Novo texto de Eugénio Lisboa.
De que massa são feitos estes obcecados com a linguagem, com a beleza, com o ritmo, com a música, com o equilíbrio, com a luz, com a dor, com o amor, com o sentir? O que se junta para produzir estes “donos da sensibilidade”? Que misteriosos agentes forjam esta sensibilidade de alta voltagem?
Charles Péguy era um grande poeta e um homem de «causas». Mas ei-lo arengando, nas vésperas da primeira guerra mundial:
“assim que se declarar a guerra, a primeira coisa que faremos será fuzilar Jaurès. Não vamos deixar na rectaguarda esses traidores para nos apunhalarem pelas costas.”
Linguagem acesa de político assanhado? Por certo. Linguagem de poeta? Sensibilidade de poeta? Em todo o caso, o seu desejo foi amplamente atendido: Jaurès foi assassinado. Mas Péguy também foi morto, na batalha do Marne, batalha por que ele – poeta – tanto ansiara, como coisa boa para a França e, se calhar para os requisitos da sua sensibilidade.
Shelley era geralmente considerado um poeta de altíssima sensibilidade. Gostava de poesia e de beleza. Mas gostava também, como Franklin, de se entreter a “apanhar” a electricidade das trovoadas, lançando papagaios que a atraíam. Como detestava gatos, um dia atou a guita de um desses papagaios, em dia de trovoada, à cauda de um gato, para ver o bichano a ser electrocutado.
Não são estranhos os caminhos da poesia e da sensibilidade? Não é curioso ver este alado Ariel entregue a torturar animais, qual Joãozinho-Monstro? Haveria dois Shelleys: um que sentia a beleza e o ritmo, o outro que se deleitava com a maldade?
Outro exemplo: Gide conta algures um encontro que o assombrou. Viajando por Itália, entrou numa estalagem para jantar. Numa mesa perto da sua, viu um senhor já idoso, respirando finura de maneiras e espiritualidade – tudo pontuado por uma fabulosa cabeleira branca, tratada e penteada com esmero. O perfil, de grande nobreza clássica, quase majestosa, impressionou-o. Mas eis que o empregado de mesa se aproxima, trazendo para a mesa da nobilíssima figura, um prato bem servido. Diante da comida, o quadro mudou subitamente: o senhor, aureolado de espiritualidade clássica, precipitou-se com sofreguidão animal sobre o prato, pondo-se a devorar a comida, com ruído e espalhafato descomposto. Gide estava fascinado com o espectáculo: nunca antes assistira a uma tal mutação, em matéria de segundos… Registou-o nestes termos:
“Il ne mangeait pas; il bâffrait…” (“Ele não comia; ele alambazava-se…”).
Não contendo a sua curiosidade, chamou o empregado e perguntou-lhe quem era aquele senhor. A resposta siderou-o: era Carducci, o grande poeta que Gide tanto admirava.
O que é ser poeta?
Não era Mozart um rufia fala-barato? Não se comportou Eliot de maneira atroz com a primeira mulher e com um companheiro de apartamento de tantos anos?
O que é ser poeta? É mais uma questão de linguagem do que propriamente de sensibilidade?
O grande Coleridge. A sensibilidade de Coleridge. Eis esta passagem de uma carta escrita a sua mulher Sara:
“Permit me, my dear Sara, without offence to you, as Heaven knows! it is without any feeling of Pride in myself, to say – that in sex, acquirements, and in the quantity and quality of natural endowments whether of Feeling, or of Intelect, you are the Inferior.”
Conheci alguns grandes poetas com qualidades igualmente refinadas, no tratamento de mulheres (suas ou de amigos).
Voltamos ao princípio: o que é ser poeta? De que é feito? Para que é feito? Como é feito?
(Mas lembro-me, para me consolar, daquela lúcida “verificação” de Nietzsche: “Além de ser um decadente, eu sou também o contrário”.)
Eugénio Lisboa
1 comentário:
Num mundo de ideais por realizar, em que idealizar deixou de ser prudente e sensato, em que o ideal é não ter ideais, ser poeta é a pena máxima a que alguém pode ser condenado por descobrir que um homem é uma ilha e sentir que isso é o contrário de praticamente tudo, excepto de um ideal.
Num mundo em que a indústria do som, das arengas, das propagandas e dos engodos é capaz de manter perpetuamente infatigável a máquina, a troco da nossa fadiga e alheamento, ser poeta é ser um pobre diabo sem procuração para representar nada nem ninguém.
De todos os que falam, ou lhe falam, em nome de qualquer coisa, ou entidade (é a mesma coisa), seja Deus (não há quem declaradamente se afirme mandatário do diabo), seja a Verdade, seja a Justiça, a Sabedoria, a Beleza, a Virtude, o poeta não se contenta com menos do que uma procuração conferindo-lhes esses poderes especiais, devidamente assinada por quem lhas, alegadamente, outorgou. E por não se contentar com menos do que isso, fica por contentar, porque ninguém tem esses poderes.
O poeta não fala por procuração. Não é advogado de causa nenhuma, nem professor de coisa nenhuma. Ao falar, em nome próprio, o poeta não está a falar acerca de nada, está a falar (a)penas.
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