Minha recensão no I de ontem:
Ninguém pode negar a realidade das alterações climáticas (de facto, o ex-presidente norte-americano Donald Trump pôde, quando disse que elas não passavam de um embuste dos chineses para destruir a economia americana). Com base nos inúmeros dados recolhidos, não restam dúvidas de que o nosso planeta está, em média, a aquecer e que esse aquecimento se deve à acção humana, designadamente aos processos de produção energética, industriais, comerciais, agrícolas e de mobilidade que levam a emissões de dióxido de carbono, um dos gases causadores do excesso de efeito estufa na atmosfera terrestre. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), da Organização das Nações Unidas e da Organização Meteorológica Mundial, tem produzido sucessivos relatórios alertando para as consequências em vários domínios desse aquecimento que vão da meteorologia à saúde, passando pela biodiversidade e pela alimentação. Em 1997 foi assinado o Protocolo de Quioto, uma resposta política global à ameaça que os cientistas anunciavam, que consistia num compromisso para a redução de emissões de gases com efeito de estufa. Na sua sequência, foi, em 2015, assinado o Acordo de Paris por quase todos os países (os Estados Unidos não o ratificaram; tendo-se alheado do acordo durante o mandato de Trump voltaram há pouco ao concerto das nações), que visa descarbonizar a economia mundial; a temperatura média da Terra não devia subir mais do que dois graus, preferencialmente 1,5 graus, acima dos valores na época pré-industrial. Este desafio é um dos maiores do mundo de hoje, sendo incerta a sua concretização. As previsões sobre o clima e o ambiente a curto e médio prazo são feitas com alguma segurança com base em modelações, mas, como o problema é muito complexo e a intervenção humana algo imprevisível, paira a incerteza sobre a questão num prazo mais longo. O papa Francisco fala de uma “casa comum” e, obviamente, o nosso futuro depende das acções que colectivamente empreendermos.
Descontando os teimosamente negacionistas das alterações climáticas, que recusam o consenso da ciência climática, há também os “cavaleiros anti-Apocalipse”, que dizem que a situação é má, mas não catastrófica: segundo eles não está em causa a habitabilidade do planeta, designadamente se se tomarem medidas racionais. Entre eles encontra-se o ambientalista norte-americano Michael Shellenberger (n. 1971), que acaba de publicar em português na Dom Quixote o livro Apocalipse Nunca. Como o Alarmismo Ambiental nos Prejudica a Todos, com uma boa tradução de José Mendonça da Cruz (que já traduziu livros de Henry Kissinger, Niall Ferguson, Andrew Robert, etc.). O autor não nega de modo nenhum as alterações climáticas (de resto é consultor do próximo relatório do IPCC e diz basear-se nos relatórios anteriores), mas defende com clareza que elas não são tão ameaçadoras como McKibben, Wallace, Thunberg e os Rebellion alegam. Começa o livro a descrever uma acção de luta no metro de Londres do referido grupo radical, cujo extremismo condena, e conclui a defender abertamente o recurso a centrais nucleares, por elas permitirem satisfazer as nossas necessidades de energia sem emissões de dióxido de carbono. Para ele, o apocalipse proclamado por tantos (lembro-me de ter visto Al Gore a palestrar em Lisboa), não está à vista. Existem problemas no ambiente e no clima, dos quais há consciência e que serão resolvidos com base na criatividade e no engenho humanos.
Diz Shellenberger no final da Introdução: “Escrevi Apocalipse Nunca, porque o debate sobre as alterações climáticas e o ambiente atingiu, nos últimos anos, um ponto de confusão e descontrolo. (…) Há trinta anos que sou activista ambiental e há mais de vinte anos que investigo e escrevo sobre questões ambientais, nomeadamente sobre alterações climáticas. Faço esse trabalho por considerar profundamente importante esta missão, não apenas a de proteger o ambiente natural, mas também o de atingir o objectivo de prosperidade global para todos os povos (…). Hoje em dia, grande parte da informação dada ao público sobre o ambiente, e nomeadamente sobre o clima, é falsa, corrigi-la é absolutamente indispensável. Decidi escrever Apocalipse Nunca, porque me fartei do exagero, do alarmismo e do extremismo, três inimigos de um ambientalismo positivo, humanista e racional (…). Apocalipse Nunca está do lado do conhecimento científico, contra aqueles que o negam na direita e na esquerda políticas”.
É porque gosto de cotejar posições divergentes que li agora as 455 páginas do livro de Shellenberger depois de ter lido o livro de David Wallace-Russell. Quem ler perceberá logo que o autor de Apocalipse Nunca gosta de polémica. A imagem dos ursos polares da capa é irónica, pois ele diz que a extinção dos ursos foi espalhada por documentários que exploram as emoções do espectador.
Michael
Shellenberger fundou o Breakthrough Institute, uma organização ambiental, de
onde saiu em 2016 em ruptura com os seus companheiros para fundar a
Environmental Progress, com sede em Berkeley, Califórnia. Um dos pomos da
discórdia é a defesa da energia nuclear. A nova organização tem estado envolvida
em diversas campanhas para impedir o fecho de centrais nucleares, na Califórnia
e no Illinois. Shellenberger começou a sua carreira pública como activista na
América Latina, incluindo o Brasil (aprendeu português). Foi nomeado um dos “Heróis
do Meio Ambiente” pela revista Time (2008) e foi vencedor do Green Book
Award do Stevens Institute for Technology, na Nova Jérsia (também em 2008).
Ele e o seu co-autor Ted Nordhaus são autores dos livros The Death of Environmentalism: Global
Warming Politics in a Post-Environmental World (2003), Break Through: From
the Death of Environmentalism to the Politics of Possibility (2007), e
editaram An Ecomodernist Manifesto (2015), obras que lhes valeram a
designação de "modernistas ecológicos" ou
"eco-pragmáticos". Shellenberger foi candidato a governador da
Califórnia pelos democratas em 2018, tendo ficado a meio de uma tabela com duas
dezenas de candidatos. Tem escrito no The
New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal,
entre outros jornais.
O seu último livro lê-se muito bem: baseia-se na sua rica experiência e em muitas viagens, entrevistas e consultas bibliográficas que fez, estas últimas indicadas numa extensa lista de notas. Os títulos dos 12 capítulos são muito sugestivos: “Basta dessa história das palhinhas de plástico”, “Foi a ganância que salvou as baleias”, “Falsos deuses para almas perdidas”, etc. A recepção foi muito dividida. Se autores como Richard Rhodes, vencedor do prémio Pulitzer com The Making of the Atomic Bomb (1986), e Steven Pinker, o psicólogo da Universidade de Harvard e autor de O Iluminismo Agora (Presença, 2018), o defendem, há cientistas que contestam as suas teses: um deles é Peter Gleick, um especialista em energia e recursos que é membro da Academia Nacional das Ciências dos Estados Unidos e vencedor do prémio Carl Sagan de divulgação científica, que, numa recensão na Web, fez uma crítica demolidora: segundo ele, abundam os maus argumentos e a má ciência. O punch é “o que é novo não está certo e o que está certo não é novo”. Eu não tenho os conhecimentos suficientes para saber quem tem razão na maioria dos tópicos em que há divergência, mas sei que a discussão é imprescindível para o avanço da ciência.
Termino dando de novo a palavra a Shellenberger, no capítulo final, “Falsos deuses para almas perdidas”: “O ambientalismo é, hoje, a religião secular dominante nas elites culturais de classe média e alta na maior parte dos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento. Proporciona-lhes um enredo novo sobre o nosso objectivo colectivo e individual. Aponta bons e maus rapazes, heróis e vilões. E fá-lo no léxico científico, o que lhe dá legitimidade. Por um lado, o ambientalismo e a sua religião-irmã, o vegetarianismo, parecem ser uma ruptura radical com a tradição judaico-cristã. Desde logo, os próprios ambientalistas tendem a ser não crentes ou pouco crentes dessa tradição. E, em especial, registam a ideia de que os humanos tenham, ou devam ter o domínio ou o controlo da Terra. No entanto, e por outro lado, o ambientalismo apocalíptico é uma espécie de nova religião judaico-cristã em que Deus foi substituído pela natureza.”
Aqui dou razão ao autor:
ciência e religião devem ser distinguidas.
1 comentário:
Se ter razão fosse uma coisa muito importante, os maiores torneios e competições não seriam de futebol. A razão, ou por outra, a racionalidade, é a marca de tudo o que fazemos, não por sermos de natureza física, material, corpórea, de partículas, ou outro plástico qualquer, mas por sermos biológicos. A racionalidade que é a característica dominante do humano, não é exclusiva dele e isso é nítido se observarmos o comportamento dos seres vivos e tivermos em mente o que é a racionalidade.
O que é fundamental para superarmos o mito, com uma história trágica, de que o que é racional é bom e apenas o que é racional é bom, é verificarmos que a racionalidade tem o verso da verdade e o reverso do erro, ou vice-versa. Racional é tudo o que “fazemos”, entendido isto como “acto”, consciente, voluntário.
Racional é o trivial humano.
Podemos ser responsabilizados pelo racional, mas não pelo irracional.
Aliás, por ser o erro racional, pelas mesmas razões que a verdade é racional é que a mentira e a fraude campeiam e fazem o maior sucesso, em todas as áreas de actividade (acto) humana.
Para não me alongar sobre este tema que muitos acharão chato, mas que eu acho central para promover uma mudança de visão e de análise crítica da nossa cultura hiperdiscursiva, que a filosofia, ao tentar derrotar-se a si própria, levará de vencida, afirmarei apenas que a verdade depende menos da razão do que da percepção da realidade e que, qualquer método, ou estratégia, ou técnica, que nos ajude a refinar a percepção das coisas e dos fenómenos, será para nós uma vantagem, uma mais-valia, porque nos permitirá exercer a razão no sentido da verdade e não do erro, da falsidade, da fraude e da mentira.
Assim se compreende, se outras razões não houvesse, a importância crescente (e transcendente) das ciências e das matemáticas, nomeadamente, na função de desencantamento e fixação dos factos.
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