Jacques Martin (1921–2010; nasceu,
portanto, há cem anos), o autor de uma série de livros cujo herói é Alix, um
rapaz gaulês, que, tendo começado como escravo, se tornou cidadão e Roma, sob a
protecção de um patrício romano, movendo-se num círculo próximo do imperador
Júlio César, no primeiro século antes de Cristo. A ligação entre Martin e Alix
é tão forte que há um busto de Alix na campa de Martin, numa pequena cidade belga.
Martin e Hergé foram amigos: Martin
foi mesmo colaborador de Hergé na feitura de dois dos álbuns de Tintim. Tendo publicado
as suas primeiras tiras em 1942, quando trabalhava como desenhador industrial
tentando ultrapassar a sua origem humilde, Martin criou Alix no final da
guerra, em 1948, quando se mudou para a Bélgica. As primeiras pranchas saíram precisamente
no Journal de Tintim (a estreia foi, mais precisamente, no n.º 38 da
revista para “jovens dos 7 aos 77 anos”). As aventuras de Alix permaneceram nas
páginas dessa revista ao longo de várias décadas, só tendo terminado em 1985. Alix
tornou-se quase tão famoso como Tintim, companheiro nas mesmas páginas tal como
Blake e Mortimer. Estima-se que se tenham vendido até hoje mais de 25 milhões
de álbuns de Alix em todo o mundo, traduzidos em mais de uma dezena de
línguas, incluindo o latim. O primeiro álbum em português foi precisamente a
tradução do primeiro original, saído em 1956 na Lombard: Alix: o Intrépido
foi publicado em 1981 pelas Edições 70. O catálogo da Biblioteca Nacional de
Portugal dá conta de quase 50 álbuns de BD de Jacques Martin em português, a grande
maioria de Alix. Sucedendo na área da BD às Edições 70, a ASA começou, em 2002,
a publicar os livros de Alix. Em 2010 reeditou Alix: o Intrépido a abrir
uma colecção de 16 livros de Alix, distribuída nos quiosques com o jornal Público,
alguns já antes publicados entre nós e outros novos em folha. Depois disso a
ASA ainda publicou em 2011 outro título de Alix, O Ibero, uma história de
Martin desenhada por outros artistas, que se passa na Hispânia Romana, mas os
livros de Alix em português pararam nessa altura.
O problema não era a falta de
originais. Aos 16 álbuns da ASA/Público faltavam três para perfazer os
19 que Martin publicou sozinho entre 1956 e 1988 (após os primeiros cinco na Lombard,
a editora passou a ser a Casterman). Mas, com a ajuda de vários colaboradores, saíram
mais nove álbuns de Alix, entre os quais O Ibero. Martin, com
dificuldades de visão nos seus últimos anos de vida, passou a delegar o desenho
em colegas seus, concentrando-se nos guiões. Alix tem sido uma verdadeira mina
da edição de BD: sobreviveu à morte do autor à semelhança do que aconteceu com Blake
e Mortimer e, ao contrário do que aconteceu com Tintim, por expressa vontade de
Hergé. De 2010 a 2020 saíram mais onze álbuns de Alix de vários autores. Mas a
fileira “alixiana” não se ficou por aí: em 2012 saiu na Casterman o primeiro volume
de uma nova série, intitulada Alix Senator, da autoria da argumentista
francesa Valérie Mangin (n. 1973) e do desenhador também francês Thierry Démarez
(n. 1971). Embora o ambiente da Roma antiga se tenha mantido, o estilo da nova
série diferia bastante do da inicial, com maior riqueza do traço e da cor. Alix,
mais velho, tinha subido na vida e era senador romano. O enredo passa-se no
tempo do imperador Augusto, que viveu na segunda metade do século I a.C. e no alvorecer
da era cristã.
É precisamente este volume, o
primeiro de dez saídos na Bélgica, que, numa edição de 50 páginas com excelente
qualidade gráfica, acaba de sair em Portugal, do prelo da Gradiva, uma editora que,
na sua colecção “Gradiva BD”, tem publicado algumas das melhores BD em
português. Só para dar um exemplo recente, em Abril passado, saiu O Último Homem…,
de Jérome Félix e Paul Gastine, um “western filosófico”. O interesse da
editora pela BD ficará explicado se se disser que o editor, Guilherme Valente,
é um fã da BD franco-belga, tendo crescido a ler a Cavaleiro Andante, a revista
saída entre 1952 e 1962, sob a direcção
do escritor Adolfo Simões Müller.
O primeiro livro da série Alex
Senator, em português As Águias de Sangue, passa-se em Roma no ano
12 a. C.. O senador Alix tem mais de 50 anos, uma idade avançada para essa recuada
época. Não quero contar a história, pois o “suspense” estimula a leitura, mas revelo
que a acção gira à volta da morte de Agripa, genro de Augusto que é esventrado
por uma águia de garras douradas quando se banhava num rio. Com a ajuda de
Tito, seu filho, e de Khefren, filho do seu companheiro de muitas aventuras
Enak, entretanto desaparecido, Alix consegue deslindar o mistério. Afinal não tinha
sido castigo de Júpiter – as águias são “aves de Júpiter” –, mas sim algo bem mais
terreno… Na vida real, o cônsul Agripa, morreu na Campânia, no norte de Itália,
em 12 a. C., tendo recebido de Augusto as maiores honras fúnebres. As exéquias
surgem representadas no livro, dizendo um dos balões: “As tuas virtudes, Marco
Vipsânio Agripa, eram de todos conhecidas. / A tua coragem só se comparava à
tua generosidade”.
Os autores transportam os
leitores aos cenários da Roma Antiga, onde o drama e a violência reinavam. Encontramos
numa das cenas um grupo de escravos crucificados. Recordo que, quando Jesus
Cristo viveu, Herodes (o grande) era o governador da Palestina, mas, na cabeça
do Império Romano, que se alargava a toda a bacia do Mediterrâneo, estava Augusto.
Seguir-se-iam Tibério, enteado de Augusto, o perverso Calígula, o vulnerável Cláudio (o personagem de Eu, Cláudio) e o
tenebroso Nero. Há, em As Águias de Sangue, uma orgia romana, embora não
sexualmente explícita porque o livro é para todas as idades (sobre o tema da sexualidade
anoto que revistas “gay” encontraram homoerotismo na relação entre Alix e Enak).
E há um templo romano, onde, num banho de sangue, se revela, no final, o segredo
das águias assassinas.
Como Alix foi criado por Jacques
Martin, é justo que este tenha sido considerado coautor pelos novos artistas: o
livro é uma justa homenagem a Martin. A tradução é de Jorge Lima, mas, ao
contrário da norma da Gradiva, é seguido o novo acordo ortográfico, atendendo à
sua obrigatoriedade nas escolas. Álbuns como este fazem-me crer que, num tempo
em que se multiplicam as edições electrónicas, os livros em papel têm futuro:
eu nunca trocaria esta edição de capa dura por uma qualquer cópia em PDF ou
noutro qualquer formato digital, pois perder-se-ia o objecto que tanto prazer
dá aos dedos e aos olhos…
Martin – que realizou ao longo da
sua vida um notável esforço de investigação sobre o mundo antigo – procurava
sempre ser fiel, tanto quanto possível, à verdade histórica, embora a vida de
Alix seja completamente inventada. A série em 36 volumes de livros ilustrados As
Viagens de Alix, dirigida por Martin, mas da pena de vários desenhadores,
mostra o mundo da Antiguidade numa perspectiva pedagógica. Começa com Roma,
passa pelo Egipto para depois seguir até à
Grécia, mas também vai, noutros volumes, a paragens mais remotas, como a
América dos Aztecas, dos Incas e dos Maias e a Ásia dos Chineses. Acresce na
bibliografia associada a Alix um conjunto de três volumes (Alix Raconte),
nos quais Martin não participou, que apresenta também pedagogicamente algumas
figuras da Antiguidade. E há um volume, obviamente ficcional, sobre a infância
de Alix (Alix Origines). Isto para já não falar dos álbuns especiais e fora
de série, dos portfólios, etc. Contudo, o mundo de Alix não acaba aí: há toda uma
“indústria” editorial e de merchandising: romances, guias de viagem, desenhos
animados, jogos de tabuleiro, etc. Acho que só mesmo Tintim ultrapassam Alix, na
visibilidade.
Martin criou outros personagens curiosos,
mas que não lograram alcançar a glória de Alix: entre outros, Lefranc, repórter
do século XX tal como Tintim; Jhen, arquitecto medieval; e Loïs, um jovem do
tempo do Rei Sol. Há um curioso livro associado a Loïs que mostra paisagens e
monumentos portugueses, com o traço do português Luís Diferr. O livro, intitulado
Portugal. As Viagens de Loïs, saiu na ASA em 2010 e, se o leitor o vir nalgum
lugar, não o deve deixar escapar. Encontrará desenhos espectaculares não só de
Lisboa, mas também de Tomar, Mafra, Porto e Vila Real.
Martin foi alvo de várias
distinções. Uma das maiores foi, em 2003, o prémio Saint Michel atribuído pela
cidade de Bruxelas, uma honra que também foi dada a Hergé e a Edgar P. Jacobs. A
distinção reconheceu o enorme talento artístico de uma criança órfã de pai e semi-abandonada
pela mãe num orfanato. Subiu na vida tal como Alix. Martin visitou Portugal várias
vezes, uma das quais para participar no Festival de BD da Amadora, o nosso
maior certame na área, onde gosto sempre de ir.
Este álbum de Alix permite-nos entrar, com gosto, na história da Roma Antiga. Não consigo imaginar uma maneira melhor de aprender como viviam os Romanos do que ler, ou pelo menos folhear, os livros de Alix, criados ou inspirados por esse grande mestre da BD que foi Jacques Martin.
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