Meu artigo no I de ontem:
Acaba de sair com a chancela da editora Texto, do grupo Leya, um
livro autobiográfico da autoria de Victor Gil (1939-2018), professor de Química
da Universidade de Coimbra, que também ensinou na Universidade de Aveiro, da
qual foi o primeiro reitor em 1973. Foi investigador pioneiro em Portugal na
área da Ressonância Magnética Nuclear, com a instalação do primeiro laboratório
em 1967, e um notável pedagogo, não só directamente através das suas aulas universitárias,
mas também pela autoria de numerosos livros de Química e Física. Foi ainda pioneiro
em Portugal dos centros interactivos de ciência com a criação em 1995 do
Exploratório Infante D. Henrique, em Coimbra, com base na sua experiência
anterior na organização de exposições de ciência para jovens. É um legado que, no seu conjunto, não pode deixar
de ser considerado extraordinário. Poucos professores terão sido tão eclécticos
como ele.
O formato do livro póstumo é muito original, pois trata-se de uma
entrevista que o autor fez a si próprio, depois de ter dado uma entrevista ao
jornalista João Almeida, da Antena 2, (programa “Quinta Essência”), na qual ele
achou que tinha ficado muito por dizer. Aproximando-se dos 80 anos - o título Arrumar
a Casa Antes dos 80 é elucidativo, como também o é o subtítulo Viagem ao
passado em entrevista do próprio – achou boa ideia deixar por escrito a
história da sua vida e o essencial das suas ideias sobre a vida e o mundo.
Trata-se de um livro de memórias, um estilo insuficientemente cultivado entre
nós, com o formato, um tanto espartilhante, de perguntas e respostas. O livro
tem um subsubtítulo; As perguntas que já foram feitas e as outras. Um
projecto em que o autor se desdobra naquele que pergunta e naquele que responde,
aqui identificados por P e R, respectivamente. Começa com o capítulo «Sentimentos
conjugados no pretérito recente» e termina com o capítulo «As outras actividades.
Vidas e o futuro condicionado», passando por outros sobre a educação, o amor, a
profissão e a “relação com os mistério”. No fim a “casa” fica “arrumada”.
Claro que o próprio só pergunta o que quer e, perante as perguntas
colocadas, só responde o que quer. Mas, lido o livro de fio e pavio, não pude
deixar de me admirar com algumas das perguntas que coloca e com algumas das
respostas que dá. A obra, que tem prefácio de Júlio Pedrosa, ex-reitor da
Universidade de Aveiro e ministro da Educação, conta a trajectória de vida do
autor, num estilo, em certos passos, bastante intimista (lembrei-me do livro O
Bilhete de Identidade, de Maria Filomena Mónica, Alêtheia, 2005). Os
cientistas costumam ser bastante reservados relativamente à sua vida pessoal,
mas o autor, de quem fui amigo e coautor numa dúzia de manuais e meia dúzia de artigos,
desnuda-se amiúde, deixando-nos um testemunho pessoal terminado semanas antes
de morrer. Houve um certo pressentimento de um final cuja hora não podia
adivinhar: morreu de um ataque cardíaco repentino, durante a noite, sozinho em
sua casa.
A obra foi publicada agora com a ajuda dos seus dois filhos, a química
(quem sai aos seus…) Ana Gil e o engenheiro electrotécnico João Gil, que
assinam a introdução. Os filhos cumpriram, assim, a vontade paterna ao
divulgarem o projecto, cuja existência conheciam. Este é o segundo livro póstumo
de Victor Gil, pois saiu em 2020 o livro de poesia Poréns e Encantos na
Sana Editora de Aveiro. O livro mais recente contém alguns poemas desse livro,
cuja qualidade literária será só incipiente. Os filhos ficaram admirados
perante a quantidade de poemas que encontraram. Os colegas, como eu próprio,
não lhe conheciam esse seu culto das musas.
Victor Gil nasceu de origem modestas na aldeia de Santana, perto da
Figueira da Foz: a mãe era costureira que vendia em feiras e o pai agricultor,
com uma ou duas vacas leiteiras. A criança cedo percebeu que, se não estudasse,
não poderia escapar ao destino pobre que o seu berço lhe traçava. Estudou então
com afinco, tendo obtido excelentes notas primeiro na escola primária local e
depois no Liceu D. João III em Coimbra (uma escola que eu também frequentei,
embora bastante mais tarde). Completou a seguir a licenciatura em Ciências Físico-Químicas
na Universidade de Coimbra. Escreve o autor: «Lembro-me de algumas vezes o meu
pai ter de pedir emprestados 500 escudos a um vizinho para eu poder pagar os
encargos de alojamento e refeições e outras despesas, algumas significativas
como a capa e batina». Mas, uma vez que Victor Gil continuava a revelar-se aluno
brilhante (teve 18 a Matemática dada pelo Doutor Esparteiro, nota que este só tinha
dado uma vez… a uma rapariga bonita!), obteve uma bolsa de estudo e foi convidado
para ficar como assistente e ir para o estrangeiro estudar a Ressonância Magnética
Nuclear – RMN, uma técnica de análise química então nova entre nós. O RMN consiste
em sujeitar núcleos atómicos a um campo magnético, de modo a revelar certas características
químicas da substância em análise. Victor Gil completou o doutoramento na Universidade
de Sheffield, em Inglaterra, em 1965, na altura já casado e com a filha Ana recém-nascida.
O Departamento de Química de Sheffield conta com quatro prémios Nobel, um dos
quais Harry Kroto, descobridor dos fulerenos, que aparece numa fotografia do
livro ao lado de Victor Gil (os fulerenos incluem o futeboleno, molécula
parecida a com uma bola de futebol).
O primeiro laboratório de RMN em Portugal foi criado pelo Doutor Victor
Gil logo que regressou. Em 1973, no tempo em que José Veiga Simão, catedrático
de Física em Coimbra com o doutoramento também feito em Inglaterra, o designou
reitor da então criada Universidade de Aveiro. Cumpriu só um mandato, embora
tivesse continuado em Aveiro como catedrático. Voltou a Coimbra em 1982, ano em
que eu também voltei à cidade, vindo da Alemanha. Conheci-o por essa altura,
tendo verificado interesses convergentes quanto ao ensino e divulgação das
ciências.
A obra pedagógica de Victor Gil é impressionante: foi coautor de mais
de 40 títulos de manuais escolares e universitários, que foram utilizados por
mais de 200 000 estudantes. Desatacam-se os seus vários manuais de Química
do 12.º ano, os dois manuais universitários da Fundação Gulbenkian, um deles
uma obra de referência sobre o RMN, e Orbitals in Chemistry, publicado
em 2000 pela prestigiada Cambridge University Press.
Os centros interactivos de ciência têm uma longa história no mundo.
O Palais de la Découverte em Paris é de 1937 e o Exploratorium de
São Francisco é de 1969. Pois em Portugal, esses centros começaram a ser
ensaiados entre nós apenas em 1991 por Victor Gil. O primeiro centro interactivo
de ciência entre nós chamou-se «centro de iniciação à ciência», mas, em 1995,
tomou o nome de Exploratório Infante D. Henrique. Lembro-me de, em Coimbra, ter
apresentado a Victor Gil o meu amigo, então jovem, José Mariano Gago, físico
experimental de partículas, que seria, em 1995, a primeira pessoa a ocupar a
pasta da Ciência e Tecnologia em Portugal, no primeiro governo de António Guterres.
Gago defendia o valor da experimentação na difusão da cultura científica e Gil,
então à frente de uma exposição na Casa da Cultura de Coimbra, tinha ideias e know
how para construir módulos interactivos de ciência. O Exploratório haveria
de se mudar para Santa Clara, para um edifício que foi crescendo, albergando
uma actividade também crescente. Porém, o fundador viu-se inopinadamente afastado
da direcção, num processo que muito o magoou pela injustiça cometida. Escreve o
autor: «Embora considere a ingratidão um dos piores defeitos, superei à custa
de me manter activo». Passou a dedicar-se às artes: à poesia e às artes
plásticas. Ainda viveu o suficiente para fazer uma exposição individual de arte
na Universidade de Aveiro («Criar… na outra margem»), onde presidiu ao Conselho
de Ética e Deontologia. Claro que o Exploratório não melhorou com o afastamento
do seu criador, limitando-se a manter uma rotina, longe do fulgor de outrora.
Um bom indicador da criatividade de Victor Gil encontra-se num
apêndice devotado ao humor químico no livro aqui em apreço. Eis algumas «piadas
secas» aí contidas: «Uma solução que não é concentrada é distraída«, “Os electrões
de Valência falam espanhol», e «Os metais são bons condutores porque não bebem
quando conduzem».
Da extensa produção bibliográfica do autor, elencada apenas em resumo
no final, destaco As Minhas Primeiras Investigações Científicas
(Almedina, 1984), em colaboração com o filho, na altura ainda infante, e 33 Casos
de Acaso em Ciência (Gradiva, 1996).
Aconselho a leitura de Arrumar a Casa Antes dos 80 a
quem queira conhecer, compreender e apreciar o cientista, o pedagogo, o
divulgador, o poeta, e, acima de tudo, a pessoa de Victor Gil, uma referência nacional
na ciência e um ser humano singular. Para que o leitor se aperceba da obra
deixo, como é costume nestas colunas, um excerto. Escolhi, do capítulo em que
trata a “relação com os mistérios”, a posição do autor sobre a vida depois da
morte: «Agora sou mais categórico: a ideia de uma alma e de uma vida depois da
morte há muito que me abandonou. Acho que são meras criações da mente humana
para compensar ignorâncias, para garantir justiças (segundo os critérios
humanos), para perpetuar o instinto de sobrevivência (…) Não tenho medo de
morrer, mas tenho pena, pois estou muito agarrado à vida». Agarrado à vida,
viveu uma vida cheia, enchendo a vida dos outros. Que descanse em paz!
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