domingo, 4 de julho de 2021

AS FALSAS CONDICIONANTES DO VALOR

 


Novo texto do escritor Eugénio Lisboa (na imagem o teorema de Pitágoras, referido no final):

Publiquei aqui, não há muitos dias, um texto, não contra o futebol em si (até, com muito gosto, o pratiquei, na minha adolescência), mas contra o futebol profissional, melhor, contra todo o desporto profissional. Dei, para o meu ponto de vista, algumas boas e saudáveis razões, que vêm de longe, no tempo e no espaço.

Mereceram as minhas despretensiosas palavras alguns comentários que muito agradeço, em particular um da Professora Helena Damião, pessoa que muito prezo e considero. Mas houve um comentário feito, estou em crer, com a melhor boa fé, mas passando totalmente ao lado da dura realidade dos factos. Arguir assim não vale.

No meu texto intitulado “Desporto e Cultura – A Doença Infantil do Futebol”, eu mencionava, como singular excepção à subserviência generalizada dos políticos ao mundo pantanoso do futebol profissional, uma saudável reacção do à época Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho. O referido comentador do meu texto observou que o Ministro Carrilho tinha estes e aqueles defeitos de carácter, o que, segundo o comentador, desvalorizava tanto o desprezo louvável de Carrilho pela loucura futeboleira, como diminuía o valor do meu texto, ao invocá-lo para nele me abonar. Como entendo que estamos aqui a entrar em terreno escorregadio e mesmo francamente perigoso, vou tentar aclarar os ares.

Pretender que os alegados defeitos de carácter de uma pessoa são impeditivos de essa pessoa poder dizer coisas acertadas, num sector muito específico, ou até criar obras de valor no campo científico, artístico ou filosófico, tem o pequeno defeito de contrariar os factos da vida ao longo de toda a História. Vou tentar dar só alguns exemplos, porque poderia dar um número muito grande deles.

Wagner, como pessoa, era um monstro, tendo entre muitos e graves defeitos de carácter, o de ser um antissemita, o que o levou a desprezar a música de Mendelsohn e de Meyerbeer, por serem judeus. Por outro lado, ninguém no seu juízo iria dizer que a música do autor de Parsifal não presta pelo facto de o compositor ser um monstro. Por outras palavras, ele não deve ser julgado com o mesmo preconceito com que julgou os outros dois músicos. O génio de Wagner era um departamento diferente daquele onde residia o seu mau carácter. Quem não se importar de ser um avaliador enviesado poderá sempre pensar – e mal – que um monstro não pode produzir arte de grande qualidade. O grande poeta Claudel, que, ao seu génio, juntava um montão de preconceitos, pensava isso mesmo – e pensava mal – quando dizia, com brutal assertividade, que “le mal ne composse pas” (“o mal não é bom compositor”).

Os alemães ignoraram a Teoria da Relatividade, pelo facto de Einstein ser judeu e apelidaram depreciativamente a sua teoria de “Física judia”. Condenar uma obra de ciência, de literatura, de arte ou de pensamento pelo facto de o seu autor ser judeu, ou negro ou asiático ou homossexual, ou coxo, ou adúltero, ou misógino ou ter os olhos verdes, ou ser hipócrita ou glutão, é misturar alhos com bugalhos e é passar descaradamente ao lado dos factos. As piores pessoas têm feito as obras mais sublimes e a maior parte das melhores pessoas do mundo quase nunca deixam rasto criativo (embora deixem, é claro, a luz da sua bondade). Não estar consciente disto é puro preconceito e o preconceito torna pouco inteligentes as pessoas inteligentes. A Academia Sueca andou anos e anos a arrastar os pés, antes de se resolver a dar o Prémio Nobel a Anatole France, porque este era amante de uma senhora casada, em casa de quem vivia (e escrevia), com a complacente anuência do marido dela. Parece que estas minudências diminuíam o talento do escritor que herdara o manto de Voltaire. Querem outro caso de preconceito a turvar o juízo de um homem de excepção? O romancista George Duhamel, que era também um conhecido médico em Paris, autor de livros canónicos como Civilisation, Vie des Martyrs, Confession de Minuit (um livro extraordinário) e a vasta saga romanesca Chronique des Pasquier, entre muitos outros de uma vasta e assinalável bibliografia, além de ter dado um decisivo ímpeto novo à Alliance Française, depois da Grande Guerra, este mesmo Duhamel, detentor de uma enorme cultura, mostrou, ao aparecer a nova arte do cinema, um inflexível preconceito contra esta nova e promissora inovação do espírito criador do homem. Apaixonado pelo teatro, via no cinema um concorrente desastrado e sem futuro. E fazia-o, nestes termos inconcebíveis: “Um divertimento de idiotas, um passatempo de iletrados… Um povo submetido durante meio século ao regime actual dos cinemas caminha para a pior decadência.” Vem a propósito lembrar que o grande Lumière do cinema mudo gostava tanto deste que não via qualquer futuro para o cinema sonoro porque, dizia ele, seria sempre impossível sincronizar o som com a imagem… Eis o que o preconceito faz, mesmo aos espíritos melhores e mais criativos. Duhamel era, como dissemos, não só um fecundo criador de literatura de grande qualidade, como também um homem de vastíssima cultura, o que o não impediu de fazer uma desastrosa profecia quanto ao futuro da grande arte do cinema. Os seres humanos são surpreendentemente contraditórios e só uma profunda ignorância da história da humanidade e da sua cultura permite fazer juízos primários, no género do que considera um carácter  duvidoso incapaz de produzir um  juízo acertado ou, mesmo produzindo-o, tendo-o por isso desvalorizado. Mozart era um fala-barato, mas era, contraditoriamente, o autor de uma sublime e vasta obra musical (nada mais, nada menos do que 180 discos CD, na edição comemorativa da Phillips). Dostoiewsky terá violado uma criança que, a seguir, se terá suicidado e, portanto, pergunto: que vamos fazer de Os Irmãos Karamazov, de Os Possessos ou de Crime e Castigo? Deitá-los pela borda fora? Jean-Jacques Rousseau pôs cinco filhos na roda: vamos então suprimir as Confessions e as admiráveis Rêveries d’un Promeneur Solitaire? Céline foi um patife, um colaboracionista e um sórdido antissemita: vai pela borda fora o romance Voyage au bout de la nuit? Proust era um incorrigível snob e um bajulador sem vergonha – vamos por isso desvalorizar as profundas prospecções da sua À la recherche du temps perdu? Este tipo de juízos preconceituosos só tem feito mal ao progresso do espírito humano. André Gide, que teve, ele próprio, de vencer imensos preconceitos, por ser homossexual, julgou depreciativamente o primeiro volume da saga proustiana, porque o seu autor era um snob. O problema era que Proust era um snob, mas era também um grande criador e inovador literário. As grandes obras não se originam necessariamente em seres humanos eticamente impecáveis. Dickens, grande romancista e campeão de pobres, desamparados, de humilhados e ofendidos, era mau pai e péssimo marido. O grande dramaturgo sueco Strindberg era um convicto misógino e um ser humano muito parecido com um criminoso. Voltaire deixa de ser quem foi – um corajoso lutador por causas nobilíssimas – por ter praticado a agiotagem? O grande escritor norueguês, Knut Hamsun, autor do celebrado romance Fome, foi pró-fascista, apoiou a invasão do seu país pelos nazis e, quando se encontrou com o Ministro da Propaganda nazi, Goebbels, ofereceu-lhe a sua medalha do Prémio Nobel, que lhe fora atribuído em 1920. Sobre Hitler, o laureado escritor escreveria: “Ele era um guerreiro, um guerreiro pela humanidade e um profeta da verdade e da justiça para todas as nações.” No entanto, Hamsun continua a ser tido como um grande escritor, tendo dele dito Thomas Mann nada menos do que isto: “É o melhor escritor de sempre.”

O preconceito é terrível. Cinco dias depois de Hitler ter subido ao poder, Einstein saiu da Alemanha: embora mundialmente famoso e já laureado com o Nobel, sabia que a sua vida e a dos seus estava em grande perigo.  Dirigiu-se à Inglaterra que, curiosamente, lhe não deu asilo político (por ser judeu? Para não irritar Hitler?) e acabou por se dirigir para os Estados Unidos, onde viria a ter problemas por ser julgado comunista, coisa que nunca foi. Sempre as falsas condicionantes de valor: um grande físico julgado não pela sua grande contribuição para a Física, mas pela sua origem ou pela sua (alegada) filiação política.

O preconceito contra os judeus teve consequências nefastas para a Alemanha e para a sua ciência: além de ter perdido a guerra, sofreu uma calamitosa hemorragia de cérebros científicos. De 1901 a 1932 (um ano antes da ascensão de Hitler ao poder), dos 100 Prémios Nobel de ciências, 33 foram alemães, 18 britânicos e 6 americanos. Dos alemães, 25% dos premiados eram judeus, quando estes representavam apenas 1% da população alemã. Depois da segunda guerra mundial, entre 1951 e 2002, de 321 Prémios Nobel de ciências, 180 foram para os Estados Unidos, 40 para os britânicos e só 31 para a Alemanha. Os Estados Unidos beneficiaram claramente da fuga de cérebros alemães para os seus laboratórios e universidades. A ciência judia não era, afinal, assim tão má.

Resumindo: é tremendamente primário julgar a criatividade dos humanos e o acerto das suas opiniões, a partir de preconceitos sem qualquer fundamento. Não é preciso ser-se eticamente impoluto para se produzir o Cristo na cruz, de Dali. E Picasso estava longe de ser um santo.

P. S. – Dizem que Pitágoras afirmou isto: “Existe um princípio bom que gerou a ordem, a luz e o homem; há um princípio mau que gerou o caos, as trevas e a mulher”. Vamos deitar fora o Teorema de Pitágoras?

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Ildefonso Dias disse...

Sr. Eugénio Lisboa, apresento-lhe uma carta, como um exemplo, - que eu tenho por correcto - da atitude que se deve ter perante certo tipo de “homens perfeitos”. Atitude esta que não é a sua, porque, em coerência, o senhor não aceita que o exemplo do politico, que foi MMC, possa desvaloriza o seu texto.

Eximo Sr. Georges Duhamel;

Há coisas que, na situação particular em que nos encontrávamos ontem, omiti. Quero dizer-lhas hoje; se o faço, é apenas porque gosto das situações claras.
Deixemos de lado certos aspectos da nossa conversa, como por exemplo o empenho com que tentou convencer-nos de que, afinal de contas, nós somos aqui em Portugal muito felizes… (tenho a certeza que se apercebeu do caricato da situação) e ainda as opiniões que expressou sobre alguns dos seus colegas escritores, opiniões que me provocaram algum espanto e que, seguramente, em nada o honram.
Deixemos tudo isto de lado e falemos da questão central.
Se bem entendi, existe para si uma única coisa essencial no mundo – que o Senhor Georges Duhamel, reputado escritor francês, possa usufruir da sua total liberdade – caminhar, observar, escrever, fazer-se ler. Que existam no mundo pessoas a quem todas estas formas e outras liberdades sejam negadas, que existam centenas de milhões de homens que tenham fome ao lado da “super-produção” e que estagnam na lama da sua ignorância e da sua miséria, tudo isto deixa de ter qualquer importância face à exigência desta primeira condição de salvação do mundo – que o Sr. Duhamel goze da sua tranquilidade e liberdade totais para escrever e ser publicado.
E pergunto-lhe, é tudo o que tem para dizer? Num mundo perturbado até nos seus fundamentos e num momento em que todo o futuro da civilização está em causa, limita-se apenas a querer desfrutar da sua liberdade, sem mexer um único dedo, porque isso apenas diz respeito à liberdade dos outros (não apenas à de escrever mas também à de trabalhar e comer), a qual é desprezada? Percorreu os quatro cantos do mundo e conseguiu não ver senão o seu aparo e continua a encarar e a negligenciar o resto do mundo e da humanidade, passando ao lado de tudo o resto? Então não se surpreenda que se afastem de si para não caírem num tal abismo de desumanidade, e o vejam, desde ontem, como o tipo de homem perfeito que devemos evitar ser a qualquer preço.
Perdoe-me a falta de “cortesia” na forma como me expresso, mas como já referi, gosto das situações claras.
Creia-me, Sr. Duhamel, um antigo admirador da sua obra.
Lisboa, 11 de Junho de 1935

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